quarta-feira, junho 06, 2007

Sobre BBC Brasil e a genética do Povo Negro no Brasil

Comentário Moisés: No dia 3 de junho, teci comentário e publiquei nesse blog a longa matéria que a BBC Brasil divulgou, amplamente em seu site, sobre a questão genética na formação atual do povo negro no Brasil. No artigo a seguir, o Athayde Motta, faz um boa reflexão sobre o contexto em que se situa essa polêmica.

Fonte: Site IBASE - publicado em 1/6/2007 - www.ibase.br/modules.php?name=Conteudo&pid=1812
Essencialismo genético: por que a genética do século 21 soa como a biologia do século 19?


Athayde Motta*

O novo episódio das guerras culturais sobre raça no Brasil usa a BBC, a prestigiosa rede de comunicação quase-pública britânica, como avalista dos desejos de democratas raciais. Da forma como as várias notas foram publicadas na imprensa brasileira esta semana (veja, por exemplo, “Negros de origem européia”, O Globo, 29/05/2007), fica parecendo que a velha Auntie Beeb, como a rede é carinhosamente chamada, está de fato engajada em comprovar que negros brasileiros são irrefutavelmente mestiços, quer queiram ou não.

O subterfúgio é típico do clima de guerras culturais e se aproveita do desconhecimento da maioria da população brasileira sobre como o tema da raça é debatido fora do Brasil. Vamos, então, aos esclarecimentos.

Em primeiro lugar, a BBC não está empenhada em descobrir percentuais de ascendência genética nos seres multi-ancestralizados do planeta. Ela apenas teve faro para produzir belos documentários (com um ranço levemente (pós)colonialista) sobre as pesquisas de DNA para consumo individual que pululam na Europa e nos EUA. E o motivo que desperta interesse é uma das facetas do racismo contemporâneo na diáspora africana.

Em um dos primeiros documentários sobre o tema, chamado Motherland: A genetic journey ou “Terra-mãe: uma viagem genética” (veja a notícia de 2003, “Negros britânicos encontram suas raízes africanas”, http://news.bbc.co.uk/2/hi/africa/2757525.stm, em inglês), as pessoas retratadas realizavam viagens idílicas de volta às suas origens africanas, posto que na relação entre negros(as) e brancos(as) no Reino Unido está sempre implícito que os(as) primeiros não pertencem, de fato, àquele lugar. O diálogo ficcional a seguir é baseado nos relatos de vários(as) negros(as) britânicos(as) com quem já conversei e segue mais ou menos assim:

“Dois premiados no Festival de Flores de Chelsea se cumprimentam orgulhosos de suas medalhas. O senhor branco se apresenta: ‘Olá, sou de Londres’. O senhor negro responde: ‘Olá, eu nasci em Moss Side, em Manchester’. Pausa. O senhor branco sorri e continua: ‘Mas de onde você é de verdade?’

Licenças poéticas à parte e descontado o fato de que a maioria dos(as) negros(as) britânicos(as) fez uma parada de uns dois séculos no Caribe na “viagem” entre a África e a Europa, a questão fundamental é que no assim-chamado “velho continente” e nos Estados Unidos, de maneiras diferenciadas em cada lugar, a origem e a ancestralidade (os dois termos não são sinônimos) são moeda de valor em relações raciais desiguais.

Daí a necessidade de se oferecer “evidências científicas” para que negros(as) britânicos(as) também tivessem um “lugar de origem” e uma ancestralidade que lhes fosse de alguma valia neste jogo. Ao serem referenciadas em um lugar no globo, estas origens e ancestralidade tornam-se positivas e relevantes, embora o suporte científico seja apenas um suporte para uma construção histórico-social (porque é baseada de fato na experiência vivida e contada por meio de gerações, e não apenas em uma invenção). Poderia também ser chamada de ação afirmativa genética, pois acaba por dar aos genes africanos o mesmo “valor” que é formalmente atribuído aos genes europeus.

Portanto, não me parece que a BBC ou empresas como AfriGeneas and Ancestry.com, que fornecem a pesquisa de DNA individual por preços que variam de US$ 350 a US$ 600, estejam interessadas em dar estofo ao conceito de multi-ancestralidade como doublê da velha democracia racial. A idéia primeira, romântica e alienada em relação à desigualdade racial que expressa, é de proporcionar indicações, não apenas para negros(as), das prováveis origens territoriais de um indivíduo com conexões com outros lugares. Não creio ser necessário explicar o quanto isto é indiferente se o indivíduo em questão é, digamos, descendente de italianos(as) da Móoca, em São Paulo, ao invés de um quilombola de Conceição das Crioulas, em Pernambuco.

A outra questão fundamental é o descuido com que as matérias da imprensa defendem conclusões que os dados genéticos utilizados não necessariamente comprovam. Aqui entra a arrogância da tropa de choque dos(as) democratas raciais brasileiros(as), que não só se consideram empoderados(as) para impor uma identidade coletiva à nação como ainda utilizam argumentos pseudo-científicos de uma forma que só pode ser chamada de escandalosa.

Desta forma, é simplesmente mentira que o Brasil seja um dos países mais miscigenados do mundo (este “recorde” está provavelmente em alguma ilhota do Caribe). É igualmente errado dizer que qualquer negro(a) brasileiro(a) tem porcentagem X de genes europeus como se isto fosse uma marca de identidade positiva, sem referência histórica e de experiência vivida e, o que é pior, desrespeitando a identidade e experiência que o indivíduo possa ter. Finalmente, se um negro(a) brasileiro(a) tem 40% de genes europeus, cabe a velha pergunta: E daí? Isto não apaga a memória da experiência de vida daquela pessoa, seja a da violência racial, seja a da cultura em sua comunidade, nem deveria ser considerada tão valiosa a ponto de virar notícia de jornal.

O que a precisão e suposta objetividade da pesquisa genética acaba por criar é uma imposição de valor sobre a obsolescência do conceito de raça (tão mais falsa quanto mais se defende a democracia racial) e sobre a irrefutável mestiçagem de todos os seres (preferencialmente os de pele mais escura) porque assim disse a ciência.

Não foi assim que a biologia deu “suporte científico” à idéia da inferioridade de negros(as) africanos(as)? Com sua histeria e táticas de Caveirão acadêmico, democratas raciais brasileiros(as) não têm contribuído de fato para o fim do racismo e da discriminação racial, mas podem se vangloriar pela criação do essencialismo genético. Não é pouco para quem, até ontem, acusava os movimentos negros de essencialistas apenas por dizerem que eram...negros! e não moreninhos.

*Coordenador do Ibase

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