terça-feira, novembro 20, 2007

PÁGINAS FELIZES DA NOSSA HISTÓRIA RECENTE

COMENTÁRIOS DE MOISÉS BASÍLIO: Como já escreveu uma vez Guimarães Rosa, todos nós temos nossa hora e nossa vez. Para minha vida de militante político, este tempo foi no ano de 1978, junto à Oposição Metalúrgica de São Paulo. Primeira imagem: Meados do ano de 1978, um noite qualquer, no bairro da Moóca, tive o primeiro contato com o pessoal da Oposição Metalúrgica numa reunião do apoio à greve da categoria, aliás menos reunião e mais preparativos para as ações de paralisar as fábricas. Eu participava de um grupo de jovens da Pastoral da Juventude, cursava o segundo ano do ensino médio - técnico mecânico, trabalhava num escritório e morava perto das fábricas do corredor da Vila Ema. E lá fomos nós, panfletar as portas de fábricas, organizar piquetes e garantir a greve em São Paulo, as greves que tiveram início no ABC,contra a vontade dos pelegos do sindicato dos metalúrgicos de SP. Imagens 2: Final do ano de 1978, teatro Ruth Escobar, nosso grupo de jovens está na fila para assistir a peça "A Revista do Henfil"e cantávamos a plenos pulmões: "Adeus AI-5, feliz ano ano, que haja Democracia no ano que vai nascer, muito respeito pro povo, de quem estiver no poder..." Para aqueles jovens, e para mim, o ano de 78, foi o ano do batismo na luta. Daí para frente não paramos mais aquele trabalho de organização nos locais de trabalho e nos bairros da periferia de São Paulo. O movimento cresceu, novas greves, novas lutas, novas formas de organizações populares e muitas histórias de vitórias para contar. Por isso quero estar presente lá na Apeoesp, no dia 30, para reencontrar os velhos primeiros companheiros, meus mestres. Axé!

domingo, outubro 28, 2007

GERALDO FILME: SAUDADES!

Comentários Moisés Basílio: Tive o prazer de ter a presença do Geraldo em três momentos da minha vida. A primeira, pelas lembranças de minha mãe Teresinha, assídua freqüentadora do Paulistano da Glória. A segunda, quando no inicio dos anos 80 trabalhamos juntos no ECAD. A terceira, durante o governo da prefeita Luiza Erundina, quando meu grande amigo Eduardo Victor trabalhava no Anhembi. O Geraldo era a história viva do samba paulista. Nos encontramos pela última vez na praça de São Mateus. Depois da roda de samba que ocorreu na praça, fomos beber e conversar numa padaria sobre a vida, a política e o samba. Ao final, o Geraldo pediu um bonito pão doce e seguiu sua vida. Também segui a minha, já com muita saudades daquele encontro e com a plena consciência da importância desse homem para a história da cultura da nossa cidade. Geraldão, Axé!

Fonte: Jornal "O Estado de São Paulo" - domingo 28/10/2007 - Caderno 2
O cronista negro das terras paulistas

O sambista Geraldo Filme, que faria 80 anos, registrou em composições a história do samba e da cultura africana em São Paulo

Francisco Quinteiro Pires

“Se cair deitado é padre,/ Caiu de pé é sambista”. Geraldo Filme de Souza cantou esses versos em Eu Vou Pra Lá, uma homenagem à escola de samba Paulistano da Glória, fundada por sua mãe, Dona Augusta. Ele falava de sua missão: sabia ter caído de pé. Cronista do samba e da história de São Paulo, devotou a existência ao carnaval e à música, embora tenha gravado um elepê autoral somente quando completou 52 anos. Faria 80 no dia 17 de outubro, se não tivesse morrido em decorrência de uma broncopneumonia, em 5 de janeiro de 1995.

“Eu não troco um bom samba/ Pelo amor de uma mulher”, anuncia na mesma letra. Geraldo Filme contorna a habitual temática sambística, que rima amor e dor, para exercitar forte consciência político-social em suas composições, nas quais preserva a cultura negra paulista e a história dos seus, os mais necessitados. Ele carrega a influência do samba rural, entoado nos cafezais do interior do Estado e cadenciado pelo som grave do bumbo. As culturas caipira e negra se amalgamaram às rodas urbanas de tiririca (uma capoeira sambada) dos “três territórios negros” na São Paulo da primeira metade do século 20 - Barra Funda, Bexiga e Baixada do Glicério, na classificação da professora da Unicamp Olga von Simson e autora de Carnaval em Branco e Negro (Imprensa Oficial, 396 págs., R$ 90).

Nascido em São João da Boa Vista, com cinco anos Geraldo Filme se muda para a Barra Funda. Sua mãe tinha uma pensão que fornece marmitas à vizinhança. Quem as entrega é o filho, que, em vez de se tornar doutor, recebe o “diploma de bamba” por ter estudado na “escola de samba da vida”, como canta em Garoto de Pobre. Nessas andanças, ele observa as rodas formadas por negros ensacadores e carregadores nos armazéns abastecidos pelos trens da São Paulo Railway, no extinto Largo da Banana, região onde hoje se localiza o Memorial da América Latinha. Aos 10 anos, Geraldo Filme compõe Eu Vou Mostrar, uma crítica à afirmação do pai, Seu Sebastião - que tocava violino -, segundo a qual samba de verdade era feito no Rio. “Eu vou mostrar/ Que o povo paulista também sabe sambar (...) Na Barra Funda também tem gente bamba/ Somos paulistas/ E sambamos pra cachorro/ Pra ser sambista não precisa ser do morro.”

O Largo da Banana dá lugar ao progresso, o Viaduto Pacaembu, que elimina em meados dos anos 50 a “alegria” e a “simplicidade”, como está dito na composição Último Sambista. Mas antes as marchas cantadas pelo carnaval da elite - nos corsos -, copiado de Veneza, foram sucedidas pelas músicas dos cordões, que representavam o carnaval feito pelo povo e nos quais Geraldo Filme teve as primeiras experiências carnavalescas. “Os desfiles dos préstitos, posteriores aos entrudos, eram luxuosos, com carros alegóricos, e, neles, a burguesia exibia-se como detentora do poder político”, diz a professora von Simson. E a população se portava como público passivo.

A participação popular teria início com o advento do primeiro cordão paulistano, Grupo Carnavalesco Barra Funda, em 1914. Seu fundador, Dionísio Barboza, acrescenta aos instrumentos percussivos o conjunto choro - cordas e sopro -, à diferença do carnaval no Rio, assentado na percussão dos ranchos. Segundo Osvaldinho da Cuíca, amigo de Geraldo Filme por quase quatro décadas, Dionísio Barboza é o “papa do samba paulista”, pois a partir dele se realiza solidamente o elo entre os sambas rural e urbano na cidade de São Paulo. Barboza freqüentava os festejos de São Bom Jesus, realizados todos os anos em Pirapora, a 54 quilômetros de São Paulo, na primeira quinzena de agosto. Os sambistas se abrigavam sob barracões montados para receber os romeiros vindos de várias localidades do Estado e ali faziam a batucada.

Batuque de Pirapora é um dos registros da influência do samba de bumbo na obra de Geraldo Filme. “Menino preto não sai/ Aqui nesta procissão/ Mamãe mulher decidida/ Ao santo pediu perdão/ Jogou minha asa fora/ Me levou pro barracão”. “Geraldo Filme fala nessa música de preconceito racial, ele usava a munição que tinha, o samba”, diz Osvaldinho da Cuíca. Em Tradições e Festas de Pirapora, ele elabora um retrato sociológico dos festejos.

Os participantes dos cordões da capital, que se consolidam entre os anos 30 e 50, iam a Pirapora participar dos desafios: nas rodas onde cantavam e dançavam, os sambistas intercalam versos improvisados com um estribilho, que dá o mote do duelo.Segundo a professora Olga von Simson, os cordões tiveram a permissão policial para desfilar nas primeiras décadas do século passado, porque se organizaram à maneira de procissões, prática consagrada em festas religiosas desde o século 19, que, a exemplo de Pirapora, permitiam o elemento profano. O mundano e o sagrado convivem lado a lado na história do samba paulista. Olga lembra que nas festas das Igrejas dos Enforcados (Liberdade), da Santa Cruz (Glicério) e da Achiropita (Bexiga) o samba corria solto.

Nos anos 40, a Igreja Católica demole os barracões, preocupada com a magnitude das manifestações profanas. Mas as influências do samba rural permanecem fortalecidas na obra musical do Geraldão da Barra Funda, que nos anos 60 fez fama como compositor na Unidos do Peruche, dentro da qual viu chegar a oficialização do carnaval paulista a mando do prefeito Faria Lima, em 1968.

Os cordões se transformam, então, em escolas de samba. O regulamento copia as práticas carnavalescas do Rio. “A mudança foi abrupta, em quatro anos os cordões desapareceram”, diz a professora von Simson. Em 1975, Geraldo Filme entra na escola de samba Vai-Vai, para a qual compõe o samba-enredo Solano Trindade, Menino do Recife, uma homenagem ao poeta, folclorista e teatrólogo pernambucano, fundador do Teatro Popular Brasileiro, freqüentado pelo sambista paulista ao lado do amigo Osvaldinho da Cuíca, presidente na época da ala de compositores da Vai-Vai.

Na escola de samba, Geraldo Filme cria Silêncio no Bexiga, um dos seus hinos ao lado de Tradição. A música é uma homenagem a Walter Gomes de Oliveira, vulgo Pato N’Água, um dos maiores apitadores - função hoje conhecida como mestre de bateria - do carnaval paulista; um malandro briguento que apitava, de cima do Viaduto do Chá, a escola desfilando no Vale do Anhangabaú.

Silêncio no Bexiga foi composta no dia seguinte à polêmica morte de Pato N’Água: versões falam de crime passional e de execução pelo Esquadrão da Morte, como a defendida por pelo dramaturgo santista Plínio Marcos que registrou no disco Plínio Marcos em Prosa e Samba - Nas Quebradas do Mundaréu (1974, Continental) a história do samba paulista, cantada por Geraldo Filme, ao lado de Zeca da Casa Verde e Toniquinho Batuqueiro. A letra de Silêncio no Bexiga, gravada em Nas Quebradas..., refere-se a um sambista de rua, artista do povo, que não ganha placa de bronze nem fica na história. Geraldo Filme parecia também se referir a si mesmo - o reconhecimento póstumo não está à altura da sua importância cultural para a cidade de São Paulo.

Tanto é que o média-metragem Geraldo Filme, de Carlos Cortez, ganhador do É Tudo Verdade - 3º Festival Internacional de Documentários, em 1998, ambienta as primeiras cenas dentro de uma redação de jornal. Um jornalista em começo de carreira recebe do editor a ordem de entregar um texto sobre o Geraldo Filme para o dia seguinte. Nem ele nem os colegas de trabalho, formadores de opinião, sabem quem é a personalidade, que cantou no disco Canto dos Escravos, ao lado de Clementina de Jesus e Doca (pastora da Portela).

Idealizado por Aluízio Falcão, diretor artístico do selo Eldorado entre 1977 e 1987, depois de uma conversa com Laura de Mello e Souza, Canto dos Escravos (1982) reúne 14 vissungos, cantos responsoriais com palavra em português e em dialeto bantô entoados por escravos no século 18. Eles foram escolhidos por Falcão entre os cerca de 70 cantos registrados em O Negro e o Garimpo de Minas Gerais, livro de Aires da Mata Machado Filho. Na gravação, o acompanhamento é feito apenas por instrumentos percussivos. Dois anos antes, Aluízio Falcão lançara o elepê Geraldo Filme, o primeiro trabalho gravado do sambista da Barra Funda: das 12 músicas, a única que não é de sua autoria é Tristeza de Sambista, de Osvaldo Arouche e Walter Pinto. “Ele foi um sambista autêntico, que se fez sem a influência do rádio e cujas composições são vinculadas à terra, elas têm um caráter telúrico”, diz Aluízio Falcão.

Tão ligado à cultura de seu povo e à sua terra, Geraldo Filme faz um balanço da existência em Reencarnação: “Quero ser sambista/ Ao renascer de novo/ Pra cantar a alegria e desventura do meu povo/ (...) Cantar samba na avenida/ E nascer negro novamente.” Ao dirigir seus versos ao “Criador”, o cronista negro de São Paulo admite nas entrelinhas que viveria tudo mais uma vez, pois tinha a consciência de que, contra a dura realidade, causadora de sofrimentos, podia contrapor um sonho, o da arte em versos de samba.

Literatura de Angola

Comentário Moisés Basílio: Boas notícias literárias. Chegam às livrarias dois livros de escritores angolanos e também a notícia de que os dois virão ao Brasil no próximo mês. Um deles, o Luandino Vieira, já conheço de outros carnavais. Quando seu livro "Luuanda", foi lançado por aqui, nos anos 80, foi um dos motivos de inspiração para o nome que dei para minha primeira filha. Depois, quando fui trabalhar na livraria do Centro Pastoral Vergueiro, tive a oportunidade de divulgar e vender esse livro e outro da literatura africana. Ainda temos pouco contato com a literatura africana em nossa terra, onde metade da população tem suas origens no continente negro. Vamos conferir. Axé!

Fonte: Jornal "O Estado de São Paulo" - Caderno 2 - domingo 28/10/2007.
Vozes libertárias de Angola

Passado e futuro, infância e formação se misturam em livros de Luandino Vieira e Ondjaki, que vêm ao Brasil revelar mistérios literários de seu país

Ubiratan Brasil

A literatura em Angola nasceu antes do país - Alfredo Troni produziu suas primeiras narrativas no século 19 quando a antiga colônia de Portugal só conseguiu sua independência em 1975. Assim, notadamente nos anos 1930 e 40, a escrita angolana se construiu a partir da negação contra o complexo sistema de contradições da sociedade colonizada. Mas o projeto de uma ficção que conferisse ao homem africano o estatuto de soberania surge nos anos 1950, principalmente com José Luandino Vieira e seu A Cidade e a Infância, publicado em 1957 e que ganha agora edição da Companhia das Letras.

São dez histórias que apresentam um espaço social e humano especificamente angolano, ou seja, a representação do mundo subdesenvolvido dos musseques (bairros pobres), onde o autor, embora nascido em Portugal, foi criado. O impacto vem da ruptura da linguagem, da desestruturação do português colonizador para a estruturação de uma nova língua, a oral. Para isso, a memória tem papel fundamental, o que também marca a literatura de outro talento angolano, Ondjaki, representante da nova geração, pós-independência. É o que se observa em Os da Minha Rua, que a Língua Geral lança nesta semana.

Aqui, o autor-personagem revela as descobertas da adolescência somadas às despedidas de tudo o que remete à infância. Fazem parte desse universo assuntos e imagens tão diversas como o primeiro beijo, a parada de 1º de maio, uma piscina de coca-cola e a novela brasileira Roque Santeiro. Luandino Vieira e Ondjaki vêm ao Rio em novembro, quando participam de eventos sobre a literatura de seu jovem e rico país. Sobre essa vinda e o novo lançamento de A Cidade e a Infância, Luandino conversou, por e-mail, com o Estado.

Como insere os contos de A Cidade e a Infância em sua obra? Já estava traçada ali sua intenção literária?

Como aquela pequena semente a partir da qual todo o trabalho literário se iria desenvolver. Os sítios, cenários, locais e as gentes que iriam povoar meu imaginário aí aparecem esboçados. Na verdade, sem grande justeza ou profundidade mas a escolha impôs-se-me: a cidade, a nossa terra de Luanda, sobretudo o espaço dos musseques e suas gentes. Também o que do fundo da infância e da adolescência sempre emergia e continua a emergir. É comum saber que para quase todas as pessoas, e quiçá mais para os que se fazem escritores, a infância é um manancial sem-fim e por toda a vida. Intenção literária não haveria muita. Ou era limitada a conformar minhas intenções de ser escritor como forma de participar no movimento cultural angolano que, naqueles idos de 1950, renascia com pujança político-cultural.

E o que dizer do engajamento e a importância de sua linguagem literária?

Esse engajamento eu o tive como o modo de desnichar e propor a importância da linguagem popular dos musseques de Luanda para a construção de uma linguagem literária. Também como modo de afirmação da nossa diferença cultural, o que me dava legitimidade para exigir o reconhecimento da nossa especificidade cultural com vista à autonomia e autodeterminação políticas. Quanto à sua importância, não me cabe ser juiz dos meus atos e intenções. Penso que, sendo Angola nação relativamente jovem e Estado recente e sem tradição e prática de estudos literários, é cedo para avaliar. Sei, sim, que atuei de consciência e responsabilidade plenas nesse meu trabalho literário, e até como participação na luta por nossa emancipação política do Portugal colonial.

Sua proposta seria apostar na transformação da realidade vivida pelas personagens a partir de sua conscientização e de sua atitude revolucionária?

Creio, ainda hoje, que sim. Procurei na realidade sociopolítica de então aqueles momentos e personagens que pudessem indiciar um grau, por mínimo que fosse, de atitude consciente no sentido da mudança; ou na luta pela mudança; ou nos comportamentos que, aparentemente inócuos, à vista desarmada, tinham já inscritos sinais da rebeldia, da revolta, ou da necessidade da revolução. Se isso serve para transformar a realidade... Ao tempo eu quase acreditava que sim. Minha “crença”, com a experiência, se atenuou. Mas continuo consciente, em última instância, do alto e insubstituível poder da palavra. Por vezes é a esse último grão de resistência que fica preso o destino do homem: o grito, articulação mínima da palavra.

A idéia da tradição ainda é decisiva ou se busca fazer uma recriação contemporânea da tradição?

A idéia da tradição como elemento, suporte ou quadro de nossa identidade cultural coletiva e pessoal, é permanente. Mesmo que inconsciente. O que o escritor pode fazer - é impossível o regresso dos rios às nascentes, e, se regressam, é sob outra forma - é recriar a tradição em novas circunstâncias para novos desafios que, por sua dinâmica, uma cultura coloca cotidianamente. Sobretudo agora que começam a ser mais visíveis os desafios da desenfreada e comercializada globalização cultural...

Qual sua expectativa em relação à vinda ao Brasil? Acompanha a atual literatura brasileira?

Minha expectativa é grande. Não visito o Brasil desde a década de 1980. Leio, ouço, tomo conhecimento das transformações ocorridas nos últimos anos. Quero ver com meus olhos esse país que sempre povoa o imaginário do angolanos em sua presente expressão. Porque, infelizmente, pouco ou nada acompanho da literatura que hoje se faz no Brasil. Mesmo os livros editados em Portugal não estão ao meu alcance. Mas isso é um dos traços comuns na situação do conhecimento e interconhecimento das literaturas em língua portuguesa. E não é da responsabilidade dos escritores. Os escritores escrevem...


Os Escritores

LUANDINO VIEIRA: Pseudônimo de José Vieira Mateus da Graça, nasceu em 1935, em Portugal. Tornou-se cidadão angolano por combater ao lado do MPLA contra o domínio português e por ter contribuído para a criação da República Popular de Angola. Por conta disso, ficou preso entre 1961 e 1972. A reclusão, porém, foi inspiradora - em 1963, lançou o livro de contos Luuanda, narrativas que retratam a dura realidade dos bairros pobres de Luanda, editado no Brasil pela Companhia das Letras. Em 2006, recusou o Prêmio Camões por não se julgar um escritor em atividade.

ONDJAKI: Pseudônimo de Ndalu de Almeida, nasceu em Luanda, em 1977, dois anos depois da independência de Angola. Palavra umbundu, Ondjaki significa “aquele que enfrenta desafios”. Poeta, contista e artista plástico, ele defende um maior contato entre as culturas de língua portuguesa. É autor, entre outras obras, de Bom Dia Camaradas, lançada no Brasil pela Agir, em que recria Luanda a partir de suas memórias afetivas. Dirigiu, ao lado de Kiluanje Liberdade, o filme Oxalá Cresçam Pitangas, dez formas diferentes de viver e interpretar a cidade de Luanda.

'A infância é um abismo sempre delicioso e delicado'

Em Os da Minha Rua, Ondjaki promove um diálogo com Bom Dia Camaradas, livros repletos de saudade de lugares e cheiros

Ubiratan Brasil

Com Os da Minha Rua, Ondjaki confirma que a infância tem a vantagem literária de já vir repleta de carga emotiva. O livro remete aos mesmos temas de Bom Dia Camaradas (Agir), romance lançado em 2003. Sobre tradição e o momento atual da literatura angolana, Ondjaki respondeu, por e-mail, às seguintes questões.

Qual diálogo existente entre Os da Minha Rua e Bom Dia Camaradas?

Existe um diálogo intencional e até intertextual, n’alguns casos. É a mesma voz, a mesma criança, que quer contar estórias mais rápidas mas talvez de uma emoção mais intensa, ou mais profunda. Foram experiências semelhantes, uma vez que ambos livros se baseiam em experiências verídicas, tanto sociais quanto emocionais. Algumas estórias levaram-me a pequenos abismos internos que eu trabalho para aceitar. É também um livro, este, cheio de saudades, de pessoas, de lugares e cheiros. A infância é um abismo sempre delicioso e delicado.

Qual a diferença de realidade entre as crianças da Luanda de hoje e aquelas que viveram na cidade na sua época juvenil?

Eu julgo que as diferenças são gritantes... Toda a ambiência social e política é distinta, a cidade tem milhares de habitantes, e tudo o que foi ternura e cumplicidade, já desapareceu. Luanda é, hoje, uma cidade agreste do ponto de vista das emoções. Vive uma lógica coletiva de índole econômica, onde o dinheiro é a voz mais alta que grita para abafar toda as outras. Luanda é uma guerreira triste que perdeu, talvez, a capacidade até de se emocionar. E as crianças, agora inocentes, vão sentir isso no seu futuro muito próximo. Mas não há razão para dramatizar: é outra cidade, como todas as capitais do mundo evoluíram, a nossa também seguiu o curso que lhe estava destinado.

A influência da cultura exterior (especialmente a brasileira) ainda é muito forte no cotidiano angolano atual?

Sim, sem dúvida. É até mais forte hoje em dia, com a força da televisão, os canais brasileiros que chegam através das parabólicas, a roupa brasileira vinda semanalmente que obedece à lógica e às modas das telenovelas, e a música, esse canal sempre aberto entre os nossos países. Depois também nos chegam outras influências, obviamente. Mas sim, os luandenses são cidadãos atentos às tendências internacionais, não sei se isso é bom ou não.

Ainda no terreno das comparações, que diferenças você vê entre a literatura angolana atual, da qual você faz parte, e a do passado recente, especialmente na prosa de José Luandino Vieira?

São sobretudo diferenças de estilo e de conteúdo. Penso que estas diferenças advêm, naturalmente, de distintos contextos políticos, mundiais e nacionais. Mas também, é preciso não esquecer, deriva da especificidade do estilo de cada um, das suas influências e da apreensão que cada escritor faz tanto das suas vivências quanto das suas leituras. A literatura é, acima do mais, terreno do pessoal, do subjetivo e do interpretativo. A imaginação ou os objetivos literários de cada um. Mas literatura é sensibilidade, é força, é coerência estática. Vamos ver e ouvir o que têm para dizer as novas gerações. É um trabalho árduo, pois nos antecedem escritores de calibre incalculável.

Qual a relação entre política e literatura atualmente em Angola?

Penso que é mais leve. Há muita gente que faz literatura sem se preocupar em fazer política. O “escritor engajado” já não faz tanto sentido, ou está engajado de modo mais discreto ou menos óbvio. E há os outros.

O final da história insinua um certo desencanto. É correto isso?

Não é desencanto, é saudade mesmo. E aí, é preciso não confundir: não é saudade de um espaço social. É saudade da infância, no que esse conceito tem de universal e de emocional. Saudade da pureza, da aventura, também da naturalidade com que fazíamos as coisas, com que atravessávamos os dias, as tardes e os sentimentos. Os cheiros das árvores e dos pescoços suados ao dançar. Saudades das festas mais simples, e do tempo em que a vida das crianças era feita de “dias seguintes”. Agora, há, também, uma despedida interna, pessoalíssima, de uma certa Luanda. As pessoas que partiram, e a minha partida de Luanda, é descrita como um processo doloroso. As despedidas são isso mesmo: algo que se desprende dentro de nós e que leva consigo materiais que haveríamos de precisar para o resto da vida.

Resistência como norte e essência de sua obra

José Luandino Vieira se nutre na tradição oral e em Guimarães Rosa

Rita Chaves

A Cidade e a Infância é o livro de estréia de José Luandino Vieira, cuja primeira edição remonta a 1960, ou seja, 15 anos antes do nascimento do país. Na verdade, esse é um traço constitutivo da Literatura Angolana: ela precede em muitas décadas o Estado, que, de muitos modos, ajudou a fundar. O nascimento do Estado tem uma data, 11 de novembro de 1975, mas a atividade literária inicia-se no século 19, e a, partir de meados dos 40 do século 20, se fortalece a preocupação com a formação da identidade nacional. Na passagem para os anos 60, sacudida também pela vitória sobre o nazismo e o fascismo, a sociedade colonial que insistia em sobreviver, conheceria a contestação de que a literatura trazia fortes sinais.

Essa coletânea de contos é emblemática desse momento, mas não só. Nela Luandino trabalha alguns elementos que, determinantes em sua obra, viriam a integrar as linhas de força da literatura angolana. E, como não é raro na história das literaturas africanas de língua portuguesa, no quadro dessa primeira edição, autor e livro seriam convertidos em peças de um enredo que exprime o clima conturbado que envolvia Angola no fim da ocupação colonial.

Mobilizados pelo desejo de mudança, muitos angolanos viam na agitação cultural uma via de consolidação do sentimento nacional que conduziria à luta de libertação. Na segunda metade da década de 50, Luandino fazia parte de um grupo de jovens que se reunia à noite para conversar; segundo suas palavras: “Geralmente numa mesa de canto da esplanada de um café atrás do Liceu, Café Monte Carlo. E discutíamos tudo, virávamos o mundo do avesso.” Numa dessas sessões, eles decidem investir num programa de edições como ação política. A opção era começar por um livro de poemas do escritor António Cardoso, mas, por razões conjunturais, decidiram abrir a coleção com um caderno de contos de sua autoria. Da gráfica a que foi entregue, entretanto, para as mãos do autor sairiam apenas três exemplares. Quando foi buscar os outros, foi informado que funcionários administrativos e policiais haviam recolhido o livro, as provas e a composição. Inaugurava-se um longo roteiro de tensões entre o escritor e as autoridades coloniais, que culminaria nos oito anos de recolhimento ao Campo de Concentração do Tarrafal, em Cabo Verde. Parte considerável de sua obra foi escrita aí.

Embora A Cidade e a Infância não revele ainda o escritor extraordinário que José Luandino Vieira viria a ser, os dez contos permitem entrever algumas das qualidades que se reforçariam em sua trajetória intelectual e artística. O livro pode ser visto como um momento inaugural da relação que o escritor estabelece com a tradição literária a que se filia, do mesmo modo que traz sinais da proposta de revitalização dessa mesma tradição que será, afinal, dominante em seu trabalho. As pistas vêm do próprio título: a infância será um ponto essencial na configuração do imaginário trabalhado por Luandino, e a cidade de Luanda seria o espaço primordial, espécie de metonímia do país em ebulição, fundida ao itinerário do autor, até mesmo no nome escolhido para si. Tudo isso ganhará destaque, por exemplo, em Luuanda, livro decisivo em seu percurso, reeditado pela Companhia das Letras em 2006.

Como ocorre em Nós, os do Makulusu, um de seus mais fortes romances, em vários contos o universo infantil surge como a projeção de um tempo propício, em que as contradições, agudizadas no presente da enunciação, pareciam muito mais amenas. Ao regressar ao passado, ao “antigamente na vida” (título do livro de 1974), Luandino parece querer recuperar um tempo mítico, gesto que o tema da infância comumente favorece, mas aqui tem lastro em sua experiência histórica. No fim dos anos 50, na então colônia portuguesa, o crescimento da população branca que viera em busca das condições de vida que julgava merecer, provocou um recrudescimento das tensões raciais. A oposição que sob o código colonial marca violentamente as relações humanas ganhou contornos muito fortes, fato que suavizava a imagem do passado. Essa amenização de períodos anteriores associada ao momento da infância, constitui um dos elementos de ligação da obra de Luandino com outros escritores angolanos. Sente-se muito especialmente nesses contos os ecos do poema O Grande Desafio, de António Jacinto, um dos ícones da Geração dos Novos Intelectuais de Angola, cuja atuação foi crucial em sua formação intelectual e literária. O enfoque da infância vai aproximá-lo também de escritores que vieram depois, como é o caso de Manuel Rui, em Quem me Dera Ser Onda, e Ondjaki, em Bom Dia Camaradas e Os da Minha Rua.

O laço tão forte entre texto e contexto, articulado, inclusive, aos dados biográficos que não foram nunca escamoteados, não significou um descompromisso com a dimensão estética. Nas obras que mais fortemente espelham a maturidade do escritor, a preocupação com a fatura literária se desdobra num conjunto de procedimentos que ancoram o seu trabalho no diálogo entre a tradição e a modernidade, um dos pares dilemáticos que estão ainda hoje na base do debate cultural nos países africanos. Na obra de Luandino, essa questão se projeta na evocação da oralidade explicitada, inclusive em seus romances como o já citado Nós, os do Makulusu, em João Vêncio - Os Seus Amores e em O Livro dos Rios, sua mais recente narrativa, parte primeira de uma trilogia prometida pelo autor, que cultivava o silêncio desde os anos 70. Significativamente, ele retorna a um outro passado - os anos da guerrilha, o “antigamente” que os anos duros da atualidade do país vão convertendo numa espécie de idade mítica, o tempo de fecundação da utopia esfacelada que a realidade angolana ostenta. Também significativo é o deslocamento de Luanda para a mata, que funda uma outra geografia em sua obra.

De um modo geral, em Luandino a matriz narrativa emerge da memória de uma experiência que o aproximou do universo popular, do mundo dos excluídos que circulavam pelos musseques luandenses, os bairros populares, áreas povoadas pelas referências das tradições orais, de que as suas narrativas se nutrem. Contrariamente ao que se espera de uma obra claramente identificada com um projeto político, nelas não predominam personagens exemplares, dispostos a qualquer sacrifício pela causa. Os habitantes da periferia estão sob o seu foco, e, na convivência com militantes, afloram trabalhadores injustiçados e pequenos malandros, aqueles marginais que fazem da trapaça a sua hipótese de sobrevivência numa ordem governada pela injustiça. Entre quitandeiras, sapateiros, pescadores, surgem pequenos ladrões, prostitutas, pobres diabos que dão corpo a um tema essencial: a contraposição da resistência popular ao poder sem legitimidade.

A comunhão entre narrador e personagens incide na elaboração da linguagem, uma das marcas de peso da sua literatura. Assim, a noção de resistência supera a esfera do conteúdo e atinge a estrutura da narrativa. A própria utilização da língua portuguesa é determinada pelo ponto de vista do narrador, fenômeno patente tanto em seu discurso quanto na montagem dos diálogos. Em A Cidade e a Infância, o traço fundamental está na presença de palavras das línguas nacionais angolanas, muito especialmente o quimbundo, língua falada na região da capital. Mas, sobretudo a partir de Luuanda, refina-se o processo de nacionalização da língua portuguesa (que nos faz pensar nos ecos do nosso Modernismo na Literatura Angolana) que alcança o terreno da sintaxe, instituindo a ruptura mais funda. As alterações no plano das regências, as elipses e repetições redimensionam a língua portuguesa, favorecendo ainda a evocação da oralidade de que a escrita angolana é tributária.

Ao leitor brasileiro, certamente, os textos do escritor vão lembrar Guimarães Rosa, a despeito de diferenças significativas que outras leituras revelam na concepção de literatura e, sobretudo, na maneira de estar no mundo. Mas não há dúvida de que a aproximação pode ser produtiva. E Luandino não descarta a importância do autor mineiro em seu trabalho:

“Mas, para mim, e no processo já avançado de escrita em que eu estava - as estórias estavam terminadas - a grande lição de Guimarães Rosa foi a da linguagem. Ele vinha confirmar minha intuição. Era claro, com o exemplo dos seus livros, que se a linguagem utilizada não fosse aquela, não alcançaria o que eu queria dizer com aquelas personagens e o que aquelas personagens queriam dizer da sua relação com o mundo. As personagens são definidas com algumas características físicas, mas é sobretudo o nível da linguagem que as define, o modo como articulam o discurso, como manuseiam a língua portuguesa.”

A leitura de Sagarana, que lhe foi permitida na cadeia, onde era proibida a entrada de livros, mostrou-se, portanto, essencial: legitimou a escrita de Luuanda, e selou a formação de escritor que o volume de estréia anuncia. A impressionante produção, que viria na seqüência, evidencia as especiais qualidades do trabalho de um autor muito particular.

Rita Chaves é professora de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa na Universidade de São Paulo e pesquisadora associada do Centro de Estudos Afro-Asiáticos, na Universidade Cândido Mendes (RJ). Entre outros títulos, publicou Angola e Moçambique: Experiência
Colonial e Territórios Literários (2005)e A Formação do Romance Angolano (2000). É co-organizadora de Brasil/ África: Como se o Mar Fosse Mentira; Marcas da Diferença - Literaturas Africanas de Língua Portuguesa (2006) e Boaventura Cardoso: A Escrita em Processo

sábado, outubro 20, 2007

ANEMIA FALCIFORME: BOA NOTÍCIA

Comentário Moisés Basílio: Uma boa notícia para os portadores de anemia falciforme, uma doença ainda pouco divulgada e que tem maior incidência nas populações afrodescendentes. Vale sempre lembrar, que todo afrodescendente deveria fazer um exame de sangue para saber se é ou não portador do traço falciforme. Como a reportagem a seguir informa, ter o traço falciforme não significa que a pessoa tenha a anemia. Ela só é possível ser passada geneticamente aos filhos de casais possuidores do traço. Portanto, se o casal tem a devida informação, obtida através de um exame de sangue, pode decidir com consciência o planejamento de um filho. Axé!

Fonte: Jornal Folha de São Paulo - Ciência - 8/10/2007

"Nasci novamente", diz dona-de-casa

Em Salvador, experiência com células-tronco mostra um caminho promissor para os portadores de anemia falciforme

Só na Bahia, 12 pacientes já receberam os transplantes e outros 18 estão na fila; alguns deles conseguiram até jogar bola outra vez

Edson Ruiz/Folha Imagem

O médico Gildásio Daltro (ao centro) e os pacientes Hugo de Souza e Ana Cristina Souza, que são tratados com células-tronco na Universidade Federal da Bahia

LUIZ FRANCISCO
DA AGÊNCIA FOLHA, EM SALVADOR

Quem vê a disposição e o bom humor demonstrados pela dona-de-casa baiana Ana Cristina Oliveira Luz Souza, 37, não imagina o seu sofrimento até o primeiro semestre do ano passado, quando se submeteu a um implante de células-tronco para combater os efeitos da anemia falciforme.
"Minha primeira crise aconteceu quando tinha um ano. Depois, na adolescência e juventude, passei por várias cirurgias, perdi os dentes, entrei em depressão, fiz transfusões, e os médicos não conseguiram identificar o meu problema. Só aos 27 anos, quando trabalhava de caixa em um supermercado, e os clientes fugiam de mim pensando que eu tinha hepatite, soube que o meu problema era a anemia falciforme", disse.
Até ser operada no Hospital das Clínicas de Salvador pelo médico Gildásio Daltro, a dona-de-casa não conseguia caminhar mais do que 20 minutos. "Eu ficava praticamente em casa, tinha vergonha de sair com os meus amigos para fazer as coisas mais simples, como ir à praia ou a um restaurante."
Depois da primeira cirurgia [na perna do lado esquerdo], Ana Cristina realizou um sonho de quase toda criança -andar de bicicleta.
"Minha vida passou por uma mudança completa depois da operação. Agora, convivo melhor com a doença e sei que posso fazer muitas coisas que antes, para mim, eram impossíveis por causa das fortes dores, como andar de bicicleta."
Desde que foi operada, a dona-de-casa retorna a cada quatro meses ao Hospital das Clínicas para ser avaliada. "Os resultados são excelentes e ela vai ficar ainda melhor depois de ser operada do lado direito", disse Gildásio Daltro.

Nas quatro linhas
Policial militar à disposição da governadoria, Hugo Sérgio Miranda de Souza, 43, também fez o implante de células-tronco em março do ano passado. "Sentia dores terríveis pelo corpo, tinha muitas dificuldades para dirigir, andar com rapidez ou fazer qualquer tipo de exercício físico."
Após a cirurgia, Souza joga futebol duas vezes por semana. "Meus dois irmãos, que também têm a doença, não conseguem mais dirigir e jogar futebol. Quando caminham 15 minutos, têm de parar por causa das dores." "Minha auto-estima aumentou muito e vai ficar ainda melhor quando eu for operado do lado esquerdo."
Segundo o médico Gildásio Daltro, 12 pacientes já realizaram implantes de células-tronco no Estado -outros 18 estão na fila. "Os estudos demonstram que cerca de 15% da população de Salvador (cerca de 400 mil pessoas) é portadora da anemia falciforme ou tem o traço da doença.
A anemia falciforme, que é incurável, tem causa genética e atinge em grande parte os afrodescendentes. As complicações aparecem por causa de uma deformação que ocorre nas membranas dos glóbulos vermelhos. Milhões dessas células circulam por todo o corpo.
Com a deformação genética, os glóbulos vermelhos, em vez de facilitar, passam a impedir a circulação e a oxigenação do sangue. É o momento em que os problemas de saúde começam a aparecer.
O histórico da doença mostra que a África é o continente que mais tem pessoas com o tipo de mutação genética que acaba provocando o aparecimento da anemia falciforme. Os pacientes sofrem bastante com problemas nos ossos das pernas, principalmente no fêmur.
Algumas pessoas podem herdar o gene defeituoso para a anemia apenas do pai ou da mãe. Nesse caso, apesar de elas terem o traço da doença, terão uma vida saudável. A doença aparece quando a pessoa herda genes defeituosos tanto do pai quanto da mãe.

sábado, outubro 13, 2007

SAMBA DO RIO DE JANEIRO: PATRIMÔNIO CULTURAL IMATERIAL DO BRASIL

COMENTÁRIO MOISÉS BASÍLIO: A boa notícia da semana foi o reconhecimento do Samba do Rio de Janeiro como patrimônio cultural imaterial do Brasil. O conceito de patrimônio cultural imaterial ainda é pouco conhecido. O IPHAN - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - órgão do MEC - Ministério da Cultura - tem considerado patrimônio imaterial aquelas manifestações que denotam a forma de pensar e de ver o mundo, como cerimônias, danças e artesanatos do povo brasileiro. Além da notícia, clique no neste link http://portal.iphan.gov.br/portal/baixaFcdAnexo.do?id=771 para ter acesso ao documento Dossiê do Samba Carioca, e ler o rico material que fundamentou a decisão do IPHAN. Parabéns ao Samba! Axé!



Fonte: Site IPHAN acessado em 12/10/2007
Samba do Rio de Janeiro

O samba é um bonito modo de viver. (Nelson Sargento, sambista da velha-guarda)

O mais recente Patrimônio Cultural do Brasil tá no pé do sambista, na mão do pandeirista, no som do cavaco, em cima dos morros, na Marquês de Sapucaí. O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) registrou oficialmente as matrizes do samba do Rio de Janeiro – samba de terreiro, partido-alto e samba-enredo –no Livro de Registro das Formas de Expressão, nesta terça-feira, 9/10.

O pedido de registro foi feito pelo Centro Cultural Cartola, com apoio da Associação das Escolas de Samba do Rio de Janeiro e da Liga Independente das Escolas de Samba (Liesa). Nilcemar Nogueira, presidente do Centro e neta do compositor Agenor Ferreira, o Cartola, fez o pedido, pois temia o enfraquecimento das matrizes do samba do Rio. "Meu avô foi um dos pioneiros da popularização dessa forma de samba, no final da década de 20. Quero proteger seu legado cultural", alega.

A pesquisa que levou ao registro, feita pelo Centro Cultural Cartola com orientação do Iphan, reúne um conjunto de referências históricas: monografias, teses, livros, vídeos, reportagens, discografia da época e o testemunho de sambistas da velha guarda, como Monarco, Xangô da Mangueira, Nelson Sargento. Desde as reuniões em casa de Tia Ciata, no início do século 20, a pesquisa identifica o samba nos blocos, nos morros, nas ruas e quintais. O estudo mapeou as seis escolas de samba mais antigas do Rio: Mangueira, Portela, Salgueiro, Vila Isabel, Império Serrano, Estácio de Sá.

A partir do material pesquisado, o Iphan produziu um vídeo-documentário, que estará disponível em breve, veja também, em anexo no fim desta matéria, o dossiê que foi produzido.

Matrizes do samba

O samba de terreiro faz referência aos espaços de encontro e celebração dos sambistas, que ali dançam um samba livre com as marcas de sua ancestralidade. Nos terreiros, pátios das escolas de samba, cantam as experiências da vida, o amor, as lutas, as festas, a natureza e a exaltação das escolas e da própria música.

Já o partido-alto é marcado pelos versos de improviso. Nasceu das rodas de batucada, onde o grupo marca o compasso, batendo com a palma da mão e repetindo o refrão e inventando estrofes segundo um tema proposto. É o refrão que serve de estímulo para que um participante vá ao centro da roda sambar e com um gesto ou ginga de corpo convide outro componente da roda.

Com a criação das primeiras escolas de samba, no final da década de 1920, o samba se adaptou às necessidades do desfile. Criou-se uma nova estética e uma nova modalidade: o samba-enredo. O compositor elabora seus versos com base no tema (enredo) a ser apresentado pela escola, descrevendo uma história, de maneira melódica e poética. De sua animação e cadência depende todo o conjunto da agremiação, tanto em termos de evolução como de envolvimento harmônico.

Salvaguarda

A preservação da tradição do samba no Rio de Janeiro foi pensada de forma a retomar a prática espontânea, de improviso, sem limitar a transmissão do saber às aulas das escolas de samba. Com a espetacularização do samba-enredo, diminuíram-se os espaços para se praticar as formas mais tradicionais do samba – partido-alto e o samba de terreiro. Houve redução da quantidade de solistas de instrumentos como o pandeiro e a cuíca, e diminuição no número de partideiros, os improvisadores.

Por isso, o Iphan recomenda a criação de um plano de salvaguarda que incentive, apóie e promova ações de valorização das formas originais do samba no Rio de Janeiro. Esse plano requer a articulação das comunidades de sambistas, inclusive da velha-guarda, principais detentores da tradição e dos saberes.

Entre as ações preliminares, sugeridas a partir da demanda dos próprios sambistas, está o incentivo à pesquisa histórica e à produção de biografias. Ao mesmo tempo, promover a encontros de mestres partideiros e versadores, nas próprias comunidades originais dos sambistas, com a presença dos mais jovens. O registro em áudio e vídeo desses encontros ajudaria a difundi-los e revitalizá-los.

O samba do Rio de Janeiro contribui para a integração social das camadas mais pobres. Tornou-se um meio de expressão de anseios pessoais e sociais, um elemento fundamental da identidade nacional e uma ferramenta de coesão, ajudando a derrubar barreiras e eliminar preconceitos. Incentivar a prática do samba é também uma maneira de minimizar as diferenças sociais.

A identificação e o reconhecimento das formas de samba brasileiras é uma das diretrizes do Iphan, que se insere na proposta da atual gestão do Ministério da Cultura, de construção de um mapa cultural do Brasil. Entre os 11 bens reconhecidos como patrimônios imateriais brasileiros, se destacam algumas das várias formas de samba dançadas no território nacional. Já receberam o título: o samba de roda no Recôncavo Baiano, o tambor de crioula no Maranhão e o jongo no Sudeste.

PATRIMÔNIO IMATERIAL

A Unesco define como Patrimônio Cultural Imaterial as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas e também os instrumentos, objetos, artefatos e lugares que lhes são associados e as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos que se reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural.

O Patrimônio Imaterial é transmitido de geração em geração e constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade, contribuindo assim para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana.

Programa Nacional do Patrimônio Imaterial
Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial
Bens Registrados
Processos de Registro em Andamento
Inventário Nacional de Referências Culturais - INRC
Inventários Realizados
Inventários em Andamento
Planos de Salvaguarda

sábado, outubro 06, 2007

PARA QUE SERVE O LIVRO DIDÁTICO?

COMENTÁRIO MOISÉS BASÍLIO: A grande mídia escrita fez um grande burburinho, nas últimas semanas, a respeito do tal livro didático de história do Mário Schmidt. O artigo a seguir, do Rui Falcão, é esclarecedor e nos possibilita novos elementos para entender essa questão em nível macro.

Em nível micro, no cotidiano da escola, como professor, a cada três anos, vejo-me no ingrato papel de participar da escolha do livro didático que será adotado. Se por um lado, em tese, o livro pode se tornar um bom instrumento de apoio para a instrução dos alunos, por outro lado, o que acontece na prática, pelo que tenho presenciado é um grande desperdício.

Não tenho dados objetivos, mas avalio que a relação custo/benefício é ruim. Em minha prática docente o livro didático não é de grande valia, pois a dinâmica do meu plano de aulas parte da realidade das turmas com quem trabalho e por isso os conteúdos sou eu quem seleciono.

A própria praticidade do livro didático é questionável para o uso em sala de aula, pois num só dia de aula os alunos são obrigados a carregar um enorme volume de até 5 livros pesados. Claro que não carregam e a maioria dos professores, depois de se desgastarem nas cobrança não atendidas, acabam por abandonarem o seu uso sistemático em sala de aula.

Outro ponto que considero importante de se levantar é o desprezo, que noto por parte dos alunos, em relação aos livros didáticos. Minha percepção é que os alunos não gostam desse tipo de livros e um indicador é a alta taxa de destruição. Na minha experiência em sala de aula, no início do anos, antes de entregar os livros aos alunos, preparo um seqüência didática para discutir a importância de se conservar o material. Para não cansar os alunos, com o peso do livro e também por que não utilizo o livro em todas as aulas, pois produzo o meu próprio material didático, peço para que os alunos deixem os livros em sua casa, para consulta e como apoio para a lição de casa. Separo uma parte dos livros, que fica na escola, para uso em sala de aula. Mesmo assim com todos os cuidados, a cada fim de ano, pelo menos um terço dos livros são destruídos.

Cada vez mais estou chegando à conclusão de que os caminhos mais proveitosos, principalmente para os alunos, são: Investir nas bibliotecas das escolas, nos laboratórios de informática educativa e na produção de materiais didáticos elaborados pelos próprios professores, do que gastar na compra dos atuais livros didáticos. Axé

Fonte: Site do PT - www.pt.org.br/sitept/index_files/noticias_int.php?codigo=3571
O livro didático, sob o risco da desnacionalização

Rui Falcão

Ponto

A denúncia de doutrinação ideológica em livro didático distribuído pelo MEC, feita pelo diretor de jornalismo da TV Globo, Ali Kamel, parece ter trazido a público muito mais do que pretendia o autor. Ao fazer emergir o jogo bruto de interesses financeiros em que se digladiam as grandes editoras pelo controle do mercado nacional de livros didáticos, Ali Kamel presta um desserviço à causa da oposição ao governo Lula, que é também a sua, levantando inadvertidamente a ponta do véu que encobre a promiscuidade entre gente tucana e o capital estrangeiro, pela desnacionalização do setor.


Como se recorda, em artigo publicado no jornal O Globo – depois reproduzido por outros jornais – Ali Kamel condena a coleção didática Nova História Crítica, de Mário Schmidt, por contrabando ideológico nas escolas públicas. No artigo, também insinua que o MEC incentiva a adoção da obra. Dá assim testemunho público de sua ignorância no tema, por desconhecer que livros didáticos da escola pública são antes avaliados por especialistas, em sistema de rodízio, organizados em comissões independentes, constituídas por departamentos das universidades públicas, sem interferência alguma do governo, para serem, depois, escolhidos livremente pelos professores. O MEC limita-se a reunir tais avaliações, imprimi-las e distribuí-las aos professores, sob a forma de Guia do Livro Didático, como contribuição para facilitar o trabalho de seleção. Lembre-se de que a escolha do livro didático é prerrogativa inalienável dos professores.


Não é o caso aqui de entrar na polêmica sobre o conteúdo do livro - amplificada pela grande mídia em razão de seu suposto potencial de mobilização contra o governo Lula -, pois é sabido que o Brasil conta com um dos melhores sistemas de avaliação de livros didáticos do mundo, sistema criticado pelas grandes editoras quando de sua adoção em 1996, pelo risco de “controle ideológico”, segundo lembra Maria Encarnação Beltrão Sposito, professora de Geografia da Universidade Estadual Paulista e avaliadora do Programa Nacional do Livro Didático.


Mas não é apenas a desculpa do controle ideológico que leva parte das editoras a se insurgir contra o controle de qualidade sobre o livro didático, exercido pelo sistema de ensino público, sob o patrocínio do MEC. A liberdade atual de que desfruta o mercado de livros didáticos não convém às grandes editoras, constituídas em oligopólio multinacional. Estas não se conformam com o processo independente e democrático de avaliação e de seleção que há cerca de uma década e meia passou a presidir as compras do MEC. O seu caráter descentralizado, envolvendo dezenas de instituições públicas de ensino superior, distribuídas por todo o País, e dezenas de milhares de professores, já não permite a investida sorrateira e centralizada do lobby junto às autoridades de Brasília pela conquista do butim, como ocorreu durante décadas no passado.


Isso não quer dizer que a política de livros didáticos se tenha libertado inteiramente da influência mercenária exercida historicamente pelas grandes editoras: a cada três anos, o governo brasileiro volta ao mercado para a compra de novos livros, enquanto nos EUA, por exemplo, as compras ocorrem somente a cada dez. Lá, além do conteúdo, também o manuseio e a conservação do livro, por parte dos alunos, servem a propósitos pedagógicos: ensinam sobre a necessidade de se gastar bem o dinheiro público na sua compra. Por isso, depois de utilizados, os livros são passados adiante, para os alunos entrantes, enquanto no Brasil são considerados descartáveis, para propiciar o retorno amiúde do governo ao mercado, para novas compras.


São tais características, entre outras, que fazem do mercado brasileiro do livro didático uma nova China do mundo editorial - o mais cobiçado dentre todos, e por ser também o maior do mundo. O Programa Nacional do Livro Didático- PNLD conta em 2007 com orçamento de R$ 620 milhões - uma cifra vultosa, mas justificável como investimento que faz chegar a 30 milhões de alunos de escolas públicas, de graça, 120 milhões de exemplares. Trata-se de um mercado que cresce a 20% ao ano, o dobro da média do mercado editorial – didáticos e não didáticos.


É sobre esse pano de fundo que se deve analisar a investida de Kamel contra uma coleção didática, de grande sucesso de vendas, segundo a estimativa do mercado. No que pareceu ser uma ação orquestrada, segundo o acúmulo de evidências, enquanto Kamel disparava o seu ataque numa página de O Globo, o jornal espanhol El País estampava no dia seguinte em sua manchete (19/09/2007): “Brasil entrega a 750.000 estudiantes un polémico manual de historia”. “El libro de texto ensalza el comunismo y la revolución cultural china”. Ao mesmo tempo, o ex-ministro da Educação, o deputado federal Paulo Renato de Souza (PSDB-SP) - durante cuja gestão o “livro comunista” havia sido incluído no rol dos recomendados no Guia do Livro Didático, do MEC -, cuidava de divulgar as denúncias no site de seu partido, além de criticar à imprensa um suposto relaxamento do atual governo na defesa dos critérios de independência e neutralidade adotados pelo MEC.

Por mais estranho que possa parecer o zelo pressuroso de um jornal espanhol para com a boa educação das crianças brasileiras, difícil é assumir como a mais plausível a hipótese de casualidade na coincidência entre os fatos. Com certeza, El Pais não visava, com a divulgação do “escândalo”, levar coisa nova para o seu leitor vinda do Brasil: não é de hoje que se contam às centenas os livros desaconselhados pelos especialistas a serviço do MEC – e está longe de ser a primeira vez que o MEC intervém para desautorizar a sua utilização no ensino público.


Ocorre que El País é propriedade da empresa Santillana, que controla a editora Moderna – uma das que mais interesse tem no mercado brasileiro de livro didático, um mercado concentrado em mãos de umas poucas grandes editoras, dentre as quais a espanhola. Ocorre também que a Santillana conta em seu corpo de consultores com o ex-ministro da Educação, Paulo Renato de Souza, um dos responsáveis na gestão FHC pela decisão de estender a todos os estudantes da primeira à quarta séries o acesso gratuito aos livros didáticos de Português, História e Geografia, Ciências e Matemática – decisão que viria a converter o governo federal no maior comprador de livros didáticos, e o mercado brasileiro, no maior do mundo, como deve ter previsto o ex-ministro da Educação, antes de se incorporar às hostes da Santillana.


Além de contratar o ex-ministro tucano da Educação, a Santillana soube fortalecer a promiscuidade, assim constituída, entre os seus interesses e o de ex-membros do governo FHC, ao contratar também Mônica Messenberg, braço direito de Paulo Renato de Souza no MEC na condição de executiva responsável pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. Nos dias seguintes à sua saída do MEC, sem respeitar o período ético e legal da quarentena, Mossenberg passou a ocupar alto cargo executivo no conglomerado Santillana, como diretora de assuntos institucionais (leia-se: lobby junto a governos, secretarias estaduais e municipais de Educação) da editora Moderna.


Acrescente-se ao rol de coincidências o fato de a Geração Editorial, responsável pela produção da Nova História Crítica, ser uma das poucas editoras de porte ainda em mãos do capital nacional.


A escaramuça da Santillana contra o concorrente nacional é apenas mais um lance na disputa pelo controle do mercado, da qual participam também outras empresas multinacionais e fundos de investimentos norte-americanos. A desnacionalização da produção do livro didático, mediante colaboração tucana - e o risco assim posto à autonomia e à soberania nacional -, é também apenas um dos muitos desafios que deveriam constar do debate sobre a responsabilidade do Estado na definição de uma política pública do livro didático, que o governo Lula e o meu partido estão a dever à nação.


Durante muitos anos, a produção de livros didáticos foi conduzida em primeira pessoa pela iniciativa privada, sem a participação do governo, que se limitava a sancioná-la em suas compras, produção sem compromisso com critérios de qualidade educacional e com a adequada informação científica. As escolhas feitas pelo Ministério da Educação não assentavam sobre parâmetros e critérios objetivos e transparentes, deixando caminho aberto ao tráfico de influência e à livre pressão das grandes editoras, em geral associadas a políticos e cujo número não passava historicamente de meia dúzia.


Um tal faroeste - que bem poderia simbolizar o ideal liberal do livre mercado -, encontrou o começo de seu fim na discussão nacional do documento “Definição de Critérios para Avaliação dos Livros Didáticos”, publicado em 1994 pelo MEC, em parceira com a Fundação de Assistência ao Estudante e com a Unesco. Seminários e reuniões, realizados a seguir, trouxeram subsídios para a definição dos novos critérios de avaliação. Encerrada a fase de discussão, foi constituída uma equipe de professores, para realizar a análise dos livros. Cada publicação passou a ser avaliada por dois docentes. Se um parecer era contrário ao outro, o livro era submetido à avaliação de um terceiro especialista. Publicações como as de Ciências, das quais fazem parte conhecimentos de diferentes áreas (biologia, astronomia, física etc.), chegaram a ser analisadas até por oito professores. Assim se deu início ao processo de avaliação independente e democrática dos livros didáticos no Brasil, atualmente materializada nos Guias do Livro Didático, distribuídos pelo MEC. Foi um grande passo na construção de uma política do livro didático. Falta muito, porém.


A mais recente ameaça ao processo independente e democrático de seleção e escolha do livro didático, sob a coordenação do MEC, surge de grupos educacionais - empresas que exploram a educação privada e que ingressam agora também no setor público, mediante a venda de material didático diretamente às prefeituras, para ser distribuído aos alunos nas escolas. Trata-se de um conluio entre prefeitos e grupos educacionais, que tem por objetivo neutralizar e reverter na prática as diretrizes e normas sobre o livro didático estabelecidas pelo MEC, trazendo de volta o tráfico de influência, a ausência de controle de qualidade e eventual corrupção no processo de compra.

Como expediente para escapar ao controle do MEC, prefeitos e empresas entendem-se diretamente na negociação de “apostilas” e “material pedagógico” - eufemismos utilizados para dispensar o governo federal de prover às escolas do município os livros didáticos avaliados pelos especialistas. Para as prefeituras, a compra desse material representa um custo adicional para o orçamento municipal, já que o MEC distribui gratuitamente livros para o ensino fundamental. O argumento utilizado pelos prefeitos para justificar a realização do negócio diretamente junto às editoras é que o material didático adquirido representa um “diferencial de qualidade”. Segundo informações divulgadas pela imprensa, o negócio do “diferencial de qualidade” entre prefeitos e grandes editoras tem-se revelado como um dos mais rentáveis e auspiciosos, apresentando resultados financeiros que, a cada ano, chegam a 50% acima dos do ano anterior. Assim, entra pela porta dos fundos o que o MEC nos últimos anos havia conseguido expelir pela porta da f
rente.


São elementos suficientes para justificar a necessidade de se promover um debate nacional sobre o papel do Estado na definição de uma política nacional do livro didático.

Rui Falcão édeputado estadual (PT-SP)

sábado, setembro 29, 2007

OCUPAÇÃO E GREVE NA FUNDAÇÃO SANTO ANDRÉ

Comentário Moisés Basílio: Recebi e publico a mensagem de apoio que meu filho Pedro enviou aos companheiros da Fundação Santo André. Axé!

OBS: Esta mensagem segue como apoio contra os atos arbitrários que o Centro Universitário Fundação Santo André (CUFSA) e seus administradores vêm tendo contra os alunos que lutam pelos direitos de uma educação pública e de qualidade. Mais informações sobre o assunto visitem: http://ocupacaofsa.blogspot.com

Salve, salve companheiros da FSA!

É com grande satisfação que escrevo esta mensagem, já que acompanhei e venho acompanhado os atos de selvageria por parte de um grupo, representado pela desgraça pelada do senhor excelentíssimo reitor Odair Bermelho, que está preocupado em servir as exigências do mercado indo contra um modelo de Universidade que precariamente está vigente em nosso país e na America Latina desde o levante em Córdoba.
Creio não ser um problema exclusivo do Centro Universitário Fundação Santo André: o sucateamento, a falta de investimento, a qualidade na formação, o suporte para alunos pobres, etc. Digo essas palavras, pois sabemos que a invasão de faculdades privadas com o aval do MEC, entre outras coisas, liberando cursos de licenciatura curta é apenas o começo para um projeto bem maior que é a total mercantilização da educação. Não podemos nos esquecer que esse processo de sucateamento do ensino público já está em vigor há tempos. Quem já não viu ou ouviu falar do ensino público de antigamente, que se tinha vestibulinhos para entrar nas escolas públicas e quem estudava em escola privada era apenas pessoas endinheiradas que não passavam nos testes públicos. Eu mesmo tenho boas recordações do ensino público na época em que a ex-prefeita Luiza Erundina exercia o cargo na cidade de São Paulo.
Hoje com todos os problemas ainda nos deparamos com a reforma universitária que tenta resolver problemas de vagas apenas aumentando as mesmas sem que haja verbas para novos professores serem contratados, ou ainda, com a proposta de diversificar cursos como vemos na USP Leste e Universidade Federal do ABC, com cursos de humanidades, tecnologias, gestão ambiental, etc não se preocupando com a qualidade da formação dos jovens, já que essa formação é genérica, sem profundidade e com objetivos finais bem definidos e claros, isto é, visando o mercado. Talvez fique mais claro se eu usar um exemplo dado pelo Prof° Roberto Leher da Universidade Federal do Rio de Janeiro: è como se você entrasse no shopping onde todos tem acesso e podem se deliciar vendo os produtos expostos nas vitrines das lojas mais chiques, produtos esses que durarão muito tempo, que serão recordados ao longo da vida, etc, porém essas opções custam dinheiro e então você se contenta com um pacotão da loja de departamentos(C&A, Lojas Americanas e assim por diante). Então ao invés de fazer Geografia que lhe custará mais tempo e conseqüentemente mais dinheiro ele fará Gestão Ambiental, ou seja, um pacotão genérico e sem profundidade.
Pode-se ainda perguntar-se: não será bom um curso com menos duração? A pessoa não sairá com uma carreira? O aumento de vagas não será uma forma de inclusão? Não é interessante a diversificação dos cursos?
Ora , vamos pegar o que disse o Reitor da Federal da Bahia: - já que hoje se vive um momento, no processo do desenvolvimento capitalista, que o trabalho é flexível e que as pessoas não tem carreiras especificas para seguir, então a formação dessas pessoas deveria ser flexível também. Interessantíssimo um reitor de uma Universidade pública afirmar isso, pois ele pode deter o Poder do conhecimento de fato, enquanto a massa se contentará com o pacotão da loja de departamentos.
Indo mais fundo e fazendo uma analise mais global, vemos que a onda do etanol no Brasil não é resultado de uma decisão governamental apenas e sim uma necessidade dita mundial, mas que na verdade atende interesses de nações nortistas, tais como, estadunidense, união européia e Japão, fundamentalmente. Se for verdade está afirmação, não teria dedos imperialistas por trás dessa reestruturação do ensino público no Brasil? Porque não se Reestrutura a Harvard ou então a Universidade de Berlim? Porque não diversificam seu conhecimento?
Uma Coisa certa é que precisamos de intelectuais e pesquisadores em nosso país, tanta vezes conduzido pelo coronelismo, igreja, industriais, corporações e lobbystas. Só na região do Amazonas, segundo estimativas, precisamos de milhares de Doutores. Precisamos pensar o futuro do país e do mundo, porém embasado em conhecimento verdadeiro. Não digo aqui que o conhecimento positivo que vem sendo construído desde o período da modernidade será a salvação, porém muito menos esse que estão querendo nos impor. Partiremos dele sim, pois é o que está posto! Mas queremos mais, eu quero mais! Quero um conhecimento sem doutrinas ou paradigmas, um conhecimento que possa ser questionado. Fora a racionalização e que paire a racionalidade. “A verdadeira racionalidade conhece os limites da lógica, do determinismo e do mecanicismo... É não só crítica, mas autocrítica” (MORIN, E. – Os sete saberes necessários à educação do futuro – p. 23).
Creio ter me alongado na discussão, porém o que quero deixar claro é a necessidade de apoio as instituições públicas e a Fundação faz parte desse rol. E mais, é uma Universidade com um histórico de luta e que foi fundada para atender a classe operária que ali era crescente. Com o passar dos anos a Fundação Santo André que não cobrava nada passou a cobrar um valor simbólico e hoje vemos mensalidades que ultrapassam os R$ 500,00. Vemos aqui que as apropriações dos espaços públicos não se dão de uma hora pra outra e pior se dão dentro de uma legalidade democrática e com o cansaço da população que necessita desses lugares. Se conversássemos com o Capeta sem dente, isto é, o reitor ele nos afirmaria que os cursos só estão fechando, pois não há concorrentes no vestibular e são necessários tantos alunos para abrir uma sala ou poderia dizer que a FAFIL, principal prejudicada pela perda de salas, não dá lucro.
E digo mais: A fundação Santo André se diferencia, talvez, das outras universidades públicas, pois lá as pessoas estão a fim de aprender de fato, já que lá não se tem possibilidade de uma pós-graduação, mensalidades são abusivas e também a lógica dos colegiados perpassam a quantidade de produções científicas publicadas e o foco é a qualidade do ensino.
Ora, porque ele não lutou para que a implementação da federal do ABC fosse a fundação já que essa tinha uma estrutura montada, porém como já foi dito acima talvez não fosse interesse do governo federal o modelo de Universidade da Fundação que faz pensar. A federalização não eliminaria a falta de interesse por vaga? Pelo que me consta as pessoas não desanimaram de estudar e sim não tem incentivo e em muitos casos olham grade horária da Fundação Santo André e tem que pagar R$500,00, tem aulas de sábado, duração de 4 anos o curso e pelo outro lado as instituições privadas de ensino que cercaram a Fundação cobram R$300,00 e são apenas 3 anos. Claro que de um lado a Fundação oferece licenciatura e bacharelado de qualidade e outras privadas (UNIBAM,UNIP,...) são os cursos de licenciatura curta como já citado acima.
Pergunta-se: A perda de qualidade na formação de profissionais não está legitimada? Se a fundação Santo André é pública então porque se cobra R$500,00 de mensalidade? Os cursos de licenciatura curta estão preocupados com a qualidade dos futuros professores da região?
Apesar de quere falar mais e poder estar ai ajudando neste momento de luta que eu sempre sonhei que aconteceria, deixo aqui meu apoio à ocupação, ao acampamento (PESSOAL DA RESISTÊNCIA) e que tenhas forças a cada dia para lutar contra uma força local, mas que não deixa de refletir o modo de vida e produção da Sociedade industrial capitalista desenvolvida e a qual estamos condicionados.
Saudações brasilianas,
Pedro Carignato B. Leal
Ex-aluno de Geografia da Fundação Santo André e atual aluno de Geografia da Federal de Uberlândia

sábado, setembro 22, 2007

A CULTURA DA PERIFEIRA VAI À LUTA

Comentário Moisés Basílio: A cultura produzida na periferia, de uns tempos para cá, está dando um salto de qualidade. Já não se trata de produzir para a indústria cultural para ter visibilidade, mas de criar espaços próprios de produção e circulação dos bens culturais. A quantidade de iniciativa é enorme, mas só eventualmente a grande mídia divulga, como no caso dessas matéria que reproduzo abaixo, aqui no blog. Axé!

Fonte: Revista Época - ed. 487 - 23/09/2007 - http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG79089-6014-487,00.html

Os novos antropófagos

Artistas da periferia de São Paulo lançam sua própria Semana de Arte Moderna

Eliane Brum



Manifesto da Antropofagia Periférica

A Periferia nos une pelo amor, pela dor e pela cor. Dos becos e vielas há de vir a voz que grita contra o silêncio que nos pune. Eis que surge das ladeiras um povo lindo e inteligente galopando contra o passado. A favor de um futuro limpo, para todos os brasileiros.
A favor de um subúrbio que clama por arte e cultura, e universidade para a diversidade. Agogôs e tamborins acompanhados de violinos, só depois da aula.
Contra a arte patrocinada pelos que corrompem a liberdade de opção. Contra a arte fabricada para destruir o senso crítico, a emoção e a sensibilidade que nasce da múltipla escolha.
A Arte que liberta não pode vir da mão que escraviza.
A favor do batuque da cozinha que nasce na cozinha e sinhá não quer. Da poesia periférica que brota na porta do bar.
Do teatro que não vem do “ter ou não ter...”. Do cinema real que transmite ilusão.
Das Artes Plásticas, que, de concreto, querem substituir os barracos de madeira.
Da Dança que desafoga no lago dos cisnes.
Da Música que não embala os adormecidos.
Da Literatura das ruas despertando nas calçadas.
A Periferia unida, no centro de todas as coisas.
Contra o racismo, a intolerância e as injustiças sociais das quais a arte vigente não fala.
Contra o artista surdo-mudo e a letra que não fala.
É preciso sugar da arte um novo tipo de artista: o artista-cidadão. Aquele que na sua arte não revoluciona o mundo, mas também não compactua com a mediocridade que imbeciliza um povo desprovido de oportunidades. Um artista a serviço da comunidade, do país. Que, armado da verdade, por si só exercita a revolução.
Contra a arte domingueira que defeca em nossa sala e nos hipnotiza no colo da poltrona.
Contra a barbárie que é a falta de bibliotecas, cinemas, museus, teatros e espaços para o acesso à produção cultural.
Contra reis e rainhas do castelo globalizado e quadril avantajado.
Contra o capital que ignora o interior a favor do exterior. Miami pra eles? “Me ame pra nós!”.
Contra os carrascos e as vítimas do sistema.
Contra os covardes e eruditos de aquário.
Contra o artista serviçal escravo da vaidade.
Contra os vampiros das verbas públicas e arte privada.
A Arte que liberta não pode vir da mão que escraviza.
Por uma Periferia que nos une pelo amor, pela dor e pela cor.


É TUDO NOSSO!
Sérgio Vaz
Poeta da Periferia




ARTISTAS DE DOIS MUNDOS
Na foto, Sérgio Vaz e a comissão organizadora da Semana de Arte Moderna da Periferia, no boteco do Zé Batidão, na zona sul de São Paulo.

O escritor Oswald de Andrade, um dos líderes da Semana de Arte Moderna de 1922, fez uma profecia: "a massa ainda comerá do biscoito fino que fabrico". Morreu sem vê-la realizada. Oitenta e cinco anos depois do marco do movimento modernista, Sérgio Vaz, poeta da periferia de São Paulo, pretende comer o biscoito fino, o próprio Oswald, o Bispo Sardinha, a "elite que viaja para Miami" e mais alguma coisa. E depois, diz ele, "vomitar". Líder da Cooperifa, o maior sarau de poesia do Brasil, Vaz é o idealizador da Semana de Arte Moderna da Periferia, a Semana de 2007. De 4 a 11 de novembro, os artistas querem "provocar" o centro onde o destino do país é forjado – e onde também se determina o que é arte. Se fosse vivo, o modernista Oswald possivelmente teria um sorriso nos lábios ao ser devorado pelos antropófagos das margens de São Paulo.

A força da Semana de 2007 vem da primeira geração de escritores da periferia, forjada à margem da escola, na legião dos sem-museu, sem-cinema, sem-teatro, sem-biblioteca. Pela primeira vez, o Brasil tem não um, nem dois autores, mas um movimento literário nascido nas margens. Seus protagonistas se identificam pela origem, marcam essa diferença e buscam uma estética fundada nessa raiz. Eles se apropriaram de um código da elite – a palavra escrita – e começaram a escrever sua versão da História. Agora, preparam-se para sacudir o marasmo cultural de um país que viu muito pouco de original desde o tropicalismo dos anos 60.

“Antes eram os intelectuais que escreviam sobre a periferia. Hoje, alguns dizem que não sabemos escrever. Estamos chegando agora pra aprender, depois de 500 anos”, diz Sérgio Vaz, de 43 anos. “A arte sempre foi o pão do privilégio. Agora é servida no café-da-manhã da periferia. Com menos manteiga, talvez, mas arte. Nossa literatura tem menos esses, menos crases, mas é literatura. Agora que escrevemos sobre nós, o que os intelectuais vão fazer? Que comam brioches!”

1) Sérgio Vaz, 2) Jairo, 3) Sales, 4) Gunnar, 5) Wéley Noog, 6) Ademir, 7) Cocão, 8) Ana Bela, 9) Marcelo, 10) Mavortirc, 11) Juliana, 12) Robson Canto, 13) Casulo, 14) Preto Will, 15) Ricarda, 16) Rose Dorea, 17) Tadeu, 18) Euller, 19) Roberto, 20) Jair Guilherme, 21) Wagner Felipe, 22) Marcio Batista, 23) Lerói, 24) Anderson, 25) Vicente

Mais uma provocação. O antropófago da periferia vive na última de uma tripa de casas nos arredores de Taboão da Serra, na Grande São Paulo. Deixou uma carreira de auxiliar de escritório para ser poeta no Brasil. Vendeu 5 mil livros de poesia sem editora e sem livraria, de mão em mão. Só o quinto – Colecionador de Pedras (Global) – chegou ao mercado. Em 2001, Vaz criou a Cooperativa Cultural da Periferia (Cooperifa) ao ocupar uma fábrica abandonada para fazer um evento de arte. Já estava tentado pela Semana de 1922.

O sarau da Cooperifa passou de bar em bar até achar seu lugar no boteco do Zé Batidão, na zona sul de São Paulo. “Na periferia não tem museu, tem boteco”, diz Vaz. “Então transformamos o Zé Batidão em centro cultural.” Toda quarta-feira, três centenas de cidadãos periféricos ali desembarcam depois de um dia de trabalho duro para fazer e ouvir poesia. “Povo lindo! Povo inteligente! É tudo nosso!”, diz Vaz, abrindo a noite. E o boteco vem abaixo, a multidão se espalha pelas ruas. É tudo deles, sim.

A Semana de 2007 começou a nascer nessa esquina, pelas mãos ásperas de poetas sem berço. Seu primeiro ato será uma caminhada dos artistas pela periferia. Nada vai acontecer no centro. Quem quiser conhecer o que se passa nas bordas de São Paulo terá de inverter o tráfego. Os grupos Manicômicos (teatro), Arte na Periferia (cinema), Espírito de Zumbi e Umoja (dança) são alguns dos autoproclamados “focos de resistência” que tentam fincar sua estética em ruas onde antes só corria esgoto. “Escolhemos um símbolo da elite paulistana pra provocar. Vamos à casa grande mexer com eles”, diz Vaz. “Que seja o estopim.”

Imagem dos organizadores da Semana de Arte Moderna de 1922, no Hotel Terminus, no centro de São Paulo.



RAIZ FORTE

O hip-hop está na raiz dessa árvore antropofágica. O movimento praticamente inventou a identidade periférica. Especialmente seu símbolo maior: os Racionais MCs e seu líder, Mano Brown. Capazes de vender milhões de CDs sem precisar nem de gravadoras nem de imprensa, eles provaram que é possível viver, fazer sucesso e sustentar a família fora do mercado. E sem sair da periferia.

Desde o fim dos anos 80, os “manos” e as “minas” passaram a proclamar: “Eu sou da periferia. Vocês são do centro, playboys”. Comportamento oposto ao dos pais, migrantes nordestinos que, de cabeça baixa, mentiam o endereço. O hip-hop dançou break sobre o mito da democracia racial. Agora havia “nós” – e havia “eles”. As diferenças – explícitas no cotidiano, mas não pronunciadas – estavam colocadas. E por quem, havia pouco tempo, só tinha voz quando cantava samba. Foi também a primeira vez que os ídolos não se mudaram da periferia como sempre fizeram os astros de futebol na primeira oportunidade.

O hip-hop mantém parte de sua força. Mas, neste início de milênio, uma figura nova assumiu a vanguarda: o escritor. Em 1960, uma negra semi-analfabeta chamada Carolina Maria de Jesus assombrou o Brasil – e o mundo. Ao fazer uma reportagem numa favela do Canindé, na beira do Rio Tietê, em São Paulo, o jornalista Audálio Dantas descobriu Carolina e “uns 20 cadernos encardidos em seu barraco”. Quarto de Despejo – Diário de uma Favelada vendeu 10 mil exemplares numa semana. Foi traduzido para 13 idiomas. Carolina só teve dois anos de estudo formal. Tornou-se a primeira favelada publicada no Brasil.

Na virada do milênio, três novos escritores mostraram que algo diferente acontecia nas margens das capitais brasileiras: o carioca Paulo Lins, com Cidade de Deus (Companhia das Letras), em 1997, e os paulistanos Ferréz, com Capão Pecado (Labortexto, reeditado pela Objetiva), de 2000, e Luiz Alberto Mendes, que descobriu a literatura durante mais de 30 anos de cárcere, com Memórias de um Sobrevivente (Companhia das Letras), de 2001.

A partir de 2000, Ferréz e a revista Caros Amigos organizaram três edições especiais com a produção de 30 escritores das periferias do Brasil, sob o título Literatura Marginal. Em 2005, uma coletânea do material virou livro. O escritor não era mais caso isolado, mas fenômeno coletivo. Na apresentação, Ferréz escreveu: “Cala a boca uma p..., agora a gente fala, agora a gente canta, e na moral agora a gente escreve. Quem inventou o barato não separou entre literatura boa/feita com caneta de ouro e literatura ruim/escrita com carvão (...). Não somos o retrato, pelo contrário, mudamos o foco e tiramos nós mesmos a nossa foto”.




SUBURBANO CONVICTO

Quando Alessandro Buzo caminha pelo Itaim Paulista, nos confins da zona leste de São Paulo, os meninos o cumprimentam, reverência na voz: “Aê, Buzo”. Só daqui a uma década será possível avaliar o impacto da mudança: a referência de sucesso na periferia não é mais – ou apenas – o traficante, mas o escritor. “A elite achava que a gente não sabia nem ler”, diz Buzo. “E agora a gente escreve.”

Aos 35 anos, Buzo tem quatro livros publicados, o último deles um romance, Guerreira. Editou na base da prestação, pagou uma parte com feijão, arroz, macarrão e azeite, porque ganhava a vida vendendo comida. Há alguns meses, vive de arte, R$ 1.500 por mês. Ele sozinho é um movimento cultural. Criou uma biblioteca num bloco carnavalesco. Comanda o Favela Toma Conta, evento anual de hip-hop. Duas vezes por mês faz o Cine Favela, levando filmes brasileiros às periferias. É dono de uma “lojinha de periféricos” (livros, DVDs e CDs feitos nos guetos). Dá oficinas de escrita para os garotos da Febem. No dia 25, lança uma coletânea de 12 autores das periferias de sete Estados. E ainda faz literatura nos dois cômodos de sua casa na Favela do Buraco, onde vive com a mulher, Marilda, e o filho Evandro, de 7 anos. Alessandro Buzo declara-se “Suburbano Convicto, escritor da periferia”.

Oitava série incompleta, Buzo é filho de mãe doméstica e pai “que se mandou”. A mãe fugia da devastação da vida devorando livros comprados com trocados nos sebos. Um dia deu ao filho um presente raro: o Menino Maluquinho, de Ziraldo. Ainda moleque, Buzo endoidou pela história. Anos depois, maluco por cocaína e mesclado (maconha com pedra), diz que só não foi bandido porque a mãe que tudo lia avisou com antecedência que jamais leria carta de presidiário.

“Aqui o tráfico não é nem de maconha nem de cocaína. Nós traficamos livros”
Alessandro Buzo

Buzo conta que começou a escrever por indignação. O trem remendado e triste que carrega o povo da zona leste ao centro levou Buzo para a literatura. Ele queria expressar sua revolta com tanta gente amontoada, tanta indiferença. Escreveu um texto, espalhou pelo trem e, no dia seguinte, era celebridade.

O trem virou o primeiro livro. Vendeu pouco, os passageiros mal tinham dinheiro para comer, livro era de outro planeta. Buzo ia se desgarrando da literatura quando escutou o rap dos Racionais: O covarde morre sem tentar... você é do tamanho dos seus sonhos... junta seus pedaços e desce pra arena. Buzo se levantou. Ou melhor: sentou e escreveu mais. E o resto é – literalmente – história.




A SEMANA DE 2007

No Manifesto Antropófago, lançado em 1928, Oswald de Andrade data o início do Brasil por um episódio insólito: a morte do Bispo Sardinha, devorado por índios canibais. É uma ironia para definir o conceito de arte antropofágica: os primeiros brasileiros digeriram – literalmente – a cultura européia. Com o Manifesto da Antropofagia Periférica, os organizadores da Semana de 2007 escrevem um capítulo inédito. Nele, os novos antropófagos tratam pouco de estética, muito de política e de comportamento. Sérgio Vaz comenta os principais pontos:

1) Somos periféricos
“Ninguém gosta de esgoto a céu aberto nem de barraco. Mas nós queremos mudar a periferia – e não da periferia.”

2) Criamos nosso mercado
“Nós produzimos a nossa arte. Estamos criando um outro mercado, o nosso. Vamos comprar nossos CDs, nossos livros, nossos filmes.”

3) Sabemos consumir
“Ninguém nos diz o que devemos consumir. Não podemos boicotar o Cirque du Soleil porque nunca tivemos dinheiro pra pagar. Mas podemos boicotar Ivete Sangalo, livro de auto-ajuda, um monte de coisas. Não queremos nossas filhas dançando na boquinha da garrafa nem cantando Festa no Apê. Nem nossos filhos precisando de tênis Nike. Nós boicotamos o pirata, porque não somos cidadãos de segunda classe, e boicotamos o original porque é ruim ou é caro ou não precisamos.”

4) Queremos educação
“Revolução sem r é evolução. Queremos escola de qualidade. Não pregamos a saída pela arte. Não dá pra todo mundo virar artista. As ONGs querem ensinar o povo a cantar e a dançar. A gente não agüenta esse discurso ongueiro, que pega R$ 1 milhão pra ensinar a batucar. TV, pra nós, é entretenimento. Nos preocupa a televisão que educa. Queremos escola que eduque. Se a escola educar, nossos filhos vão saber ver TV.”

5) O artista tem de ser cidadão
“Queremos artista comprometido com a comunidade. Não queremos arte que imbeciliza, teatro que quando acaba dá pra comer pizza, música que vende guaraná de manhã, macarrão à tarde e carro às 15 pras 8. Somos contra artista enriquecer. ”




LADRÃO DE LIVROS

Na abertura do primeiro romance, Graduado em Marginalidade, o escritor apresenta sua origem em oito linhas. Nela, os homens são reduzidos a um espermatozóide sem nome, mas com profissão: “De Isabel Alves de Souza, com um dono de escravos, nasceu Maria. A junção de Maria Alves de Sousa, com um trabalhador rural, gerou Geralda. De Geralda Alves de Sousa, com um pedreiro, nasceu Maria Natalina. Do namoro de Maria Natalina Alves, com um carpinteiro, nasceu Ademiro Alves”. Ademiro Alves é Sacolinha, o primeiro homem da linhagem com nome e sobrenome. E pseudônimo: Sacolinha é escritor.

Aos 24 anos, ele diz: “Se não fossem os livros, eu estaria a sete palmos de terra”. Sacolinha – filho de pai sumido e mãe feirante – trabalhou dos 9 aos 21 anos como cobrador de lotação: “Metrô Itaquera, Cidade Tiradentes, Jacupêssego, Iguatemi...”. Nessa linha urbana, diz que beijou na boca a primeira menina, despediu-se alegremente da virgindade, virou homem e foi batizado de Sacolinha.

Para chegar ao trabalho, eram 40 minutos de trem. Sacolinha terminara o ensino médio “semi-analfabeto, sem entender o que lia”, mas estava enjoado de olhar a cara dos passageiros. “Reparei então que tinha gente que lia e resolvi experimentar, pra passar o tempo.” O único parente possuidor de livros era um tio que estudava para padre. Sacolinha bem que pediu com gentileza, mas o tio não acreditou nas intenções letradas. O sobrinho conta que iniciou então uma bem-sucedida carreira de ladrão de livros pela própria família. Ampliou suas atividades por livrarias, bienais e conferências. Tem certeza de que não cometeu crime algum. “Eu precisava muito e não tinha dinheiro”, diz.

Aos 18 anos, Sacolinha começou a ler. Aos 22, conta que fez uma rifa para publicar o primeiro romance. Chefe de família, vivia com a mãe e dois irmãos em dois cômodos construídos abaixo do nível da rua. Não tinha água nem luz. Estragou os olhos lendo à luz de velas, mas iluminou-se todo. Ao encontrar Carolina Maria de Jesus em seu Quarto de Despejo, sua vida sofreu uma freada brusca e pegou outro rumo: “Não acreditei que tava lendo um livro assim. Bati na mão e disse: ‘É isso que eu quero ser’”.

Sacolinha partiu em busca de professores de Literatura. “Me disseram que eu podia ler Ferréz e Paulo Lins, mas devia também ler os clássicos”, conta. Sua jornada pela literatura é um sobressalto: “Aluísio Azevedo descreveu de um jeito a primeira menstruação da Pombinha que me deu até vontade de menstruar. Memórias do Cárcere, do Graciliano Ramos, tava muito chato. Até eu perceber que ele tava passando a chatice do cárcere pro leitor. Fantástico!”.

“O Brasil só vai melhorar quando o povo começar a roubar livros em vez de armas, drogas e dinheiro”
Sacolinha

“Salvo pela literatura”, Sacolinha criou uma ONG para divulgar novos autores, organizou trocas literárias para abastecer bibliotecas, criou dois saraus de poesia, promoveu oficinas de escrita, entrou na faculdade de Letras e publicou um livro de contos. Desde 2005 é coordenador de literatura da Prefeitura de Suzano, na Grande São Paulo. “Se a porta do banco trava porque sou negro, feio e uso calça larga, não discuto mais com o segurança”, diz. “Meu projeto é muito maior: tenho de discutir com o público.” Sacolinha dá entrevista em sua nova casa-escritório: dois cômodos mobiliados em 45 prestações nas Casas Bahia. Serve vinho rosé. Guarda os manuscritos do primeiro romance em perfeitas condições – “para a posteridade”.



A TOMADA DA CANETA

A primeira geração de escritores da periferia se formou à margem da escola. Em alguns casos, apesar dela. A conquista da escola se iniciou de forma inusitada: pela literatura das ruas, entrando pelo portão na mão dos alunos. “Literatura sempre foi uma palavra alienígena pra nós. Fica do outro lado do interditado. A gente sempre se viu mal representado como personagem”, diz o escritor Allan da Rosa. “Nossa missão é entrar dentro do sistema pra conseguir nosso espaço. E o sistema é letrado. Quem marioneta a parada são os letrados. Então vamos fustigar o sistema de dentro dele.”

Aos 31 anos, Allan é um dos poucos escritores que chegaram à universidade. Formou-se em História na USP e hoje faz mestrado em Educação. Filho de atendente de enfermagem e presidiário, começou a trabalhar aos 13 anos, como office boy. Depois vendeu churros, incenso, livros, seguros, jazigos de cemitério. Começou a escrever por causa do futebol de botão. Inventava times e criava uma biografia para cada craque. “Eu não tenho lembranças positivas de leituras dentro da escola. Tenho de fora, de outros rolês”, diz Allan.

Hoje, ele é um dos escritores reivindicados nas aulas por alunos de escolas públicas. “Quando a gente entra no sistema escrito, consegue poder. Não o poder substantivo, mas o poder verbo. Poder criar em vez de só sair de manhã, pegar duas horas de busão lotado e trabalhar prum cara onde você não pode nada. E depois voltar cansado demais pra viver”, diz ele. “A palavra falada é majestosa, a música é rainha. Mas a palavra escrita tem dentro dela algo que só ela tem. Que é poder chegar nas escolas com seu jeito de escrever, com seu tema e começar a tomar conta do que sempre usaram pra nos orquestrar.”




MUÇULMANO DO GUETO

A primeira piada racista que o menino Ridson ouviu foi em casa, contada pelo pai, um negro. Seu Lourival, baiano que migrara para São Paulo, padeiro de profissão, dizia que não tinha sotaque “porque já tava domesticado”. O filho achava graça. Quando o irmão mais novo tinha 6 anos, Ridson conta que o garoto começou a se recusar a tomar café e a comer feijão. Só aceitava leite e arroz. A mãe, Hosana, mistura de africano com europeu, estranhou. O menino então explicou: “Se eu comer só arroz e leite agora que sou pequeno, quando eu crescer vou ficar branco”.

Ridson tinha 10 anos. Nunca mais riu das piadas do pai: “Foi a primeira vez que percebi que algo de muito errado acontecia ao meu redor”. Ridson começou então a se transformar em Dugueto, nome que tatuou no braço direito para gravar na pele raça e geografia. “Eu sou negro. Minha identidade quem define sou eu”, diz. “E isso incomoda. Até hoje me perguntam por que digo que sou negro se ‘sou tão bonito e tenho olhos verdes’. Nenhum branco é racista até ter a seu lado um negro orgulhoso.”

Há dois anos, ele se transformou em Dugueto Shabazz. Havia descoberto sua terceira identidade – muçulmano. Shabazz, como Malcolm X, o ativista negro dos Estados Unidos convertido ao islã. Muçulmano negro do gueto, ele usa a caneta para denunciar preconceito e desigualdade. É uma das vozes mais contundentes do movimento literário da periferia. Além de escritor, é rapper. Já esteve na Venezuela, em Cuba e na França, onde conviveu com jovens muçulmanos dos subúrbios franceses, em 2005. Lá, conta ele, foi expulso de uma loja num ato de discriminação.

Educado, gentil, com voz baixa e suave, ele fala sobre dores e convicções numa mesquita. A seu redor, muçulmanos de várias partes da África, migrantes em São Paulo, formam uma babel de línguas e dialetos entre uma oração e outra. “Espero que não me faltem poesias porque tenho muita raiva”, diz Dugueto Shabazz. Tem 24 anos.

“Espero que não me faltem poesias porque tenho muita raiva. Não queremos cisão, mas reparação”
Dugueto Shabazz

Então fala longamente sobre uma nação ferida: “Acho que ainda vai haver uma grande cisão neste país. A sociedade branca e rica tem se incomodado cada vez mais com o orgulho negro. Nós queremos nossa contribuição reconhecida. Basta olhar a história. Quem deve pra quem? Quem está nas favelas, nas cadeias, na rua? Todos os dias há uma cobrança nos faróis, encarnada pelo menino que faz malabares quando deveria estar na escola, de 50 pessoas no coletivo e o cara atrás do blindado. Mas não percebem. Como muçulmano, busco a paz até o último instante. A gente não quer cisão, a gente quer reparação. Mas, se for para ter uma nação bicolor, então escolhemos ser negros – e não brasileiros”.

Dugueto Shabazz se cala para atender ao chamado da última oração do dia.



A REINVENÇÃO DO LIVRO

Em 2005, Allan da Rosa decidiu fazer “livro pra quem não sabe ler”. A Toró, um selo editorial, nasceu dentro da Cooperifa. Já publicou oito escritores periféricos. “Toró vem da chuva que alaga ruas e barracos e porque chegou a hora de fazer chover livros”, diz ele. A mudança estética, proposta pelo movimento literário periférico, já começa pelo objeto livro. O livro da Toró é impresso numa gráfica, mas chega nu. Cada exemplar é acabado em casa, alguns deles escritos à mão, em letra cursiva. Têm pano, bordados, conchinhas, corda. “Dizem que nossos livros não podem ir pra biblioteca porque não seguem os padrões. Paciência. Pra nós, é segundo plano que nossos livros estejam nas bibliotecas do centro. Queremos ser lidos nas duas horas de busão”, diz Allan.

Na prosa e na poesia, além de falar de seu próprio mundo, de um cotidiano estrangeiro à classe média, os periféricos usam palavras inventadas nas margens, trazem o movimento e a riqueza da língua recriada nos guetos, às vezes misturada a dialetos africanos, obedecendo a outras sintaxes. Algumas palavras trazem s a grafia “errada” para estar literariamente “certas”. A escolha é expressão artística e ato político: a exclusão pela linguagem empurrou muitas crianças pobres para fora da escola. “A arte da palavra permite que a gente ventile as coisas, mas é preciso ter sensibilidade”, diz Allan. “O Gato Preto (escritor baiano) deu o título pro seu texto de ‘Colombo, Pobrema, Problemas’. Há um diálogo aí, ele sabe o que tá fazendo.”

O escritor das margens é novo também no modo de estar no mundo: ele não é uma figura submersa em si mesma, distante. Cada um é ligado a uma ação cultural. Ou a várias. A maioria deles tem casas de um ou dois cômodos. Tecem enredos sem solenidade, enquanto alguém frita um pastel, o filho joga bola. “A gente é trágico, sentimental, gosta de tocar nas pessoas”, diz Sérgio Vaz.

Escrever na periferia é um ato profano. A literatura nasce ao rés do chão, sem pedestal. Por ter atravessado séculos inalcançável, a palavra escrita precisa ser dessacralizada. Quando a Toró decide fazer livros à mão, escritos à mão, não é um capricho. É preciso que o leitor toque – também literalmente – a letra do escritor. Para que possa ser tocado pelo que sempre lhe esteve interditado. Na antropofagia periférica, por definição nada é sagrado. Muito menos as letras, agora capturadas entre as presas de antropófagos que até pouco tempo atrás se supunha sem dentes.




PERIFÉRICO NO CENTRO

Sebastião Nicomedes é de outra periferia: o centro geográfico de São Paulo. Nascido em Assis, interior paulista, ele praticamente ressuscitou no centro depois de uma queda de 4 metros de altura. Tentava instalar o luminoso de uma loja quando, há três anos, despencou lá de cima. Quando acordou, Sebastião estava só. Machucado, sem poder trabalhar, ninguém apareceu para ampará-lo. Estava no chão. Até para se matar, coisa que diz ter cogitado, era preciso subir alguns degraus. Sebastião virou morador de rua. Percebeu então que só precisava ter uma caneta para reescrever sua vida. E lentamente foi escalando sua queda, agarrado às cordas das letras.

Hoje, Sebastião vive só na “cobertura” de uma pensão do Brás. Em agosto, o Teatro Sérgio Cardoso abrigou a segunda temporada de sua peça, Diário dum Carroceiro. Seu primeiro livro, Simone, Cátia e Outras Marvadas (Dulcinéia Catadora), foi lançado no ano passado. “Minhas histórias vêm do segundo mundo, que ninguém quer ver”, diz.

Quando anda pelas ruas do centro, ele vai apontando as placas arrancadas pela Lei Kassab para combater a “poluição visual”. Placas pintadas por ele, de que se orgulhava. As últimas provas materiais de que Sebastião Nicomedes teve outra vida. Seu celular toca. Do outro lado, uma voz avisa que mais um morador de rua morreu de frio. Sebastião sofre. “Minha escrita é o clamor da alma de cada indigente que morre”, diz. “Escrevo pra não me armar de fuzil.”

Toda a literalidade de sua vida – começando pela queda real – não é um detalhe. Marca também sua escrita. Isso fica explícito quando, depois de muito tempo, ele confessa, envergonhado, que passa frio à noite. Até então não tinha cobertor, só uma colcha fina. Sebastião não interpreta o frio, não inventa o frio, não nomeia o frio. Sebastião – quando escreve sobre o frio – sente o frio.

Tempos atrás, ele andava assediado por ONGs e governos. Por ser uma figura simbólica, recebia propostas. Numa, ganharia R$ 900 por mês para trabalhar num albergue. Sebastião conta que caminhou até a porta, viu os moradores de rua, percebeu que caberia a ele expulsar os bêbados, “os que mais precisam”. “Não era um emprego, era um cala-boca”, diz. Virou as costas.

“Minha escrita é o clamor da alma de cada indigente que morre. Escrevo pra não me armar de fuzil”
Sebastião Nicomedes

Naquela noite, deixou seu quartinho pobre na pensão e dormiu na rua. Ao amanhecer, escreveu de uma lan house do centro um e-mail. Nele, conta ter decidido não manter nada de seu, exceto a alma: “Ontem eu refiz um caminho de busca para reencontrar esse cara que ressurgiu das cinzas. Catei um papelão e fui dormir na rua. Fiquei a maior parte do tempo acordado. Lembrei dos meus anseios e das coisas que queria ter. Eu não pedia grandes coisas. Um lugar pra me proteger da chuva, um travesseiro, um chuveiro, um fogão pra comer o que me desse vontade, sem esperar hora e ordem pra fazer o que quero. E fazer o que mais gosto: escrever. Quando acordei pela manhã, nos primeiros raios de sol, o clarão forte ardeu-me os olhos. Levantei e vi que tudo o que pedi eu tenho. Eu não pedi carro, não pedi cheques e roupas de marca, relógio, ouro ou tela plana. Eu tenho exatamente tudo o que sonhava”.
Fotos: Frederic Jean/ÉPOCA, Anderson Schneider/ÉPOCA, André Valentim/ÉPOCA e I.E.B.