domingo, março 27, 2011

O dia em que Neymar compreendeu o que é ser negro

Comentários de Moisés Basílio:
No capítulo 2 do romance "Recordações do escrivão Isaías Caminha", do nosso grande escritor Lima Barreto, há a narrativa de como o mestiço mulato Caminha, que vivia até então numa pacata localidade do interior, ao decidir rumar para a grande cidade do Rio de Janeiro, descobre o preconceito de cor ao pedir café na estação de trem. Pois não é que o mesmo se sucedeu hoje, em Londres, com o mestiço mulato Neymar. Há quase um ano o jovem Neymar deu uma entrevista ao Estadão onde afirmou literalmente, quando perguntado se já fora vítima de racismo: "Nunca. Nem dentro e nem fora de campo. Até porque eu não sou preto, né?"  O problema é que Neymar deve ter acreditado na tal da tão propalada ideologia brasileira da "democracia racial", e  também deve ter passado pelo processo de embranquecimento. Depois do jogo, em terra européias, deve ter sido triste para o Neymar descobrir que era ser um preto.
Racismo e futebol convivem desde o aparecimento do esporte bretão. Para vários teóricos, ou melhor, ideólogos da pseuda ciência racialista, lá pelos idos da virada do século XIX para o XX, um negro nunca poderia jogar futebol igual a um branco, pois o esporte era muito complexo para o nível de inteligência dos filhos da mama África.  O tempo passou, as teorias foram desmentidas, pois o melhor jogador de futebol de todos os tempos é o negro Pelé, mas o racismo insiste em continuar, tanto aqui no Brasil, como na Europa, a se manifestar com novas e velhas roupagens.  

Fonte: Jornal O Estado de S. Paulo, 27 de março de 2011.

Torcedor atira banana em Neymar em jogo da seleção

Atacante, que fez dois gols na partida, diz que episódio é 'triste', mas que não irá se preocupar 

MITCH PHILLI - REUTERS
LONDRES - Uma banana foi atirada no campo na direção do atacante brasileiro Neymar durante a vitória de 2 x 0 da seleção brasileira sobre a Escócia em amistoso neste domingo, 27.
Gerry Penny/EFE
Gerry Penny/EFE
Tendo feito os dois gols, Neymar afirma que foi um dia para ser lembrado
O atacante de 19 anos, que marcou os dois gols, vinha sendo alvo da hostilidade dos torcedores escoceses desde os primeiro momentos de jogo por supostamente fingir uma falta.
Ele disse não ter visto a banana ser atirada, mas a viu no gramado perto de si quando estava próximo da linha lateral.
"É triste que essas coisas aconteçam, mas não vou me preocupar muito com isso," disse Neymar à Reuters. "Foi um dia maravilhoso, com certeza um dia para lembrar."
Mano Menezes, técnico do Brasil, afirmou não ter visto o incidente, mas que o acontecido é "lamentável."
O meio-campo Lucas Leiva, que joga no Liverpool, declarou à rede Globo: "Não há mais lugar para racismo hoje em dia. A Europa, que é considerada primeiro mundo, é onde isso mais acontece. Hoje em dia, cor e raça não deveriam significar nada."
Na semana passada uma banana foi atirada contra o ex-lateral da seleção Roberto Carlos enquanto ele se preparava para entrar em campo com o clube russo Anzhi Makhachkala contra o Zenit de São Petersburgo.

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Fonte: Jornal O Estado de S. Paulo, 26 de abril de 2010, caderno Cultura
                                                                     
'Quero um Porsche e Uma Ferrari na garagem'

Neymar, estrela maior do Santos, é gastão. Mas dá 10% de tudo à igreja

Sonia Racy e Débora Bergamasco - O Estado de S.Paulo
Quando nasceu, Neymar ficou sem nome por quase uma semana. Indecisos, seus pais, Nadine e Neymar Santos, pensaram em "Mateus". "Mas minha mãe sugeriu botar Neymar para ver se um dia esse nome vingaria", conta o pai do garoto.
Neymar pai jogou futebol em clubes pequenos, o que lhe rendeu o patrimônio de um terreno. Neymar filho, aos 17 anos, já comprou uma cobertura tríplex em Santos - com piscina, sauna e espaço gourmet dentro do apartamento. Uma jacuzzi com TV de plasma ocupa o banheiro de seu quarto. Lá, a nova e grande estrela do Santos vive há cinco meses com pai, mãe, irmã e um primo - que tenta a vida como jogador.
Uma estante envidraçada com fotos, medalhas e troféus de "Juninho" decora a sala-de-estar da casa da família, onde a coluna foi recebida em dois dias diferentes. No primeiro, o pai e empresário do craque contou histórias inéditas. No outro falou o filho - mostrando-se, em família, um tímido e brincalhão.
"E pensar que o Juninho quase morreu", emociona-se a mãe. "Ele tinha quatro meses e estava no carro comigo e com meu marido quando sofremos um acidente. Ele estava deitadinho atrás e, quando batemos, rolou para debaixo do meu banco. Mas Deus estava no controle e ele só cortou a testa. Meu marido ficou três meses na cama."
Agora, aos 18 anos, com saúde e futebol para vender por milhões de euros, ele é "um vulcão em erupção", conforme define seu pai - e para chateação do técnico Dunga. Neymar está solteiro. Rompeu o namoro de cinco meses com uma garota de 16 anos, do Guarujá. Seu pai bem que tenta aconselhar as namoradas do filho: "Para ser mulher de atleta, tem que fazer vista grossa. Homem apronta, mas quando a ficha cai, ele volta. Veja o Robinho, ele sossegou".
Neymar diz que não quer saber de se apaixonar. "Agora não. Quero curtir a vida", avisa, esparramando-se no sofá. Entrelaçando as pernas em uma almofada, narra seu sacrifício para não cair no canto das marias-chuteiras. "Você tá quietinho e elas é que vêm para cima. A gente tenta dar umas cortadas, mas é complicado. Tem que ser esperto, primeiro conhecer, ver de onde ela vem, no que está interessada, se ela gosta mesmo de você. Daí você investe."
E o assédio é grande. "Tem mulher mais velha, mais nova, tem de tudo. Tenho que ficar com o olho bem grandão", afirma, arregalando o seu par verde.
Para proteger o filho de companhias oportunistas e de impulsos consumistas, quem administra o dinheiro do craque é o pai. Ele diz deixar apenas R$ 5 mil na conta do moço - valor bem inferior ao salário, que hoje beira os R$ 150 mil mensais. "E cinco mil ainda acho muito, porque o Juninho não precisa comprar nada. Tem contrato com a Nike, ganha roupas, tudo. Parece um polvo, tem mais de 50 pares de sapatos."
História que o jogador confirma. "Eu acho bom, porque a grana acaba. E sou meio gastão, né? Principalmente em viagens. Compro presente para todo mundo. Até para o cachorro, se deixar." O jovem também coleciona relógios, perfumes e brincos. "Mandei fazer um brinco de ouro com as letras "NJ" (de Neymar Junior)."
Ele adora, também, comprar roupas. Os estilos "variam com o humor". Fora das marcas esportivas, prefere Calvin Klein e Armani. "Calça gosto assim: apertadinha embaixo e larga na cintura. Aparecendo a cueca."
Mas o interesse por moda é recente. Quando pequeno, ele queria mesmo era "comprar um supermercado de bolachas. Para poder comer as recheadas a qualquer hora".
Neymar tem uma marcante passagem na infância que envolve molecagem, inveja e, novamente, bolachas. Certa vez, ele e um grupo de amigos do clube foram a uma padaria e roubaram um pacote de biscoitos. Ao perceber, o então treinador Betinho fez o grupo voltar, pagar e pedir desculpas. O deslize rendeu. Um dos pais dos meninos envolvidos foi até o presidente do clube e disse: "Esse Neymar, que vocês ficam pajeando, é um ladrão". A história caiu como uma bomba nos ouvidos de Neymar pai, que só soube da história quando voltou à noite do CET, onde trabalhava como mecânico. "Todos estavam envolvidos, mas foram reclamar só do Juninho por pura inveja. Ele era o único a ganhar duas cestas-básicas em vez de uma."
Por falar em inveja, Neymar pai conta que desde pequeno o filho jogava com "fitinha de Jesus" na cabeça. "Minha mulher fazia questão, que era para protegê-lo. Mas chegaram até a chamá-lo de "mascarado". Quando foi para o Santos, teve que abandonar essa proteção."
Com ou sem faixa, Neymar, segundo seu pai, sempre foi e continua sendo um fiel contribuinte da Igreja Batista Peniel, de Sãio Vicente. Doa 10% de tudo o que ganha para lá. "O primeiro salarinho dele foi R$ 450. Fizemos esse primeiro contratinho dele no Santos e minha mulher pegava os R$ 45 e dava para igreja todo mês. OK, ainda sobravam uns R$ 400 para pagar as contas. Daí ele passou a ganhar R$ 800. Tá bom, doa R$ 80... Só que Deus começa a te provar, né? Pegamos R$ 400 mil. Caramba, meu, como vamos "dizimar" R$ 40 mil? É um carro! Cara, mas daí você pensa que Deus foi fiel. Pum, dá R$ 40 mil! Mas daí vieram "catapatapum" reais. Meu Deus, não quero nem saber, "dizima" logo isso! (risos). É... Deus te prova no pouco e no muito", suspira o patriarca da família Silva Santos. E o que pensa disso o jogador? Como revela na conversa que se segue, o dinheiro não lhe faz a menor falta. 

Dói abrir mão de R$ 40 mil?
Para Deus, nada dói. E acho legal. A gente conhece bem o pastor da Peniel. Faz dez anos que estou lá e agora estão ampliando a igreja. Acho que se a gente acreditar em Deus, as coisas vêm naturalmente. Deus me deu tudo: dom, sucesso...
Falando nisso, qual é a parte chata de fazer sucesso?
Ah, não tem parte chata. Eu acho que é sempre legal.
Já foi vítima de racismo?
Nunca. Nem dentro e nem fora de campo. Até porque eu não sou preto, né?
O que gostaria de poder comprar que ainda não tem?
Queria um carrão.
Mas você acabou de comprar um Volvo XC-60, por R$ 140 mil, Não é um carrão?
Ah, é, mas queria uma Ferrari. Nunca andei.
Uma Ferrari ou um Porsche?
Não sei. Qual é melhor?
Não sei, também.
Ah, então eu queria um Porsche amarelo e uma Ferrari vermelha na garagem.
Qual é seu tipo de mulher?
Linda.
Prefere as loiras, as morenas, japonesas...?
Tem que ser linda. Sendo linda, tá tudo certo. E só não pode ser interesseira.
Você alisa mesmo os cabelos a cada 20 dias?
Aliso. Nem sei o que eles (cabeleireiros) fazem. Só sei que tem um cheiro ruim. Mas fica bom porque meu cabelo é meio enrolado. Aí tem que alisar para o moicano espetar. E também pinto de loiro. Sou meio maluco, né?
Parece que você tira as sobrancelhas também...
Tiro aqui embaixo (diz, penteando-as com os dedos).
E o que mais você faz para cuidar da aparência?
Depilo as pernas com uma maquininha. Da canela até as coxas. Acho que fica melhor assim. Ah, e faço o pé com a podóloga do CT (Centro de Treinamento do Santos). E, olha aqui, meu pé até que é bonitinho, né? O pessoal costuma ter a unha preta. Eu, não.
Como gosta de se divertir?
Depende. Quando eu ganho o jogo, aí saio para bagunçar. Mas se perco, prefiro ficar quieto em casa. Só jogo uma sinuca. Fico chateado, bravo e se alguém fizer uma piadinha na rua... eu não tenho sangue de barata. Também gosto de dançar. Danço de tudo: funk, psy, sertanejo, blackmusic.
Gosta de viajar?
Gosto de ir para outros lugares, mas não gosto de viajar, não. É chato ficar dez horas dentro do avião. Você anda para lá e para cá e nunca chega.
Qual o lugar que mais gostou de conhecer?
Os Estados Unidos. Fui para Nova York e Los Angeles. É tudo é diferente, né? A rua, o cheiro. Fui também para Catar, México, Nigéria.
Para onde gostaria de ir?
Hmmm... para a Disney. Gosto de parque de diversões, brinquedos radicais. Tenho medo, mas eu vou. Ah, e Cancún também. Não surfo, mas pego um "jacarezinho".
Já tirou seu título de eleitor? 
Não tirei. Nem queria, mas vou ter que tirar.
Sabe quais vão ser os candidatos à Presidência?
Não sei, não
Gosta do Lula?
Não tô prestando muito atenção nisso. Mas agora vou ter que passar a prestar.
E até onde quer chegar como jogador de futebol?
Quero ser o melhor do mundo.

 

Lembraças do Padre José Comblin

Comentários de Moisés Basílio: O Padre Comblin foi uma das minhas leituras obrigatórias no final dos anos 70, principalmente o livro A ideologia da segurança nacional: o poder militar na América Latina, da Editora Civiliza, de 1978. Além do livro, depois tive oportunidade de participar de diversos momentos de reflexões com Pe. Comblin em cursos, palestras etc. Para observamos como as notícias são eivadas de valores ideológicos, reproduzo abaixo dois textos da notícia do falecimento de Comblin. Um de um blog e outro de um jornal da grande mídia. Comparem.


Fonte: BLOG DE ESQUERDA EM ESQUERDA - Rudá Ricci: http://rudaricci.blogspot.com/2011/03/falecimento-de-padre-jose-comblin.html

Falecimento de Padre José Comblin

O livro do Padre José Comblin sobre a Ideologia da Segurança Nacional foi um dos que marcaram minha politização na adolescência. Hoje recebi a notícia que ele faleceu na manhã deste domingo, depois de completar 88 anos, no interior da Bahia, onde estava
assessorando grupos de base.
Padre Comblin nasceu em Bruxelas, na Bélgica, em 1923. Ordenou-se sacerdote em 1947 e doutourou-se em Teologia pela Universidade Católica de Louvain. Desde 1958 trabalhava na América Latina, começando por Campinas. Logo em seguida foi assessor da Juventude Operária Católica, tornando-se professor da Escola Teológica dos Dominicanos em São Paulo, tendo como alunos Frei Betto e Frei Tito. Em 1965 foi para o Chile. A convite de D. Hélder Câmara voltou ao Brasil para lecionar no Recife, onde foi professor no famoso Instituto de Teologia. A partir de 1969 esteve à frente da criação de seminários rurais em Pernambuco e na Paraíba. A metodologia utilizada para os seminários era adaptada ao ambiente social dos seminaristas. Foi expulso do Brasil em 1971 pelo regime militar. Exilou-se no Chile durante 8 anos, onde também esteve à frente da criação de um seminário em Talca, em 1978. Em seu livro A ideologia da Segurança Nacional, publicado em 1977, destrinchou a doutrina que servia de base para os regimes militares na América Latina. Foi expulso por Pinochet em 1980. De volta ao Brasil, radicou-se em Serra Redonda (Paraíba), onde fundou um seminário rural e esteve à frente da formação de animadores de comunidades eclesiais de base. A metodologia para os seminários foi aprovada pelo papa Paulo VI, mas desaprovada por João Paulo II, quando da ascensão do conservadorismo católico que domina até os dias de hoje a Igreja Católica.
Alguns dos seus livros:
a. Le Pouvoir Militaire en Amérique Latine. L'Idéologie de la Securité National. Paris, Éditions Jean Pierre Delarge, 1977.
b. Théologie de la Révolution. Paris, Universitaires, 1970.
c. Teologia da Libertação, Teologia Neoconservadora e Teologia Liberal. Petrópolis, Editora Vozes, 1985.
d. Teologia da Reconciliação. Ideologia ou Reforço da Libertação. Petrópolis, Editora Vozes, 1986.
e. Curso básico para animadores de comunidades de base. São Paulo: Editora Paulus, 1997.
f. Cristãos rumo ao século XXI - Nova caminhada de libertação. São Paulo: Editora Paulus, 1997.
g. O povo de Deus, São Paulo: Editora Paulus, 2002.
h. Quais os desafios dos temas teológicos atuais?. São Paulo: Editora Paulus, 2005.


Fonte Internet: Jornal O Estado de S. Paulo, 27 de março de 2011, 12h18. http://www.estadao.com.br/noticias/nacional,morre-padre-belga-jose-comblin-da-teologia-da-libertacao,697964,0.htm?p=1 Foto: Blog do Prof. Josa http://www.professorjosa.com.br/2011/03/morre-padre-belga-jose-comblin-da.html

Morre padre belga José Comblin, da Teologia da Libertação

Religioso foi perseguido pelo regime militar brasileiro, chegando a exilar-se no Chile 

José Maria Mayrink, de O Estado de S. Paulo

Morreu hoje cedo em Salvador o padre belga José Comblin, 88 anos, um dos mais importantes e polêmicos teóricos da Teologia da Libertação, e autor de vários livros, entre os quais A Teologia da Enxada, sobre a vivência cristã e teológica nas comunidades rurais.
Padre Comblin estava em tratamento médico na capital baiana. Foi encontrado morto, sentado, em seu quarto, quando era esperado para a oração da manhã e não apareceu na capela. Ele tinha problemas cardíacos e usava marcapasso. Apesar da doença, parecia bem disposto e estava trabalhando.
Nascido em Bruxelas, em 22 de março de 1923, padre Comblin veio para o Brasil em 1958, atendendo a apelo do papa Pio XII, que no documento Fidei donum (O Dom da Fé) pedia missionários voluntários para regiões com falta de sacerdotes.
Depois de trabalhar em Campinas e, em seguida, passar uma temporada no Chile, foi para Pernambuco, em 1964, quando d. Helder Câmara foi nomeado arcebispo de Olinda e Recife. Perseguido pelo regime militar, foi detido e deportado, em 1972, ao desembarcar no aeroporto de volta de uma viagem à Europa.

domingo, março 13, 2011

NEGROS E DISCRIMINAÇÕES NO EXÉRCITO BRASILEIRO

Comentários de Moisés Basílio: Muito boa a reportagem especial do Estadão deste domingo. É sempre agradável e útil quando um estudo historiográfico consegue transcender o universo da academia e ganhar a atenção dos comuns dos mortais. Temos uma vasta produção acadêmica que precisa desse trabalho de transposição feita pelo repórter Leonencio Nossa. Quanto ao mérito da reportagem, eis aí mais uma prova cabal da falácia que foi e - em minha opinião - ainda continua sendo, em nosso país a "democracia racial". Lembrar nosso passado construído a partir de fundamentos discriminatórios e preconceituosos é importante para que no presente possamos melhor diagnosticar as origens de nossas desigualdades no sentido de elaborar políticas públicas de superá-las. Se no passado o país produziu uma "política de cotas" para discriminar, hoje é preciso alavancar outro tipo de "política de cotas" para reduzir os danos produzidos por esse passado, para que no futuro possamos estabelecer as bases igualitárias para uma verdadeira democracia racial no país.

Fonte: Jornal O Estado de S. Paulo - 13 de março de 2011 - A8 Nacional
Reportagem Especial✽ OExército proibido

Os ''indesejáveis'' do exército na ditadura Vargas

Livro do pesquisador carioca Fernando Rodrigues revela a política discriminatória que rejeitava negros, judeus e filhos de estrangeiros nas escolas militares para evitar a ''contaminação'' da elite do País

Leonencio Nossa - O Estado de S.Paulo
BRASÍLIA
É uma história que, por ordem do Exército, deveria ter sido queimada. Um livro recém-lançado reconstitui os exames de seleção das Escolas de Formação de Oficiais, entre 1931 e 1946, que rejeitavam candidatos filhos de negros, judeus, islâmicos, italianos, de mulheres separadas ou de pais barbeiros e peixeiros. Nas 240 páginas de Indesejáveis (Editora Paco Editorial), o historiador Fernando Rodrigues mostra como os governos revolucionário, constitucionalista e ditatorial de Getúlio Vargas tentaram moldar uma elite militar sem homens considerados de "raça inferior".
"É de cor." Essa constatação foi suficiente para o Exército rejeitar o pedido de um estudante para ingressar na Escola Militar de Realengo em 1941, no auge do Estado Novo. A caneta vermelha do avaliador das fichas de inscrição dos candidatos, geralmente o próprio ministro da Guerra, foi implacável também com filhos de estrangeiros. Um dos candidatos considerados "inaptos" era filho de pais "italianos sem significação social", segundo registrou o avaliador.
Outro candidato foi rejeitado por ser filho de barbeiro. "A profissão de barbeiro, embora honesta, é servil e a gorjeta regulava sua situação econômica, sendo que em tal ambiente não é de se esperar uma formação moral sólida, como a que deve ter um oficial."
Nos últimos seis anos, Fernando Rodrigues, de 46 anos, doutor em história pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), analisou 16 mil fichas guardadas no Arquivo Histórico do Exército. Por norma baixada pelo então ministro - e depois presidente - Eurico Gaspar Dutra, os documentos deveriam ser incinerados após dois anos. Não se sabe o motivo de o material ter permanecido nas estantes do Exército. No período analisado pelo pesquisador, estiveram nos bancos das escolas militares homens que teriam influência na vida do Exército e do País na segunda metade do século 20, especialmente durante o regime militar - Emílio Médici e Ernesto Geisel passaram pela Escola de Realengo nos anos 1920. A pesquisa analisa também o período entre 1905 a 1929.
Rejeitados. Na função de ministro da Guerra, Dutra analisou pessoalmente parte das fichas de ingresso nas escolas militares. Para ele, candidatos "de cor" não podiam ser aceitos porque as escolas formariam os futuros oficiais que iriam dirigir o Exército e defender a Nação. A ficha dos rejeitados levava um "arquive-se".
Rodrigues destaca que, primeiro, o Exército excluiu candidatos que pudessem ser indisciplinados ou associados à política. Depois, discriminou negros, judeus e islâmicos. "Entre 1931 a 1946, observei o esforço institucional na formação de uma elite militar no Exército Brasileiro, no contexto das tensões estabelecidas pela construção histórica das relações políticas, sociais e culturais na Escola Militar", escreve o historiador.
Ao Estado, Rodrigues disse que as ideias racistas e discriminatórias não surgiram dentro do Exército. A instituição, como outras, foi atingida pelas ideias correntes da época. "O que mais me marcou na pesquisa foi perceber a intenção de criar uma elite militar que atendesse aos interesses nacionais, que na verdade eram interesses de uma política sistemática que privilegiava brancos e católicos, influenciada até pela intelectualidade e pelas revistas da época."
Ele ressalta que o tema racismo e antissemitismo no Exército não é novo. "O ineditismo encontra-se na articulação do pensamento político de formação de uma elite militar em um Instituto de Ensino Superior e nos tipos de discriminação que foram detectados ao se analisar o acesso dos candidatos, buscando compreender as relações com a sociedade brasileira e compreender melhor a cultura corporativa dentro do Exército."
Ao analisar as fichas de ingresso na Escola Militar em 1942, o pesquisador constatou que 417 candidatos foram considerados "indesejáveis". Destes, foram rejeitados 53 candidatos por serem "de cor", 19 por virem de famílias de baixa condição social, 84 filhos de pais estrangeiros, 12 de pais de origem islâmica e 3 de origem judia. Os demais tiveram problemas como falta de documentação, má conduta em escolas militares e problemas de saúde.
As medidas para impedir a entrada de negros nas escolas militares foram tomadas quando ainda se usava a expressão "raça inferior". "O negro era o grande culpado pela miscigenação e pelo enfraquecimento do povo brasileiro", destaca o pesquisador.
"Neste clima de elitização social, com o domínio da raça branca em detrimento do judeu, do muçulmano e do negro, crescia o interesse na construção da identidade nacional", explica Rodrigues. "O contexto internacional articulava-se às tradições brasileiras racistas e religiosas que, impregnadas pelo nacionalismo crescente, apoiaram as práticas discriminatórias. Os ideais liberais foram logo substituídos pelo culto à força, à ordem, à disciplina, à personificação do chefe político, à raça pura e aos heróis nacionais."

''Forças tendem a ficar mais alheias à política''

José Murilo Carvalho, historiador
BRASÍLIA

Um dos mais destacados historiadores brasileiros da atualidade, José Murilo de Carvalho, de 71 anos, observa que o Exército imaginado pelo general Góis Monteiro, um dos homens fortes do governo Vargas, era bem diferente da instituição concebida por Benjamin Constant no início da República. Doutor pela Universidade Stanford (EUA), Carvalho é autor do clássico Os Bestializados. De O Rio de Janeiro e a República Que não Foi e do recente best-seller Pedro II. Ser ou não Ser.
Quais foram os impactos da recriação do Exército durante a ditadura Vargas na vida da instituição e do País nas décadas seguintes?
O principal foi a transformação do Exército em poderoso ator político a serviço da construção do Estado. De 1889 até 1930, a instituição era mais foco de oposição e de revoltas do que de ordem. As reformas procuraram reduzir os conflitos internos, fortalecer a hierarquia, enfatizar o profissionalismo, definir um papel para a instituição. O espírito da reforma reflete-se na frase de Góis Monteiro, que, como tenente-coronel, comandou a ação militar de 1930: "É preciso fazer a política do Exército e não política no Exército". Afastar o Exército da política partidária era condição indispensável para que ele pudesse agir em bloco.
O Exército da ditadura militar absorveu mais os ideais do Estado Novo ou as doutrinas e concepções militares do século 19 e do começo do 20?
O Exército da ditadura era o mesmo que vinha sendo reformado desde 1930. Os condestáveis do Estado Novo, os generais Eurico Gaspar Dutra e Góis Monteiro, já estavam presentes na cúpula militar desde 1933. No Estado Novo, eles monopolizaram o ministério e a chefia do Estado-Maior. Foram eles também os principais agentes da deposição de Vargas. A nova visão do papel do Exército incutida após 1930 ajustava-se às preocupações que depois se consolidaram no Estado Novo: fortalecimento do Estado Nacional contra o que consideravam excessos do federalismo, ênfase na ordem, exacerbada pela luta ideológica trazida do cenário internacional, reformas de cima para baixo.
A tentativa de disciplinar o Exército e acabar com a fragmentação de poderes dos militares criou uma elite à parte das elites econômica, social e política?
Tudo começou antes do Estado Novo e eu diria que os esforços para unificar o Exército ajudaram a viabilizar o Estado Novo, isto é, dar apoio militar a Vargas. Se a unificação estivesse completa, provavelmente Góis Monteiro poderia ter assumido a ditadura, pois vontade não lhe faltava. A eliminação da política dentro do Exército exigiu um afastamento em relação à sociedade buscado por várias medidas: fortalecimento do corpo de oficiais, barreiras à promoção de praças ao oficialato, preparação ideológica, maior seletividade no recrutamento para os colégios militares, escolas preparatórias e Escola Militar. Hoje se diria que buscavam blindar o Exército contra influências externas. Mas já no Estado Novo outro tipo de contato se estabeleceu. A nova ênfase no desenvolvimento industrial aproximou militares de setores empresariais da época.
O estudo do historiador Fernando Rodrigues indica que o Exército adotou normas racistas e discriminatórias nos seus processos de seleção.
Ainda não li o trabalho citado. O Estado Novo, sem dúvida, exacerbou as medidas discriminatórias. O relatório secreto de 1940 indicava os critérios de exclusão de candidatos: nacionalidade, religião, orientação política, condições morais. Segundo depoimento de Nelson Werneck Sodré, que foi oficial de recrutamento, na prática eram discriminados judeus, filhos de estrangeiros, filhos de mulheres separadas dos maridos e "pretos". No Império e na Primeira República, o problema era oposto. De um lado, obrigar todos ao serviço militar, de outro, atrair a classe alta.
O que explica o distanciamento hoje das demais forças militares das elites econômica, cultural e política?
São restos dos ressentimentos gerados pela ditadura, que se aplicam sobretudo às áreas cultural e política. As coisas, no entanto, já estão mudando. Na área acadêmica já existem vários exemplos de aproximação e cooperação. O Brasil caminha para ter Forças Armadas voltadas para sua profissão, alheias à política partidária, em contato com os setores da sociedade em torno de problemas de interesse nacional. Só falta remover o último obstáculo, a questão dos desaparecidos durante a ditadura.

segunda-feira, março 07, 2011

“Angola – Manifestos, Programas e discursos na Formulação de uma Identidade” entrevista com Professor Carlos Serrano

Comentários de Moisés Basílio: Tive a felicidade de ter sido aluno do Professor Carlos Serrano, numa disciplina do curso de graduação sobre a África Subsaariana, no primeiro semestre de 2010 na Universidade de São Paulo. É sempre bom ouvir e ler o que o Professor Serrano tem a nos dizer sobre a África, pois como intelectual tem toda uma vida dedicada a estudar questões importantes do continente mãe da humanidade.

Fonte: Entrevista pública no Sítio Universidade -  http://guinevereuniversidade.blogspot.com/2011/01/viriato-da-cruz-foi-o-ideologo-da.html - em 04/01/2011.

Viriato da Cruz foi o ideólogo da angolanidade, diz acadêmico Carlos Serrano



Luanda - Carlos Serrano, antropólogo, angolano nascido em Cabinda, é professor de Antropologia na Universidade de São Paulo (a muito conhecida USP), que é a maior e uma das mais importantes universidades existentes nos espaços de língua portuguesa. A seguir, apresentamos uma conversa mantida à margem do IV Encontro da História de Angola, decorrido no final do mês de Agosto aqui em Luanda. Nessa ocasião, o professor Serrano apresentou o tema: “Angola – Manifestos, Programas e discursos na Formulação de uma Identidade”.


SA- Que importância tem esse tema na formulação da identidade angolana, professor?

CS- Bom, acho que esta apresentação serve para dar continuidade ao meu trabalho que foi publicado em livro em 2009, que está ai no mercado angolano, tenho estado a trabalhar sobre a questão da identidade até porque já venho algum tempo a trabalhar sobre esta temática, e chego a conclusão que há diversas formas de abordar este tema, e um deles, que achei importante, e que tenho estado a pensar, tem a ver com a questão que vem dos anos 1940-50, sobre os discursos e formas de representação desta matéria pelos jovens da época que vieram a dar nas lideranças e fundadores do movimentos, principalmente no caso do MPLA, e como é que eles começaram abordar a questão da identidade. Primeiro, antes mesmo de falar de identidade, há necessidade de se criar uma ruptura com o discurso colonial, e a partir dai o angolano se tornar sujeito do seu próprio discurso, que não sejam mais os outros a falarem por ele.

Bem, mas isso tem alguns problemas, não é? E a forma, no meu entender, foi através das manifestações culturais que era à única maneira legal, na medida que havia uma grande repressão, de poderem começar a dialogar e a formular este problema. Bem, o interessante é que eu falo de jovens, e realmente eram todos muito jovens, o que já é uma característica dessa ruptura, quer dizer, nós sabemos que nossa sociedade é hierarquizada, também pelas faixas etárias, e que os mais velhos têm de certa forma uma hegemonia do discurso não é? Esta geração para mim, parece ser exactamente a geração de ruptura. Primeiro por serem jovens, e não compactuar mais, não que os mais velhos compactuassem, mas tinham algum receio, penso que este jovens tiverem este voluntarismo, esta vontade de superar esta geração, dai marca esta ruptura, que se faz primeiro a nível deste discurso cultural. Então, tenho impressão que a geração de 1950, sobretudo o grupo que tem como palavra de ordem”Vamos Descobrir Angola!” é sem dúvidas, um marco, não que este seja definitivo não é? Tudo eu afirmo, nunca tenho como verdades definitivas não é?...(Risos). Mas foi para mim o grupo mais representativo, fez um Jornal à “Mensagem” que já estava a pensar nisso, a Mensagem, é uma Revista, onde as pessoas falavam de Angola, dos valores culturais angolanos, bem, então esta é uma primeira ruptura, ai não se vê explicita em nenhum momento da publicação alguma coisa que se refere a Portugal, ou que se refere algo assim, e há intenções, não é? Há um poema logo no inicio que eles devem congregar-se na diferença de todos ou na unidade, alguma coisa do género, isto é importante porque é isto que vai dar esta unidade, que é o primeiro p+asso para de pensar, não se pode lutar individualmente, tem que se ver a formação de um eu colectivo, e ao mesmo tempo ver –se à forma de se manifestar colectivamente, todos os intelectuais neste sentido, dai então eles marcaram sem duvidas um marco. Bom! Mais isto não é suficiente, nós aprendemos que toda ruptura no domínio intelectual do século XIX, é marcado por manifestos, então um o manifesto é sem duvidas o momento de ruptura, e existem vários manifestos na década de 50, não há apenas um, que vão culminar, as datas não importam, se é em 1958, ou 1960, há muitas discussões sobre isto, mas o manifesto do MPLA, é um deles que vai talvez ser o que melhor vai reflectir sobre esta questão da identidade de Angola, de criar Angola. Então, aquilo que eu dizia “ Vamos Descobrir Angola!” é uma frase polissémica, que não quer dizer “descobrir”, se já existe, não é? Ela pode redescobrir ou construir não é? No fundo isto não se podia dizer, não se podia dizer “ Vamos Construir Angola” seria uma coisa muita explicita.

Bom! Então o projecto cultural “Vamos descobrir Angola” vai mostrar essa aspiração dos jovens intelectuais de forma legal, como sabe todos manifestos políticos da época eram clandestinos. Este projecto é uma parte cultural positiva e legítima que pertencia a revista “Mensagem” da “Anangola” (Associação dos Naturais de Angola) e que podia escrever sobre esta matéria. Os manifestos não, os manifestos e panfletos que circularam em Luanda naquela época, eram de carácter reivindicativos e de denúncias. Ao mesmo tempo, a reivindicação última é esta: vamos lutar pela nossa independência, mas não se diz, como nem quando, tão pouco a forma. Já o manifesto do MPLA, mais tarde, retoma uma análise histórica e de estrutura de classes sociais, económicas da chamada colónia de Angola, para mostrar que o povo estava ser explorado e ao mesmo tempo, dar caminhos para libertação, tudo isto culmina de certa maneira, que vai dar num programa, isto é, o manifesto é um projecto politico que vai de encontro as aspirações do povo, mas não é a forma última para se alcançar isto, tem que haver um programa que é a forma que coloca em prática o manifesto deste projecto politico, o projecto é uma coisa abstracta e teórica, mas o programa não, vai dizer como e por quê? O programa que tenho como exemplo é o programa do MPLA, de 1963, que foi o primeiro programa, que vai dizer item por item, o que é e o que vai ser a futura e por que é que estão a lutar. Estão a lutar para que não haja diferenças até mesmo culturais e étnicas, vai se considerar, exactamente estas diferenças que como um dado cultural do povo inteiro, ao mesmo tempo então vai falar também que nestas diferenças alguns dos povos que constituem a nação angolana, vão e devem não só pesquisar as línguas próprias, está é uma reflexão sobre a diversidade cultural e o respeito a esta diversidade cultural, chega até a dizer que as pessoas que constituem os diversos grupos e que têm uma certa autonomia cultural local devem ser consideradas a possibilidade de construção destas autonomias culturais locais não é? Então, há toda uma série de itens que vão percorrer este programa que nos dão orientação daquilo que as pessoas não só pensam, mas que querem exactamente pensar o que vai ser Angola futuramente, não quer dizer que pára ai, não é? Claro que isto vai mudar com o tempo. É um processo. Como eu digo, o tempo da luta, há vários tempos, há o “tempo do imaginário”, o “tempo do antigamente da vida”, que era dos jovens intelectuais da época, em volta da revista “Mensagem” do “ Vamos Descobrir Angola!” etc.É um momento histórico, não é? O outro passa ser mesmo o “tempo da revolução””, é o que conduz ao Manifesto; que é a “ruptura”; ao programa etc. e que vai culminar com a luta e o processo que conduz ao “tempo da independência”, o momento que consagra exactamente aquilo que as pessoas estavam a lutar. Mas não pára aí, a partir deste momento é reformulada novamente a questão da identidade. A partir deste momento eu chamo do “tempo institucional”, o que está identificado com o Estado que se formula de forma diversa. Antigamente era o Estado colonial, a partir deste momento é o Estado nação Angola, que passa a ter um outro tratamento institucional e jurídico. O que é ser angolano? O que é que se define pela constituição? Mesmo assim, isto mudou já pelas diversas constituições que o país teve, que possivelmente ainda venha à mudar, porque a questão da construção da identidade, não se cristaliza e não é definitiva, ela vai com certeza ter alterações futuras, pensando sempre nesta construção da ideia de nação.

SA- Professor, gostava de ouvir de si mais dados sobre o manifesto de 1948 “Vamos Descobrir Angola!” teve apenas um substrato cultural ou terá sido mais abrangente?

CS- Não ele pode ter começado, e não acredito que tenha a intenção de se definir como meramente cultural, e só com esta finalidade, era a forma legal de luta possível dentro de legalidade, era o de constituir uma Revista, com fins culturais, que tinha poemas, mas está nas entrelinhas, por exemplo os poemas que aparecem do Viriato da Cruz, do António Jacinto e outros, que estabelecem também a mesma ruptura, quer dizer, deixou-se de escrever o português, ou as formas construtivas da estrutura da língua tal como se fazia no português ditado pela metrópole, naquele momento os poemas do Viriato e do Jacinto, têm já um léxico de palavras em Kimbundu e outras coisas e não falam apenas da natureza, falam das suas coisas, das coisas angolanas. O primeiro momento, digamos assim, de “eliminação” do colono estão nos textos literários, não precisamos mais falar destas coisas. A luta está aí e vai se dar. Aí sim é que vai haver outro tipo de animação. Agora, falar de “nós” é excluir o “outro”, da mesma maneira que eles fizeram connosco, nos excluíram da História e da Cultura. Então, aqui o processo ainda está dentro de uma identidade contrastiva, ou seja no fundo o colono construiu uma identidade própria para o colonizado (indicativa, prescrita). As categorias de “indígena”, e do “branco civllizado”, passam pela dimensão racial também, quer dizer, a identidade contrastiva é esta, quer dizer: são portugueses e são brancos, somos angolanos e somos negros. Mas esta questão do angolano vai ter uma reformulação da categoria racial também, quer dizer são os negros angolanos, são os mestiços, este ainda é um debate que vai se prolongando até os nosso dias. E, também os brancos que se identificaram com a maioria, com africanidade, com angolanidade, são minoria mas existem, até do ponto de vista literário etc. Bem, então ser angolano é alguma coisa que vai ser supra-étnico, supra-racial e unificado, quer dizer é um “Eu” colectivo, e é isto no fundo que vai orientar sempre a construção da identidade nacional.

SA- Professor, se no manifesto de 1948 estava subjacente o lado político, sob a panóplia cultural no de 1956, está bem visível a componente politica…

CS- Sim, o António Jacinto já dizia que até ao movimento “Vamos Descobrir Angola!” já tem um carácter politico, mesmo que não seja manifesto explicitamente, mas ele possui exactamente esta intenção em si, está implícito. Mas como é evidente, o manifesto é já alguma coisa para acção mesmo, não é? O manifesto não é só uma ruptura literária de construção do imaginário, mas é alguma coisa propõe acção para se conseguir essa independência, não é? E ai sim é o manifesto político na verdadeira acepção da palavra.
SA- Estes dois manifestos saíram do punho do mesmo autor. Em 1948, o primeiro Viriato da Cruz publicou-o na revista Cultura. Em 1956, já foi mais claro em termos de condão político, não é, professor?

CS- Sim! Conheci pessoalmente o Viriato não é? Ele dizia que haviam certos momentos de superação dos momentos que nós vivíamos, não disse a mim pessoalmente, mais há escritos de que ele diz: olha à questão cultural está superada, porque houve críticas na época. As pessoas, questionavam dizendo: O Viriato nunca mais escreveu poemas ele que foi o fundador de uma poesia angolana de angolanidade. E o Mário António questiona no seu livro, será que é porque ele não queria ou porque não sabia? Esta questão é um pouco crítica esta frase, claro que o Viriato sabia fazer, porque ensinou os outros, não é? Só que ele achava que aquela fase cultural já estava ultrapassada, tinha que passar uma nova fase que era uma fase de acção. Mais o manifesto não é de uma só pessoa, é o que sempre digo, claro que o Viriato foi sem duvidas o ideólogo e não se pode negar este facto, mas eu sempre parte desta concepção de era um núcleo de jovens e eram bastante jovens, que sempre partiam para formulação de alguma coisa sempre unitária, de unidade na construção daquilo que chamo do eu colectivo, e construir naquilo que Benedict Anderson chama de comunidade imaginada, e é isto que eles pensavam em conjunto, era o Viriato, era o António Jacinto, por exemplo o Ilídio Machado que pertenceu ao primeiro núcleo do partido comunista angolano, o Mário António que depois saiu, foi estudar para Portugal e não voltou mais, que também fazia parte daquele grupo era uma serie de jovens intelectuais da época, que faziam isto, talvez tivessem já nesta época a liderança do próprio Viriato isto eu não tenho dúvidas, então estas são formas de pensar sempre em conjunto, é esta a minha ideia.

SA- Em determinada passagem da sua comunicação, que fazia referência que no programa do MPLA, de 1963, “Nós queremos garantir a igualdade de todas as etnias em Angola” este dado era assim tão importante para época professor?

CS- Possivelmente em 1963, as pessoas também sabiam que para além desta diversidade, não é? A política colonial protegia algumas etnias e excluía outras. Para poder melhor governar, quer dizer aquele jargão que dizia dividir para melhor reinar, era realmente um processo usado pelo colonialismo. Então, esta ideia de igualdade, dos grupos étnicos mesmo minoritários de ter expressão e voz na construção da unidade devia ficar marcada no programa.

SA- Professor enquanto Antropólogo, gostaríamos que nos dissesse com rigor científico que a resposta merece, podemos dizer que Angola é uma nação?

CS- Eu digo desde o inicio, desde a formulação lá pelos mais velhos, antes mesmo de Angola ser independente, já estava a começar a ser construída a nação. A nação não é nada cristalizado: o Estado mudou, o Estado-nação há em qualquer parte do mundo, nunca parou, é um processo, e o processo vai mudando sempre. Então, a nação é algo em construção. Vai perguntar mais: a nação existe ou não existe? Existe, acho que existe na medida que as pessoas se identificam como angolanas. Há uma maka. Não queria falar disso agora… É da época contemporânea que eu sempre disse isto. No exterior, quando sou indagado pelas pessoas por questões deste género, tenho dito, durante a luta que houve durante trinta anos, houve cessação? As pessoas podiam estar a combater pela hegemonia do poder, pelo poder mais a separação, como se deu na Nigéria, e noutros lugares. Penso que não, nunca houve uma tentativa de cortarem Angola ao meio, e mesmo no lugar onde eu nasci, mesmo Cabinda, tenho impressão que há sempre a possibilidade de dialogo de conversação, para se conseguir aquilo que está no projecto de 1963, quando já se falava em autonomias locais. Isto não quer dizer separação. A concepção do programa de 1963, que era meio federalista, não que explicitasse isto, mais havia uma ideia implícita, e esta ideia penso que nem sempre pode ser posta de lado. Claro que há vários tipos de federação: federação suíça Helvética, à Nigéria, a Republica Federativa do Brasil. Não quero dizer que sejam todas iguais, mas há formas de reflectir a inclusão de todos dentro de uma só nação, e acho que não é forçado, as pessoas convivem a centenas de anos juntas, sobretudo no tempo colonial, não é? Permitiu que todos tivessem convivido e que tivessem até um inimigo comum, o que mobilizou as populações neste luta foi em parte o combate ao próprio colonialismo, o que uniu, as pessoas, elas estavam muitos ligadas aos seus locais. Isto sucedeu também na América Latina. A guerra, por mais terrível que tenha sido, leva as pessoas a se contactarem umas com as outras, e a ter noção do outro, o primeiro momento foram às cidades, na sua criação, às pessoas se encontrara nas cidades vindas de várias partes do país e regiões etc. Há uma outra, que foi o momento de mobilidade, quer dizer, o colonialismo não conseguir fazer com que cada um ficasse no seu lugar, porque a guerra, conduziu a que as pessoas todas se contactassem. Na América Latina também, não digo tanto o Brasil, mas os países de língua espanhola, o movimento levou Simon Bolívar, que veio desde o Sul do continente até a Venezuela, a construir uma guerra de libertação em diversos locais, ele é herói não só da Venezuela, era o grande individuo lutador, e isto levou a possibilidade e esta marcha grande levou a que as pessoas tomassem consciência dos seus problemas e contacto de pessoas que vinham do Chile, e da Argentina e que tenham vindo a tomar contacto durante a caminhada para as independências, não é? Que culminou lá em cima no Norte da Venezuela. Este movimento que é a guerra que ninguém quer mais, foi a única saída devido a intransigência do colonizador conduz a isto, que as pessoas comecem a se contactar umas com as outras e a ter noção supra Nacional, e a fazer que a sua identidade étnica seja de certa maneira, não posta de lado, não as pessoas não renunciam às suas etnias. Mas luta agora para uma unidade supranacional, quer dizer, isto evidentemente que não pára também, com as independências e com uma definição jurídica ou institucional, ela tem que ser construída, ai estão as diversas formas de construção através dos processos, por exemplo o Ministério da Cultura é um lugar onde estes debates, onde estas coisas devem ser colocadas, não é? É onde se colhem os elementos culturais das diversas partes do país, do ponto de vista antropológico, para poder dar a conhecer a diversidade do país. Claro que os meios de comunicação são essenciais para isto, quer dizer, Rádios, Jornais e Televisões, quer dizer, dar a conhecer ao mesmo momento ao país uma notícia do Norte, do Sul da Capital etc. Este é um dos elementos que participam da construção os meios de comunicação.

SA- A discussão sobre a questão da nação é realmente polémica. Há autores que dizem que não se pode falar em nação pelo facto de não termos língua nacional em comum, e de não haver elementos identitários em Angola, por vezes só a selecção nacional, mas também quando joga. Acha que se tivéssemos pelo menos adoptado o programa do MPLA, de 1963, sobre o federalismo, algumas guerras e mal entendidos teriam sido evitados, professor?

CS- Não! Não, isto seria possível se todos os movimentos aceitassem um programa, aquele programa, mais não foi necessariamente, os outros movimentos nacionalistas, não tinham sequer um programa, dizia-se não pude ler hoje o texto completo, mais tenho estado a recuperar discursos do Holden Roberto, do Agostinho Neto, do Lúcio Lara etc. sobre esta questão durante a luta, então o Holden… Bom, naquela altura o Savimbi pertencia a FNLA, talvez deste período descubro estes discursos do Holden. Será o povo angolano a discutir e decidir o que vai fazer no futuro. Então a nossa luta nesse momento referido é a de conseguir a independência. Penso que o MPLA terá começado desde o início. Era uma actividade… Falei com várias pessoas do tempo da luta, pessoalmente estive no exterior exilado na Argélia durante algum tempo, logo depois fui estudar, o Viriato da Cruz mandou-me estudar, disse-me “se quiseres ser útil vai estudar”, e fui estudar, foi de facto a melhor coisa que fiz, é pela educação que acho que é também um dos elementos fundamentais, aliás, foi dito por dos oradores deste painel, que também acho ser fundamental para construção da identidade em si. Bem, pode a ver várias concepções sobre esta questão mesmo até da língua, há pessoas que não aceitam que o português tenha se tornado também uma língua nacional. Temos o exemplo do Brasil, o português brasileiro, e as pessoas no Brasil gostam de falar assim, já não é igual ao português de Portugal, foneticamente e até palavras, tem se calhar uma maior identidade até com Angola, se você for falar no Brasil um xingamento, o Angolano sabe o que é xingamento, agora em Portugal não é insulto, e por ai adiante, não é? Foram muitos vocábulos para o Brasil, defendo que se deve analisar também a questão da língua do português de Angola, como alguma coisa que foi uma conquista, é uma conquista do angolano, a língua não é mais a língua do colonizador, como se costumava dizer. Agora, faz parte do parte do património angolano e se faz uso dela como o angolano quer e não como o outro dita. A língua é também alguma coisa que vai se modificando todos os dias, e recebe de fora dentro desta globalização uma serie de palavras de outros, durante muito tempo, com a presença de cubanos e soviéticos etc., e que hoje fazem parte também do léxico usado pelos angolanos, da nomenclatura etc. Uma série de palavras enfim, tudo isto é dinâmico, não é? E acho que o mais enriquece são as palavras emprestadas pelo povo dos vários lugares de Angola, claro que há uma forma, que o português escrito e o falado são diferentes, mais sempre foi, por altura da independência só havia 5% de pessoas alfabetizadas formalmente, mais já havia mais 40 ou 50% dos angolanos já falavam português, eram falantes, não tinha alfabetização completa, mais eram falantes. Para mim, estamos num país e entre os povos africanos em que a cultura oral é mais importante do que talvez pela escrita e é por ai onde se tem que compreender o português de Angola dentro desta manifestação de oralidade. Então é uma língua nossa? É, acho que é interessante ao mesmo tempo isto, demonstra que nós estamos a pensar no futuro e que não estamos somente presos neste processo de vitimas do colonialismo, fomos sim senhor, mais agora aquela questão que se fala, eu tenho uma outra ideia do “Homem Novo”, ele não é aquele que talvez se pretendia construir teoricamente do ponto de vista, não que eu, pelo contrário ainda me identifico com certos princípios, digamos assim socialistas etc. Mas não é esta concepção artificial do Homem Novo, o Homem Novo é aquele que nasce de uma situação de conflito mas que agora é uma situação de construção onde todos participam. Agora que as línguas nacionais têm que ser respeitadas e que têm que ir para Universidade etc. Também acho que sim, que é necessário, não que o português pode ser a língua mais falada e também nacional, que tenha privilégios, não é? As línguas onde existe esta densidade, é o que diz o Programa Mínimo sobre a densidade cultural, e fala que se devem respeitar as etnias, está-se falar também das línguas nacionais. Uma etnia é um grupo que tem uma língua própria, isto acho importante e é igual a qualquer país. Na França os Occitanos escrevem e falam a sua língua, os Bretões falam a sua língua, os Flamengos na fronteira do Dunquerque no Norte de França falam a sua língua, os Corços também falam a sua língua. Claro que há um domínio do gaulês, do mais eles até hoje não solucionaram os problemas étnicos ou diversidade cultural, até hoje.

SA- Das informações que tem, acredito que terá informações privilegiadas neste domínio, gostávamos de saber de si: quem foi o autor do slogan “Vamos Descobrir Angola!”, professor?

CS- Não sei! Eu convivi com estas pessoas, mas nunca ninguém me disse isto, eu continuo firmemente a pensar que deve ser sugestão de alguém(Mario de Andrade atribuía ao Viriato da Cruz), mas continuo a falar sempre no plural. Era um grupo, e este grupo pensava em conjunto. Há sempre uma ideia, uma sugestão de uma das pessoas, mas eu não sei. Aquilo que eles queriam dizer era pensado em conjunto. Os discursos, tenho analisado hoje muito os discursos, quando vou aos panfletos, vou aos manifestos, em todas as coisas, nas actas, as pessoas daquele tempo mesmo da luta sempre se manifestavam no plural. Dizer: “eu isto ou aquilo”? Não havia isto! Pode-se ler, por vezes falar-se a “malta”, que era a gíria da época, nós todos,” a malta tem que se decidir assim, a malta...”. As sugestões, as pessoas podiam aceitar ou não, mas falava-se sempre, mesmo que houvesse a liderança de alguém, este alguém não punha a discussão individualmente. Isto que estou a falar pode ser comprovado até nas actas do movimento que agora estão a disposição lá na Torre do Tombo, aprendidas pela PIDE, e isto é forte e é diferente do que nós podemos pensar noutros momentos, não é? E isto é importante para se decidir o destino colectivo.

SA- Quais têm sido as suas pesquisas agora, enquanto Antropólogo?

CS- Estou a estudar a história recente, e quando digo história recente não quer dizer de agora, não é? Tem algum passado. Por exemplo, comprei e agora acabei de comprar um exemplar, algumas memórias dos mais velhos que alguns estão até a falecer, e continuo muito interessado exactamente nestes aspectos deste período que no fundo às memórias cobrem este período da história recente, sobretudo aquilo que as pessoas deram importância ou por vezes também esquecem. Esta questão do esquecimento também é um facto politico e histórico: a amnésia também é dirigida. Temos que estar atentos e fazer uma pesquisa, mas no fundo é isto. Já tenho neste momento catorze a quinze volumes de memórias ou biografias. Por exemplo o Viriato não fez memórias, mas já saíram dois livros sobre o Viriato, também está incluído no meu trabalho, porque foi uma pessoa importante na história de Angola e penso que continua ser na medida em que há pelo menos dois livros sobre ele, não é? É um pouco isto e ao mesmo tempo e também é histórico não é uma coisa actual, mas estou a ver a questão das genealogias das linhagens, das famílias sobretudo luandenses onde circulam de certa maneira à criação e renovação das elites dentro deste número que não sou eu que iniciei. Mário Pinto de Andrade, (em entrevista a Michel Laban) fala disso. Quem eram as famílias mais importantes e quem começou a entrar nelas. Alguns destes indivíduos que foram nossos heróis nacionais, como os Boavida e outras famílias, pelo “casamento de aliança”. Como é que os generais do Sul quando estabeleceram novas relações com o poder central (MPLA), durante o conflito, para obterem uma certa legetimidade reconhecida. Era através de um casamento de aliança com as senhoras da capital. Não enumero estas pessoas, claro que não vou falar aqui, mas estão nos jornais, nos semanários, no Jornal de Angola etc. estas informações são públicas, não é? Isso mostra que a questão da construção da genealogia também é uma construção politica e está aí para as pessoas verem e reflectirem sobre estas questões.