terça-feira, outubro 23, 2012

O GRANDE HISTORIADOR HOBSBAWN E O FUTEBOL


Comentários de Moisés Basílio:
O artigo do historiador Raul Milliet Filho nos proporciona uma leitura muito saborosa para quem adora História e Futebol. E mais, suas reflexões nos traz o pensamento penetrante e lúcido do saudoso historiador inglês Hobsbawm.  


Fonte: Sitio Carta Maior, http://www.cartamaior.com.br/templates/analiseMostrar.cfm?coluna_id=5823 , acessado em 23/10/2012
DEBATE ABERTO

Eric Hobsbawm e o Futebol

Em um dos seus textos, Hobsbawm afirmou que um historiador social não podia negligenciar nem a economia nem Shakespeare. Deveria analisar não somente os aspectos econômicos da vida em sociedade como as idéias, a linguagem e o imaginário coletivo. Para ele, o futebol não era apenas um esporte. Era arte e paixão popular, ou culto proletário de massa.


“O esporte que o mundo tornou seu foi o futebol de clubes, filho da presença global britânica... Esse jogo simples e elegante, não perturbado por regras e/ou equipamentos complexos, e que podia ser praticado em qualquer espaço aberto mais ou menos plano do tamanho exigido... tornou-se genuinamente universal.” 

Tomei contato e conhecimento do interesse de Hobsbawm pelo futebol em 1976. Para minha alegria de botafoguense apaixonado e historiador recém-formado, soube do seu gosto pelo futebol. Torcedor do Arsenal, ele não só gostava como entendia do jogo. E isto era raro.

Afinal, como disse certa vez Edgar Morin: “o estudo dos fenômenos desacreditados é igualmente desacreditado”. E, naquela época, nos meios universitários do Brasil e de todo o mundo, nada mais desacreditado que o futebol. Os professores doutores, salvo raras exceções, eram típicos intelectuais de laranja, cunhados por Nelson Rodrigues, que não sabiam bater nem um reles escanteio. Olhavam o futebol com o nariz em pé.

Assim que soube da novidade, recorri ao amigo e sociólogo Luciano Costa Neto, que começara a traduzir A Era do Capital para o português.
Encaminhei, por Luciano, algumas perguntas por escrito a Hobsbawm em um dos encontros que tiveram para ajustar pontos da tradução.

Na resposta, devidamente anotada por Luciano, Hobsbawm falava que não só o futebol era um assunto de relevo para os historiadores, mas contava da sua admiração pela seleção brasileira e por dois jogadores em particular: Gerson e Tostão. E ia além, relembrando dois jogos da Copa de 70: Brasil x Itália e Brasil x Inglaterra. Deste último jogo retinha na memória a trama do gol brasileiro feito por Jair.

E não foram citados apenas Tostão e Gerson. Hobsbawm disse a Luciano da sua decepção em nunca ter visto Garrincha atuar em campo.

Quase 20 anos mais tarde deixaria registrado: “...e quem, tendo visto a seleção brasileira em seus dias de glória, negará sua pretensão à condição de arte?...” ( A Era dos Extremos)

Para Hobsbawm, o futebol bem praticado não era apenas um esporte. Era arte e paixão popular, ou culto proletário de massa.

Autor de livros que inovaram a compreensão do mundo contemporâneo: A Era das Revoluções (1789–1848); A Era do Capital (1848–1875); A Era dos Impérios (1875–1914) e A Era dos Extremos (1914– 1991), encantou leitores e críticos de várias correntes do pensamento, independente de filiação ideológica ou político-partidária.

Marxista, avesso a análises reducionistas e dogmáticas, Hobsbawm foi um estilista erudito e original, senhor de uma narrativa leve e sofisticada, respeitado até mesmo por críticos contundentes, como Tony Judt.

Em um dos seus textos afirmou que um historiador social não podia negligenciar nem a economia nem Shakespeare. Deveria analisar não somente os aspectos econômicos da vida em sociedade como as idéias, a linguagem e o imaginário coletivo.

Foi exatamente isto que ele fez em seus escritos. O contraponto entre as relações econômicas e culturais está presente em sua vasta obra, inclusive quando aborda o futebol, como nesta passagem de Mundos do Trabalho, recuando ao período de profissionalização/popularização do futebol inglês.

“O futebol como esporte proletário de massa – quase uma religião leiga – foi produto da década de 1880, embora os jornais do norte já ao final da década de 1870 houvessem começado a observar que os resultados de jogos de futebol, que eles publicavam somente para preencher espaço, estavam na verdade atraindo leitores. O jogo foi profissionalizado em meados da década de 1880...”

O surgimento dos Esportes Modernos (dentre os quais o futebol) na segunda metade do século XIX foi analisado por Hobsbawm em sintonia à consolidação do Estado-Nação da era moderna.

Em A Invenção das Tradições (escrito com Terence Ranger), o futebol é identificado como uma entre muitas formas de expressão e símbolo da nacionalidade, como mais um modo de coesão necessário à nação moderna.
Discorrendo sobre as décadas de 1880 e 1890 na Inglaterra, Hobsbawm reafirma a importância do tema:

“Pela história das finais do campeonato britânico de futebol podem-se obter dados sobre o desenvolvimento de uma cultura urbana operária que não se conseguiram através de fontes mais convencionais.” (A Invenção das Tradições).

Ainda em A Invenção das Tradições, Eric Hobsbawm volta seu olhar para o vestuário operário, associando a utilização do boné como meio de identificação e expressão de classe fora do trabalho. E mais uma vez, o futebol é mencionado:

“Na Grã-Bretanha, ao menos, segundo indícios iconográficos, os proletários não eram universalmente relacionados ao boné antes da década de 1890, mas no fim do período eduardino – como provam fotos de multidões saindo de jogos de futebol ou de assembléias – tal identificação era quase completa. A ascensão do boné proletário ainda está à espera de um cronista. Ele ou ela, supostamente, descobrirá que sua história tem relação com a do desenvolvimento dos esportes de massa, uma vez que este tipo específico de chapéu surge a princípio como acessório esportivo entre as classes alta e média.” (A Invenção das Tradições)

O vínculo entre o boné, o futebol e o vestuário dos trabalhadores ingleses é ainda mais forte e estreito do que Hobsbawm supunha. Pelo regramento do futebol inglês, a presença do juiz data de 1863. Mas por 21 anos o poder do juiz ficaria subordinado aos capitães das equipes.

E os capitães ou “reclamadores” utilizavam um bonezinho para se diferenciarem dos demais. Boné que em inglês é cap. De cap para capitão foi um pulo. O fato é que o reclamador ficou conhecido como o capitão do time, produto deste antigo costume britânico.

Assim, é possível depreender que a utilização do boné (cap) pelo capitão (ou reclamador) no futebol foi um dos fatores que contribuiu para a disseminação do boné entre as classes populares inglesas e, posteriormente, em quase toda a Europa Ocidental.

Para Hobsbawm, não apenas a história do vestuário proletário não foi escrita mas também a da cultura do futebol na transição do século XIX para o século XX, na Inglaterra:

“A natureza da cultura do futebol neste período – antes de haver penetrado muito nas culturas urbanas e industriais de outros países – ainda não foi bem compreendida. Sua estrutura socioeconômica, porém, é mais compreensível. A princípio desenvolvido como esporte amador e modelador do caráter pelas classes médias da escola secundária particular, foi rapidamente (1885) proletarizado e portanto, profissionalizado; o momento decisivo simbólico – reconhecido como um confronto de classes – foi a derrota dos Old Etonians pelo Bolton Olympic na final do campeonato de 1883.” (A Invenção das Tradições). 

Entre 1890 e 1914, a popularização do futebol inglês registrou um crescimento avassalador. Os jogadores de futebol eram oriundos das fábricas, escolhidos entre os operários mais habilidosos, ao contrário do que acontecia no boxe, onde o critério de escolha levava mais em conta a força e o tamanho dos futuros atletas.

Em A Era dos Impérios, Hobsbawm identifica a existência de cerca de 1 milhão de jogadores de futebol na Inglaterra antes de 1914 frente a uma população geral de cerca de 31 milhões de habitantes.

Abordando o período entre guerras (1918-1939), destaca o papel do esporte e do futebol em particular, representando cada vez com mais força uma expressão de luta nacional e identificação dos indivíduos com a nação, tendo como símbolos mais próximos os atletas:

“A imaginária comunidade de milhões parece mais real na forma de um time de onze pessoas com nome. O indivíduo, mesmo aquele que apenas torce, torna-se o próprio símbolo de sua nação.” (Nações e Nacionalismo desde 1870, p. 171).

Uma lembrança do então menino Eric Hobsbawm, é descrita:

“O autor se lembra quando ouvia, nervoso, à transmissão radiofônica da primeira partida internacional de futebol entre a Inglaterra e a Áustria, jogada em Viena em 1929, na casa de amigos que prometeram descontar nele se a Inglaterra ganhasse da Áustria, o que, pelos registros, parecia bastante provável. Como o único menino inglês presente, eu era Inglaterra, enquanto eles eram Áustria. (Por sorte a partida terminou empatada). Dessa maneira crianças de 12 anos ampliavam o conceito de lealdade ao time para a nação.” (Nações e Nacionalismo desde 1870).

Mas, para quem, como Hobsbawm, toda História é História contemporânea disfarçada, o futebol globalizado, controlado por empresas transnacionais não poderia ficar de fora do alcance de sua pena.

O intrincado jogo de interesses entre a FIFA e os grandes clubes internacionais, com seus conflitos de grandes proporções, à primeira vista inconciliáveis, foi abordado em Globalização, Democracia e Terrorismo:

“... a lógica transnacional da empresa de negócios entrou em conflito com o futebol como expressão de identidade nacional...

... Do ponto de vista dos clubes, provocaram um considerável enfraquecimento da posição de todos aqueles que não estão no circuito das superligas internacionais e dos supertorneios e em especial nos clubes dos países exportadores de jogadores, notadamente nas Américas e na África. A crise dos outrora altivos clubes de futebol do Brasil e da Argentina o comprova...” (Globalização, Democracia e Terrorismo).


Apesar da importância e da prevalência dos superjogadores e dos superclubes sobre os interesses nacionais, o historiador assinala que os objetivos de poder da FIFA têm tido força para manter, impor e ampliar a realização das Copas do Mundo como evento mais importante do futebol mundial.

Assinalaríamos apenas, aprofundando as conclusões de Hobsbawm, que a lógica econômico-financeira das Copas do Mundo acabou por entrelaçar-se com os objetivos do grande capital internacional. Isto foi possível graças à aliança da FIFA com os mesmos interesses que dirigem os superclubes, para a realização das Copas do Mundo. Até mesmo a escolha de países como a África do Sul , Brasil e Qatar, mais maleáveis a negócios extra-campo, demonstra isso.

Não se sabe até quando este equilíbrio instável e contraditório de forças no futebol mundial poderá ser mantido, tendo em vista que não está em jogo apenas a sobrevivência dos interesses nacionais e dos clubes, mas do próprio futebol como cultura popular.

Em a “História Social do Jazz”, talvez o seu melhor livro sobre cultura popular, Hobsbawm questiona a pasteurização da cultura pré-industrial pelo rolo compressor da sociedade contemporânea, citando o jazz como exemplo de resistência e manutenção de suas origens:

“O jazz é o mais importante desses exemplos. Se eu tivesse de fazer um resumo da sua evolução em uma só sentença eu diria: é o que acontece quando a música popular não sucumbe, mas se mantém no ambiente da civilização urbana e industrial”. (A História Social do Jazz). 

Aqui cabem duas indagações: será que o futebol atual, em particular o brasileiro, tal como o jazz, também não sucumbiu diante das pressões da civilização urbana e industrial?

Ainda é possível falarmos do futebol como arte e cultura popular?

(*) Doutor em História pela USP, professor, especialista em projetos sociais na área pública.

segunda-feira, outubro 15, 2012

ENTREVISTA COM O EDUCADOR TIÃO ROCHA SOBRE AS TENSÕES ENTRE EDUCAÇÃO E A ESCOLA FORMAL


Comentários de Moisés Basílio
O educador Tião Rocha em suas falas e nas diversas atividades educativas que realiza sempre nos propõe questões instigantes. Questões nascidas das suas experiências em tratar com a educação. 
Tião que já esteve dentro da "escola formal", rompeu com ela e hoje atua num campo educativo fora da "escola formal", o que ele nomeia ao final da entrevista de espaço de política pública não governamental. Meu percurso foi o inverso. 
Até aos 33 anos sempre trabalhei com a Educação Popular, fora da escola formal, nos espaços públicos não governamentais. Minha experiência dentro da "escola formal" não foi tão ruim como a que o Tião Rocha relata na entrevista, mas confesso que não gostava das formas e fôrmas dos currículos da escolarização e também tive meus conflitos com eles. 
O convencimento da importância da "escola formal", para mim, foi suscitado quando foi eleita prefeita em minha cidade Luiza Erundina e o grande mestre Paulo Freire, minha referência principal na Educação Popular, assumiu o cargo de secretário de educação municipal e se dispôs a articular Educação Popular e Educação Pública, no sentido de construir uma política pública educacional para a cidade.
Minha diferença principal com o Tião Rocha é essa, a posição geográfica de onde se faz a crítica. Eu busco transformar a "escola formal" por dentro, e ele por fora. Mas, estamos no mesmo combate para transformar a Educação em nosso Mundo: Tião Rocha apertando o cerco e eu dentro do cavalo de Tróia. 

Fonte: Sítio do jornal Folha de S. Paulo, 26/11/2007 - 02h30

Para educador, escola formal não serve para educar

UIRÁ MACHADO
Coordenador de Artigos e Eventos da Folha de S.Paulo

"A Escola formal não está só na forma. Está dentro da fôrma. O pior é quando está no formol. É um cadáver." É assim que o educador mineiro Tião Rocha, 59, vê o ensino convencional, de cujos métodos e conteúdos se afastou há mais de 20 anos para experimentar processos alternativos de educação.
À frente do Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento desde 1984, Rocha sempre persegue "maneiras diferentes e inovadoras" de educar, alfabetizar, gerar renda. Ele distingue educação de escolarização e busca um sonho: escolas que sejam tão boas que professores e alunos queiram freqüentá-las aos sábados, domingos e feriados. "Se ninguém fez, é possível", diz.
Folha - Toda a sua história como educador é feita do lado de fora das escolas convencionais. Qual é o seu problema com a escola formal?
Tião Rocha - Se eu tivesse um analista, isso seria um prato cheio para ele. Comecei a ter problemas com a escola desde que entrei, aos sete anos.
Logo no primeiro dia de aula, no Grupo Escolar Sandoval de Azevedo, Belo Horizonte, a professora Maria Luiz Travassos nos levou para a sala de leitura, pegou um livro, "As Mais Belas Histórias", da dona Lúcia [Monteiro] Casasanta, e começou a ler: "Era uma vez um lugar muito distante, onde havia um rei e uma rainha (...)".
Eu levantei a mão e falei: "Professora, eu tenho uma tia que é rainha". Ela desconversou, pediu para eu ficar quieto. Ela prosseguiu a história. Depois que a interrompi duas ou três vezes, ela me mandou calar a boca e ir falar com a diretora, dona Ondina Aparecida Nobre.
Ela me deu um tranco, perguntou se eu queria ser expulso. A partir daí, eu sempre inventava coisa para matar a aula. Nunca tive uma escola boa. Nunca tive prazer na escola, mas sempre quis aprender.
Quando fui para a faculdade, estudei história e antropologia, fui resgatar a história da minha tia, que era rainha do congado.
Para pagar os estudos, eu precisava trabalhar. Fui dar aula e me dei conta de que, se eu achava aquilo chato, meus alunos também, porque eu era um reprodutor da mesma chatice.
Folha - E você conseguiu mudar?
Rocha - Não. Criava jeitos diferentes de trabalhar com os alunos, inovava, mas, no fim, era uma experiência muito reformista. Ela começou a ser transformadora quando aconteceu o fato com o Álvaro, minha primeira grande perda [o garoto, excelente aluno, se suicidou].
Aí eu falei: "Opa! Não adianta querer que os meninos aprendam história se eu não consigo aprender a história da vida deles". Então comecei a deixar de lado não só a forma mas também o conteúdo.
Por exemplo, pedia aos alunos para pesquisarem em casa: sobre cantiga de ninar, expressões populares, jogos etc. Um pai chegou para mim e disse: "Vim te agradecer, porque eu tinha um problema de relacionamento com meu filho, mas agora ele apareceu querendo saber sobre as brincadeiras de quando eu era criança e começamos a conversar, a brincar".
Eu nem sabia que aquele negócio estava ajudando a aproximar pais e filhos. Aí eu fui me libertando dos conteúdos cheirando a mofo e comecei a ver que estava partindo para uma outra coisa. Esse processo foi evoluindo na reflexão sobre o que é deixar de ser professor e virar educador. O professor ensina, o educador aprende.
Folha - E então o sr. começou seus projetos fora da escola, debaixo do pé de manga. Mas o sr. acha que a escola formal serve para alguma coisa?
Rocha - Ela serve para escolarizar. Ela dá um determinado tipo de informação e de conhecimento que atende um determinado tipo de demanda, um determinado tipo de modelo mental de uma sociedade que aceita, convive e não questiona.
Folha - Essa escola educa?
Rocha - Não. Ela escolariza. Uma coisa é falar em educação, outra é falar em escolarização. A maioria das pessoas que estão cometendo grandes crimes são pessoas escolarizadas. Então, que escola é essa? Para que ela serviu? Não ajudou nada, mas escolarizou.
E essa escola continua sendo branca, cristã, elitista, excludente, seletiva, conformada. Ela seleciona conteúdos, seleciona pessoas, mas não educa.
Folha - O que significa a escola ser branca?
Rocha - Por exemplo, eu nunca tive aula sobre os reis do Congo, mas tinha aula sobre todos os Bourbons, reis europeus.
Folha - E conformada?
Rocha - A escola não permite inovação. Ela é reprodutora da mesmice. A escola formal não está só na forma. Ela está dentro da fôrma. O pior é quando ela está dentro do formol. É um cadáver. O conteúdo da escola está pronto e acabado. Os meninos que vão entrar na escola no ano que vem, independentemente de quem sejam, aprenderão as mesmas coisas, do mesmo jeito. Aprendem o que alguém determinou que tem que ser aprendido.
Folha - O que está errado com o conteúdo?
Rocha - Recentemente, uma menina de nove anos, lá em Curvelo, virou para mim e disse: "Tião, vou ter prova e esqueci o que é hectômetro". Eu disse a ela que ninguém precisa saber o que é isso, que não se preocupasse, isso não cairia na prova. Perguntei se ela sabia o que era centímetro, metro, quilômetro. Ela sabia. "Pronto, tá bom demais, você vai viver a vida inteira mais 15 dias e não vai acontecer nada", disse para ela.
Passados uns dias: "Me ferrei. Caiu na prova e eu não sabia". Peraí: criança de nove anos tem que saber isso?
Isso é conhecimento morto. Mas se eu pergunto se eu posso ensinar outra coisa, não posso. O que posso é ensinar as mesmas coisas de um forma diferente. No conteúdo não pode mexer. O vestibular cobra. É um processo seletivo que vai determinando e excluindo, afunilando, dizendo que, para entrar aqui, precisa pensar desse jeito, nessa lógica. Do ponto de vista da escolarização, tá indo muito bem. Agora, se tá educando ou não, ninguém discute.
Quando uma criança é entrevistada e diz que é de determinado projeto porque quer ser alguém na vida, já sei que ela foi pessimamente educada. Um menino que aos 12 anos acha que não é ninguém na vida não tem mais auto-estima. Ele não é ele. Ela vai ser. É sempre um projeto adiado para o futuro.
Folha - Como deveria ser a educação?
Rocha - Um projeto de vida, não de formação para o mercado. A lógica da vida não é ter um emprego. Será que é possível construir um processo de uma escola que incorpore valores dignos, que passe a perceber que a ciência precisa estar condicionada a esses valores, que a tecnologia precisa estar condicionada a esses valores, que elas não podem ser determinantes dos valores humanos?
Ter analfabetos não pode ser um problema econômico, é um problema ético. A experiência que a gente vem desenvolvendo no CPCD é saber se é possível fazer educação de qualidade. Claro que é. Só que você tem que botar uma pergunta que a gente sempre faz. É o MDI: "de quantas maneiras diferentes e inovadoras eu posso"... O resto você completa com uma ação: educar, alfabetizar, diminuir a violência, gerar mais renda.
Quando a gente começa a fazer isso, aparecem 70 sugestões para alfabetizar, por exemplo. Vamos tentando uma por uma. Funcionou? Não? Risca. E vamos para a próxima. Quando chega na última, já tem mais tantas outras. Você não esgota o seu potencial de soluções para as crianças aprenderem.
Folha - Até onde vale criar soluções?
Rocha - Na educação, qual é a melhor pedagogia? É aquela que leva as pessoas a aprender. Na escolarização, a melhor pedagogia é aquela que dá mais sentido para quem a aplica.
O CPCD foi secretário da Educação de Araçuaí. Lá tinha um problema: os meninos demoravam duas horas no ônibus. O que a gente fez? Colocou educadores no ônibus. Qualquer secretaria de Educação pode fazer. É só sair da caixa.
Uma outra questão é o acesso aos livros. Há muitos anos, acompanhei a trajetória de dez crianças em Ouro Preto num período de seis, sete anos.
Como eu sei se um aluno é da primeira, da segunda, da terceira série? É pelo tamanho da pasta. No primeiro ano, traz até uma mala. Leva tudo. Depois, vai deixando. No ginásio [quinta a oitava série], eles não levam quase mais nada. No colegial, às vezes leva só uma canetinha.
Eu me perguntei se os livros perderam o encantamento ou se foi a escola que não soube mantê-los encantados. Juntei um monte de livros em baixo da árvore e mandava a meninada ir lendo. Em volta, deixava montinhos de sucata e escrevia uma placa: música, teatro, artes plásticas, literatura. Tudo que o menino lesse, tinha que ir numa direção e fazer música, teatrinho etc. É um jogo. Ler e transformar, do seu jeito.
Eles ficavam lá a tarde inteira. Vinha gente de longe. Agora, por que será que esses meninos nunca tinham entrado numa biblioteca da escola? Porque ele não tinha prazer em entrar na biblioteca. Quando ia ler um livro, tinha que dissecar a obra, classificar o texto, responder a dez perguntas sobre aquele negócio. Em baixo da árvore, ele não tinha que responder a pergunta nenhuma. Era prazer, e não dever. Os livros não perderam o encantamento, portanto.
Eu nunca li e detesto Machado de Assis. Por quê? Porque tive que fazer anatomia do livro. Achava um saco. Até hoje não consegui romper com isso.
Folha - Como enfrentar a falta de leitura?
Rocha - Faz chover livro na cabeça dos meninos. De todo jeito. Bornal de livros, algibeira de leitura, folia do livro, banco de livros, livro no ponto de ônibus. É igual propaganda. Como você quer que o cara não tome Coca-Cola? Vamos botar esse apelo para o livro. A gente foi tirando os meninos do estado de UTI. Vale tudo. É ético? É. Então, vale. Se nunca foi feito, a gente faz. Se errar, não tem problema. Temos que aprender.
Folha - Como você mexe no conteúdo? Tem um conteúdo básico?
Rocha - Claro. Tem que ter alguma coisa para começar. Precisa aprender os códigos de leitura, a a raciocinar e fazer cálculo, as quatro operações básicas. Mas não precisa saber o que é hectômetro.
Folha - Como diversificar? Ou por que diversificar?
Rocha - Há uns 20 anos, eu trabalhava bem no sertão. Tinha um projeto do governo para combater a doença de chagas na região. Parecia muito bom, as casas de adobe seriam substituídas por casas de cimento com condições de pagamento bem favoráveis. Mas não houve adesão dos moradores.
O que os engenheiros não percebiam é que as casas pareciam um forno de tão quente. O pessoal do projeto dizia: "É uma questão de adaptação". Eu respondia: "Não começa, não. A casa de adobe resolve muito bem a questão térmica. Por que não fazem casa de qualidade com adobe naquele sertão?". Eles disseram que não sabiam fazer, que não aprendiam isso na faculdade de engenharia.
Fiquei imaginando: eles não foram formados para fazer casas dignas para a população. Querem fazer em São Paulo e no sertão uma casa do mesmo tipo. Que lógica é essa? É a lógica do modelão.
Hoje, entrou na moda fazer casa de adobe, é ecológico. Engraçado. Antes, as pessoas faziam casa assim. Aí vieram, cortaram a tradição, impuseram o modelão e, agora, querem voltar ao que se fazia antes, mas travestido de conversa nova.
Folha - Você é contra todo tipo de forma universalizante?
Rocha - Como padrão único, claro.
Folha - Você é a favor de uma transformação constante?
Rocha - Da diversidade permanente.
Folha - De uma pedagogia específica para cada pessoa?
Rocha - Não. O que não pode é aprender uma única coisa, todo mundo igual. Mas não é "cada um faz o que quer". O que não pode é dar pesos desiguais, ou seja, negar ou excluir coisas em função de critérios que são absolutamente ideológicos.
É possível criar uma sociedade polivalente, diversificada? É, porque não foi feito ainda. Se ninguém fez, é possível. Isso é o que eu chamo de utopia. Utopia para mim não é um sonho impossível. É um não-feito-ainda, algo que nunca ninguém fez.
É possível aprender brincando? A escola tem que ser o serviço militar obrigatório aos sete anos ou pode ser prazerosa? Aí eu coloco um indicador: a escola ideal deve ser tão boa que professores e alunos desejem aulas aos sábados, domingos e feriados. Hoje, temos exatamente o contrário.
Os meninos estão no século 21 e a escola está Idade Média. A escola é a única instituição contemporânea que tem servos, tem serventes, pessoas que estão lá para nos servir. Nem em banco tem isso, lá são "auxiliares de serviços gerais".
Quando eu trabalhava na Universidade Federal de Outro Preto, por acaso eu virei pró-reitor. Acabei indo a uma reunião de pró-reitores com o secretário da Educação. Aquele discurso enfadonho estava me enchendo o saco, até que eu disse: "Nesse país, uma escola nunca teve crise de aprendizagem: a escola de samba.
Uma assessora do secretário disse que aquilo era inadmissível e perguntou se eu achava que a escola pública tinha que ser "aquela bagunça". Eu respondi: "Tô vendo que a sra. não entende nada de escola de samba. Na escola tem disciplinador, não tem? Pois na escola de samba tem diretor de harmonia". Entende? Uma coisa é cuidar da disciplina, outra coisa é cuidar da harmonia.
Folha - Como nasce uma nova forma de ensinar?
Rocha - Ou da dificuldade ou da pergunta. Somos movidos por uma pergunta, que vira um desafio, que vira uma encrenca. É possível educar debaixo do pé de manga? É possível criar agentes comunitários de educação? Vamos ficar pensando ou vamos aprender fazendo? Vamos aprender fazendo.
A primeira coisa que a gente fez foram os "Não Objetivos Educacionais". Porque formular um objetivo é muito simples: basta colocar um verbo na forma infinitiva e depois encher de lingüiça. O nosso verbo é o "paulofreirar", que só se conjuga no presente do indicativo: eu "paulofreiro", tu "paulofreiras" e por aí vai. Não existe "paulofreiraria", "paulofreirarei". Ou faz agora ou sai da moita. Ação e reflexão, agora.
As respostas vão sendo testadas e viram novas metodologias, pedagogias. Assim surgiu a pedagogia da roda, por exemplo, como um jeito de combater a evasão dos meninos. Não podemos perder os alunos, precisamos mantê-los interessados.
Folha - Seus métodos são tão abertos a ponto de aceitar que uma criança queira aprender na escola formal? Ou você quer acabar com a escola?
Rocha - Eu não quero acabar com a escola. Ela é muito mais importante do que parece. Ela tá longe de esgotar seu repertório, não usou nem 10% das possibilidades. Mas, para isso, ela precisa ter a ousadia de experimentar. É uma lástima dar às crianças só o que a escola formal oferece. É muito pouco.
As pessoas querem tirar os meninos da rua e levar para a escola --só se for para prender, porque para aprender não serve. É muito chato. Por que, em vez de tirar da rua, não mudamos a rua? Lugar de criança é na escola, na rua, em todos os espaços. Todos os espaços podem ser de aprendizado. Há experiências de cidades educativas muito legais.
Folha - Como é sua relação com os governos?
Rocha - Eu não vejo muita diferença. Todos eles estão dentro da mesma caixa, só muda a cor. A escola que tem agora não é muito diferente da de oito anos ou 20 anos atrás. Vai só pintando a fachada. A lógica, o processo, a metodologia muda muito pouco, no geral. A gente não consegue estabelecer alianças com os governos porque incomoda pensar fora da caixa. Se incomoda, são refratários. Então a gente vem aprendendo a fazer política pública não-governamental.

sexta-feira, outubro 05, 2012

TIÃO ROCHA: EDUCADOR É AQUELE QUE APRENDE

Comentários Moisés Basílio: 
   Tião Rocha é uma daquelas pessoas que cativa. 
Lá pelos idos de 2008 participei de uma oficina com 
ele sobre inovações tecnológicas para educação. 
Foram momentos de muita criatividade e de 
renovação de esperanças. Em educação esperança 
é tudo. Vivo no dia-a-dia com gente que trabalha 
com educação, mas sem esperança. É triste. 
Outro dia encontrei com um velho amigo de educação 
que disse estar desacreditado de tudo e que só espera 
a chegada da aposentadoria na escola para partir para 
outro tipo de trabalho. Muito triste. 
     Por isso é sempre bom ouvir o Tião Rocha. Com 
Tião Rocha as esperanças perdidas se tornam alegres 
cantares, pois como já dizia um bela composição musical: 
"É que carrego um Samba dentro do peito, e sem a 
cadência do Samba eu não posso ficar". O Samba é
 vida e as experiências do Tião Rocha sempre nos trazem 
esse gostinho de vida. Axé meu irmão!

“Educador é aquele que aprende”
Marcelo Iha Da redação do Portal Pró-Menino


Tião Rocha ganhou o prêmio Empreendedor Social de 2007

Ele criou a “pedagogia da roda”, fez de um pé de manga uma sala de aula diferente e inventou jogos educativos para ensinar alunos com dificuldades em determinadas áreas. O educador mineiro Tião Rocha, de 59 anos, fundou o Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento (CPCD) há 24 anos, com uma metodologia de Educação que “incomoda aqueles que não querem sair do lugar”, nas palavras dele mesmo, e critica a chamada escolarização, atualmente praticada pela maioria das escolas brasileiras.

A experiência de Tião foi exportada para países como Moçambique, Angola e Guiné-Bissau, na África, e sua iniciativa foi reconhecida pela Fundação Schwab e pelo jornal Folha de S.Paulo com o prêmio Empreendedor Social de 2007, que busca identificar líderes de organizações que desenvolvam produtos ou serviços voltados à melhoria da qualidade de vida e que sejam exemplos a serem seguidos.

Em entrevista concedida ao portal Pró-Menino, o educador conta suas experiências pessoais e profissionais e como são as concepções inovadoras que possui na área da Educação. Confira abaixo a conversa na íntegra.

Portal Pró-Menino – O que representou, para o senhor, ser eleito o empreendedor social de 2007?

Tião Rocha – Primeiramente, foi uma boa surpresa e uma honra ganhar esse prêmio. Por outro lado, é também um grande desafio ser reconhecido por um trabalho e, ao mesmo tempo, tornar-se uma referência para outras pessoas, educadores, projetos e ter que me manter sempre atualizado.

Pró-Menino – Qual é sua principal contribuição para a Educação brasileira nos dias atuais?

Tião – Separar o que é Educação e o que é escolarização e propor não só caminhos alternativos, mas também alterativos, opções para que tenhamos uma escola mais eficiente e comprometida com a Nação e com uma Educação verdadeira e integral para todos os meninos. Acredito que nossa grande contribuição é pensar fora da caixa, do padrão ou do modelo histórico e institucionalizado que está incrustado no sistema educacional brasileiro.

Pró-Menino – Faz sentido a separação entre a Educação formal, aquela que se dá dentro do espaço físico, e a Educação informal, que acontece em outros espaços de aprendizagem, como projetos sociais, que são cada vez mais presentes no Brasil?

Tião – Primeiro, precisamos separar o que eu chamo de Educação de escolarização. Educação é um fim; escolarização é um meio. Existe um projeto de escolas que trabalha dentro da fôrma e, na maioria das vezes, dentro do formol, ou seja, são escolas que estão fechadas em si mesmas, que têm um conteúdo já pronto e um currículo fossilizado e predefinido há muitos anos, que não se atualiza. Por isso, o formol. Só muda a data de ano para ano, mas o conteúdo, o programa e as matérias são os mesmos. E, na maioria das vezes, até o jeito de ensinar é o mesmo. Essa dita Educação produzida nessas escolas não educa, mas apenas escolariza, se reproduz ano após ano. Esse é o aspecto crucial para mim, pois a escola não consegue cumprir nenhuma função social importante, nem a formação educacional integral (desejada por todos) nem a preparação para a vida profissional (desejada pelo mercado), por exemplo. Alguns anos atrás, a gente dizia que a escola era o aparelho ideológico do Estado. Hoje, ela é o aparelho ideológico do mercado, pois atende aos interesses dele e está à sua mercê, preparando gente como mão de obra para um mundo volátil, excludente, seletivo, individualista, amoral e competitivo. Essa privatização da escola não produz Educação, mas escolarização, e esse é o ponto fundamental. Para que haja Educação de verdade e integral, temos que pensar além dos muros da escola, além das necessidades do mercado e além do conteúdo focado e pré-formatado. Temos que pensar em outras formas de aprendizagem, e não apenas de “ensinagem”, por isso a chamada Educação não formal está fora da fôrma, pois se aprendem e se ensinam outras coisas relativas ao dia a dia, à cidadania, à ética, à rua, à casa, à solidariedade, ao trabalho, à igreja, ao clube, às relações sociais, à vida social ativa. Se pensarmos em Educação integral no sentido pleno, ela vai muito além da escola, já que esta, sozinha, não consegue nem pode nem deveria querer dar conta de tudo, da complexidade que é a vida de hoje. Precisamos construir mais espaços e tempo de aprendizagem e de humanidade, portanto, de Educação. Precisávamos mesmo separar o trigo do joio nessa história.

“A escola, atualmente, não forma pessoas éticas, justas, dignas, solidárias, pois está comprometida com os interesses do mercado, do qual tornou-se aparelho ideológico.”
Pró-Menino – Algumas experiências iniciadas em Curvelo (MG) já estão sendo adotadas em outros países, como Portugal, Angola e Moçambique. Como foi a entrada nesses países e por que eles se interessaram pela sua proposta de Educação?

Tião – Começamos em Curvelo, há 24 anos, a partir de uma pergunta: é possível fazer Educação sem escola, sem prédio, sem estrutura física ou é possível a gente fazer uma boa escola e uma boa Educação debaixo do pé de manga? Essa experiência gerou o Projeto Sementinha, a escola debaixo da mangueira, que demonstrou, na prática, depois de muita experiência e muita “desaprendizagem”, que é possível, sim, fazer Educação sem escola. Aprendemos também que só é possível fazer boa Educação com os bons educadores. E isso é vital, porque os educadores ruins fazem Educação ruim. Essa experiência expandiu-se gradativamente pelo interior de Minas, Vale do São Francisco; depois para a Bahia; o Maranhão; Vitória, no Espírito Santo; Vale do Jequitinhonha. Um belo dia, algumas fundações internacionais que estavam muito preocupadas e atuando nessa questão da Educação e da escolarização nos países do Terceiro Mundo nos convidaram a levar isso para a África, e assim começamos a trabalhar em Moçambique com educadores que trabalhavam com crianças e jovens que viviam nos campos de refugiados de guerra. Ali era um país destruído pela guerra civil e que tentava se reorganizar, realocar a população que vivia andando de um lado para o outro, perdida em campos de refugiados. Buscavam fixar essas pessoas e criar um processo de Educação. Eles reconheceram que o Projeto Sementinha era uma possibilidade. Fomos para lá, e a ideia se expandiu, e depois adotaram nossas pedagogias também em Angola, Portugal e outros lugares, num processo de apropriação e adequação comunitária, segundo as necessidades de cada país.

Pró-Menino – Na questão do espaço físico da escola, ouvimos muito, nos noticiários e jornais, casos de crianças de diferentes séries dividindo a mesma sala por falta de espaço e que ficam sentadas no chão por falta de cadeiras. O senhor defende que o espaço físico é dispensável para a Educação?

Tião – Recentemente, vi na televisão uma série de denúncias e situações de escolas em fundos de casa, garagens e lugares absolutamente inapropriados. O grande problema, na minha opinião, não era o lugar, mas o conteúdo daquela escola, pois uma dessas reportagens dizia que os meninos estavam “aprendendo” sobre meio ambiente enquanto estavam lá sentados num lugar que parecia um lixo. Por isso, o problema maior não é o espaço, e sim o conteúdo e a forma, porque não depende se o menino está sentado em uma cadeira confortavelmente ou sentado em cima de um caixote. Se o aluno aprende algo que não tem nada a ver com a sua vida e sua realidade, isso não afeta sua formação. O equívoco dessas matérias da imprensa é o foco simplesmente na escola como prédio, como se isso fosse a solução. Um outro aspecto é que, se mostrarmos escolas em prédios com boa estrutura física, levantamos as seguintes perguntas: esses meninos estão aprendendo bem? Eles estão se transformando em cidadãos melhores? É preciso começar a avaliar isso. Imaginemos os garotos que colocaram fogo no índio em Brasília. Com certeza eles estudaram nas melhores escolas da cidade, nos melhores prédios, com ótimas estruturas, e tiveram o máximo de escolarização. No entanto, provavelmente a Educação foi zero, porque é impossível que um jovem seja capaz defazer tamanha atrocidade. Então, essa escola contribuiu ou deixou de contribuir com o quê? Por isso, o importante não é o lugar onde estão, mas o que efetivamente aprendem e o que dá sentido à vida das pessoas.

“É necessário rever os parâmetros e paradigmas educacionais para construirmos o Brasil que queremos.”
Pró-Menino – E o que mais te desagrada na educação formal?

Tião – A Educação formal não cumpre sua missão, pois a escola não educa, só escolariza. E outro ponto é que, atualmente, ela não forma pessoas éticas, justas, dignas, solidárias, mas está comprometida como um aparelho ideológico do mercado, que, como falei, é volátil e está formando pessoas para o mercado de trabalho para serem competitivas, eficientes e ganharem o máximo no mínimo de tempo, não importa se eticamente ou não. E o pior é que nem isso a escola brasileira está fazendo bem. Basta vermos os últimos resultados do exame do Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa), que mede a avaliação de estudantes de 15 anos nos campos da leitura, escrita, matemática e das ciências. Os alunos brasileiros foram uma calamidade e ficaram nos últimos lugares, ou seja, essa escola não consegue nem preparar gente para esse mercado, muito menos pessoas dignas e decentes. E, quando falo escola, não é apenas a escolinha lá do interior, de Ensino Básico ou pública, mas também a universidade. Por exemplo, o ex-juiz Nicolau dos Santos Neto teve todas as escolas, fez MBA, pós-graduação, etc., mas esse indivíduo, com certeza, nunca teve uma aula de Ética e não sabe o que é isso, caso contrário não faria tanta roubalheira. Para um caso desses, que é um desastre, a universidade onde ele estudou deveria tomar-lhe o diploma, porque ele rompeu com o juramento. Era o mínimo que deveria ser feito a bem da moralização do Ensino Superior brasileiro. E a universidade deveria pedir desculpas à sociedade por ter formado e diplomado pessoas como Dr. Lalau, da mesma forma que ela deveria ser cumprimentada pelos bons exemplos de cidadãos formados. Para mim, nossa escola deve nos preparar para a construção de uma nação, de um país, e não apenas de mão de obra. Se queremos um país ético, justo, com menos corrupção, solidário, como podemos ter uma escola que prepara pessoas só para o mercado, em que vale tudo e o mais esperto leva todas as glórias? Acredito que esse modelo é um grande equívoco e que estamos em um momento crucial em que é necessário rever tais parâmetros e paradigmas para construirmos o Brasil que queremos e de que necessitamos. Se temos uma escola medíocre, de segunda categoria, o País também continuará assim, um país de segunda. Então, precisamos pensar qual escola queremos ter. Eu acho que podemos vir a ser os campeões mundiais de Educação e construir escolas tão boas e eficientes quanto as nossas seleções e equipes esportivas.

Pró-Menino – O portal Pró-Menino é um projeto comprometido com a implementação dos direitos da criança e do adolescente. Qual é, na sua visão, a contribuição do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) para a Educação brasileira?


Tião – A grande conquista do ECA foi trazer para a pauta da sociedade e das políticas públicas a importância e o valor da criança e do adolescente como prioridade em todas as ações e políticas. Já temos alguns anos de existência dessa lei e da dificuldade de sua implementação, ou seja, de sair do desejo e da legitimidade para a prática e fazer com que as pessoas e instituições assumam o ECA como um exercício diário de vida digna e cidadania plena para todos os meninos. Nesse aspecto, ainda falta muito. Por exemplo, segundo dados do Simave, de 2003, dos alunos com oito anos de escola, somente 3,3% das crianças do Vale do Jequitinhonha alcançaram o índice de suficiência, enquanto 96,7% estavam abaixo desse índice em uma categoria chamada de insuficiência. E mais de 50% deles estavam num estágio chamado de estado crítico. Essas estatísticas mostram a falência do sistema de ensino, porque, se mais de 96% desses estudantes não aprenderam, a escola formou uma massa de gente analfabeta e semianalfabeta. Essas crianças não serão cidadãs por inteiro, mas só meio cidadãs, pois não terão acesso e possibilidade de se desenvolver plenamente nem no próprio mercado de trabalho. E o que aconteceu? Nada! A culpa do fracasso escolar ficou na conta das próprias crianças, que, de vítimas, passaram a culpadas pelo próprio analfabetismo. O Conselho Tutelar ou o Conselho de Direitos deveria intervir nessas escolas e obrigá-las a alfabetizar, e bem, todas as crianças. É um direito inalienável delas. Todos os meninos que passam oito anos no Ensino Fundamental deveriam sair da escola bem formados, alfabetizados integralmente, e isso é obrigação do Estado e da sociedade, um direito previsto pela lei. Nunca vi ou ouvi falar, mas gostaria de ver um Conselho de Direito ou Tutelar pedir ao Ministério Público para fechar uma escola por incompetência ou a obrigar a alfabetizar todos os alunos, sem exceção. Metade das escolas deste país teria que ser fechada ou multada pelo Procon por enganarem o consumidor, por não entregarem à sociedade os estudantes preparados como prometido e previsto pelo ECA. Não adianta ficar fazendo programas paralelos, a escola deve ter o compromisso e a obrigação de ensinar a todos, sem excluir. Se o menino não aprende, a culpa não é dele, mas da escola, pois todos são aptos para aprender tudo no seu tempo e no seu ritmo. Deveria ser proibido deixar qualquer criança sair da escola sem aprender o mínimo necessário para sua vida social como cidadão brasileiro. No dia em que isso acontecer, o ECA torna-se efetivo.

“[...] gostaria de ver um Conselho de Direito ou Tutelar pedir ao Ministério Público para fechar uma escola por incompetência ou a obrigar a alfabetizar todos os alunos, sem exceção.”

Pró-Menino – O que o senhor acha da mudança da LDB que insere os direitos da criança e do adolescente no currículo do Ensino Fundamental?

Tião – Tenho muito receio dessas medidas que visam “curricularizar” a vida, pois, quando qualquer assunto é colocado em uma grade curricular, pode ser uma forma de se ter controle e torná-lo apenas uma matéria a mais. O que era para ser bom vira uma chatice. Se o tema solidariedade virar matéria curricular, nada garante que o índice de solidariedade entre as pessoas vá aumentar. O que é preciso é praticar sempre, todo dia,a solidariedade, e não ter trabalho e prova sobre o assunto. Na época dos governos militares, em toda escola tínhamos uma disciplina chamada Educação Moral e Cívica, no ginásio; Organização Social e Política Brasileira (OSPB), no Segundo Grau; e Estudo dos Problemas Brasileiros (EPB), nas universidades, que a moçada chamava de “estuprobrás”. Todas eram obrigatórias, repletas de doutrinas e ideologismos, quando não de propaganda estatal. Por isso, tenho receio dessa mudança na lei, porque deve haver uma prática diária dos direitos das crianças e dos adolescentes, e não se guardar isso como aula na grade curricular. Como ação viva da Educação, acho muito legal e importante, mas o duro é ter uma aulinha disso por semana no meio de dez aulas de Matemática e outras tantas matérias e a cidadania tornar-se um adereço ou alegoria. Aí é bobagem e perda de tempo para quem ensina e quem aprende.

Pró-Menino – Como suas experiências escolares influenciaram as opções profissionais e a prática como educador atualmente?

Tião – Minha experiência na escola foi ruim, como a da maioria das crianças no Brasil. Tive uma escola excludente, seletiva, preconceituosa e racista, porque era uma escola branca, europeia, cristã e capitalista, como é até hoje. Percebi que tinha duas alternativas: ou eu me ajustava e aceitava aquilo como valor ou me rebelava. É claro que optei pela segunda, e isso tem um preço a se pagar, pois a maioria daqueles que se rebelam torna-se os “marginais”, os “meninos-problema”. Por outro lado, tive uma compensação que foi fundamental e me marcou muito, pois meu ambiente comunitário era muito bom. Isso me ajudou muito não só a enfrentar, mas também a estabelecer uma formação melhor. Por isso sou contra tirar os meninos da rua. Não quero tirá-los de lá, mas, sim, mudar a rua, pois ela é o lugar da cidadania, da manifestação cívica, por onde passam as procissões religiosas, onde se comemoram títulos de futebol, onde há o ato público, a festa popular, a passeata pela greve ou a manifestação pelos direitos da criança, pelos direitos humanos, etc. Quer dizer, a rua é um espaço importante de aprendizagem. Então, por que temos que tirar os meninos e as meninas dali? O lugar deles é na rua, na praça, no coreto, no shopping, nos estádios, nas escolas, em todo lugar. Ou ele é cidadão por inteiro ou ele é cidadão “meia-boca”, e me incomodam muito esses discursos que dizem demagogicamente que “lugar de criança é na escola”, pois eu falo que, na escola, só se for aprendendo. E o que tento fazer atualmente é trabalhar em comunidades que façam de suas ruas e seus bairros espaços permanentes de Educação. Eu tive a oportunidade de viver numa rua muito boa, que me ajudou muito para a não aceitação do modelo padrão e autoritário de escola e de Educação. Tudo isso foi fundamental para minha vida e para a opção do que faço e acredito hoje. “Apesar de a maioria das instituições dizerem que temos de tirar os meninos da rua, não quero tirá-los de lá, mas, sim, mudar a rua.”

Pró-Menino – Como a família foi importante na sua formação?

Tião – A família é importante para todo mundo, mas, quando falamos nela, também temos que ter claro do que e de quem estamos falando. Família pode ser o pai, a mãe, os irmãos, os primos e todas as relações de parentesco envolvidas. Boa parte das famílias de nosso país só tem a mãe com uma penca de filhos, porque o pai sumiu. Outras têm só a avó, e há crianças que saíram de casa para refazer sua família nas ruas, nas gangues, nas galeras. O Mapa da Exclusão de São Paulo, inclusive, mostrava que 34% dos meninos que viviam na Praça da Sé saíram de casa para não perder a família e foram constituir a sua família na rua, que era a gangue. Todo mundo precisa ter família, porque, para mim, família significa o ninho, o colo de que todos nós precisamos. Deve ser um lugar que te receba, que te acolha e que te dê a possibilidade das relações de afeto. Nesse aspecto, precisamos oferecer o que eu chamo de cafuné pedagógico para todos aqueles que não o tiveram. Só consegue fazer esse cafuné nos outros quem já o teve na vida, pois isso é algo eminentemente íntimo e familiar. Eu tive o privilégio de ter um ninho, do ponto de vista das relações de parentesco, mas também fui acolhido por meus amigos na rua, construímos laços e companheirismo e familiares, e tudo isso cria os ninhos, forma a família de que todos nós precisamos.

Pró-Menino – O que fez o senhor optar pela carreira de educador?

Tião – Tenho formação em História e Antropologia. Fui professor durante muito tempo. Dei aula no Ginásio, no Científico, no Segundo Grau e então fui para o Terceiro Grau, a pós-graduação, o mestrado, etc. Em determinado momento, por volta de 1982, era professor na Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop-MG) e me dei conta de que eu não queria mais ser professor. “Agora quero ser educador”, dizia, e comecei a falar sobre isso com meus colegas, mas eles respondiam que os dois eram a mesma coisa, sinônimos, com o mesmo salário e a mesma chatice. Mas eu dizia que não, que eram coisas diferentes. Eles perguntavam qual era a diferença, e eu falava: “Professor é aquele que ensina, e o educador é aquele que aprende”. Eu preciso parar de ensinar e começar a aprender, e a universidade deveria deixar de ser uma instituição de “ensinagem” e se transformar em uma instituição de aprendizagem de fato. Precisamos aprender porque, se não, a gente fica fechado intramuros e paredes, cheirando a mofo e respirando gás carbônico porque não entra oxigênio para arejar. Foi quando percebi que a universidade, em vez de se abrir e se arejar, foi fechando as portas e as minhas possibilidades. Então, dei-me conta de que não podia ficar naquela instituição, pois ela não queria educadores, mas só professores, gente que soubesse ensinar e repassar a informação. Por isso, pedi demissão, e, para minha surpresa, quando fui ao departamento de pessoal, o chefe do setor disse que eu não podia me demitir porque nenhum professor de universidade pública brasileira faz isso e que nunca havia tido um caso assim naquela universidade. Ele não tinha nem o formulário, então falei: “Pode deixar que eu crio! Fui!”. Ao sair dali, comecei um novo caminho e criei o Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento (CPCD), há 24 anos, para ser uma instituição guarda-chuva que pudesse abrigar as nossas perguntas e fosse um exercício de ser aprendiz permanente.

“Professor é aquele que ensina, e o educador é aquele que aprende.”

Pró-Menino – Então, como deveria ser a formação de um educador?

Tião – Ser educado é um dos fins da nossa vida, já que viemos ao mundo e temos pouco tempo aqui — não há segundo turno na vida, é turno corrido. Nós somos inquilinos, não proprietários do mundo, e estamos de passagem — e para quê? Para sermos educados, livres, felizes e termos saúde, penso eu. Por isso, acredito que a Educação é fim, e não meio, e o educador é aquele que cria as condições para as pessoas aprenderem tudo e todo o tempo. Educador é aquele que possibilita às pessoas a aprendizagem para a realização plena de todo o potencial humano que trazemos e construímos. Então, a Educação deve preparar para que cada um seja um grande aprendiz com os outros, com o todo. Podemos defini-la como quisermos, mas ela só acontece no plural. Não existe Educação no singular, pois, para que haja Educação, é necessário no mínimo duas pessoas. E Educação não é aquilo que eu ou o outro sabemos, mas o que nós conseguimos trocar e aprender juntos; é na soma (1 + 1 = 3) que se aprende junto com o outro e se produz o milagre da Educação. Por isso, penso que a formação do educador deveria preparar o indivíduo para ser um aprendiz permanente, com uma capacidade de ouvir e de aprender de uma forma generosa e intensa. Quando nós conseguimos despertar nas pessoas esse potencial de educador que todos nós temos, percebemos que é possível fazer isso em escala maior. Aprendi lá em Moçambique que, “para educar uma criança, é necessária toda uma aldeia”. Então, uma cidade deve ser sempre uma cidade educativa, uma grande aldeia. O importante é trabalhar esse potencial e disponibilizá-lo como possibilidade concreta para criar uma vida melhor para todos.

Pró-Menino – Como isso pode ser feito?

Tião – Pela nossa experiência, construímos a “pedagogia da roda” para que todo mundo pudesse se ver e percebemos que, na roda, com as pessoas confortavelmente instaladas, não tem ninguém que manda. Numa roda, as informações circulam de um lado para o outro, e o que comanda é o conteúdo, são os desejos, os conhecimentos e os interesses de todos que estão nela. Quem está sentado na roda é educador, e não importa se é criança ou adulto. Começamos a perguntar o que iríamos estudar e aprender juntos, e, como cada um tem um desejo, aparecia uma listagem com trinta ou quarenta assuntos. Em um primeiro momento, começamos a usar a lógica econômica selecionando o que é mais importante e fazendo uma eleição do tipo “maioria vence”. Isso é bacana como prática de exercício da democracia. Mas, no aspecto educacional, é uma lástima, porque, se um determinado tema proposto por uma criança qualquer fosse vetado e ela “perdesse” no primeiro, segundo e terceiro momentos, na quarta vez que tivesse nova eleição ela nem entraria, pois já teria se excluído ou pensaria: “Poxa, vou embora porque nunca ganho. O que me interessa nunca interessa ao grupo”. E uma escola que exclui não educa!

Pró-Menino – E, então, o que fizeram?

Tião – Com isso, percebemos que, se continuássemos daquele jeito, perderíamos os meninos e, para não perder ninguém, mudamos o jeito de fazer, e a eleição ficou proibida. A eleição do tipo “maioria vence” é boa como exercício de vida democrática, mas não como processo educacional, porque exclui pessoas. Temos que aprender a construir consensos. E o que isso significa? Se temos uma pauta com quarenta assuntos, ótimo, vamos organizá-los como prioridades: o que é mais importante para se estudar hoje, amanhã e assim por diante, até trabalhar com todos os assuntos. Então percebemos que a participação era de muito mais qualidade, todas as opiniões e propostas eram valorizadas porque não queríamos perder nada e queríamos estudar tudo. Também percebemos que, ao fazer novos consensos, os assuntos adquiriam mais qualidade e o envolvimento era muito maior nas rodas.

“Educação só acontece no plural. Não existe no singular, pois, para que haja Educação, é necessário no mínimo duas pessoas.”



Pró-Menino – Deu certo?

Tião – Sim. Isso não era problema nem dificuldade. Pelo contrário, era uma solução. Não se faz isso na escola porque é mais cômodo, para quem ensina, achar que todo mundo precisa aprender a mesma coisa, do mesmo jeito e no mesmo tempo, o que é um equívoco de um autoritarismo tremendo. Hoje, as crianças têm muita clareza disso porque alguém decide o que elas precisam aprender, que existe uma autoridade, mas o que elas precisam aprender efetivamente é a saber respeitar, socializar, ter tolerância e solidariedade e criar relações de justiça. Tenho citado um caso que aconteceu comigo recentemente, quando uma aluna de 9 anos me disse que, nas férias, havia esquecido o que era hectômetro e estava preocupada que esse “assunto” caísse na prova. Disse-lhe que ela (nem ninguém) não precisava saber isso e que nem cairia na prova. Perguntei se ela sabia o que era centímetro, metro e quilômetro, e ela respondeu que sim. Então eu disse: “Minha filha, você está pronta para andar pra baixo e pra cima, medir as coisas, viver a vida inteira, e ninguém vai pedir para você medir ou mostrar nada em hectômetro. Isso só interessa para a pós-graduação, no doutoramento de Matemática, Física, sei lá...”. Passados alguns dias, ela voltou. A questão caíra na prova, e ela perdeu nota. Imagine quanto desperdício de tempo e de talento por causa de inutilidade. As crianças têm que aprender brincando, aprender a serem justas e solidárias. Esses temas devem ser deixados para a época certa, no ritmo, no tempo e no momento necessários para a vida das crianças. Então essa é a grande questão: se nós quisermos realmente aprender, temos que fazer o exercício de humildade, e não pensar que nosso conhecimento de adulto ou professor de escola é único e verdadeiro. Mas, infelizmente, reafirmo que o nó da questão é que a escola teima em ser um aparelho ideológico do mercado. Atualmente, muitas famílias, principalmente da classe média, colocam o filho em determinada escola infantil ou pré-escolar porque pensam que a escola pode preparar a criança para o vestibular desde pequena. Aliás, existe até “vestibulinho” para maternal e pré-escolar. Ou seja, é uma escola que instrumentaliza e treina o menino, desde cedo, para passar numa prova, e não importa se ele vai ser feliz, ser boa gente ou ético. Depois de passar, ele vai pegar um diploma para ter um emprego, ganhar dinheiro, ficar rico e poderoso. Se futuramente ele cair nas operações da Polícia Federal por roubalheira, ninguém estará preocupado com a sua formação. Percebam o seguinte: a maioria das pessoas acusadas de crimes contra o patrimônio público, nos últimos anos, tem um vasto currículo escolar. A maioria tem curso superior. Portanto, temos um problema, já que essa escola não formou cidadãos. Se a gente começa a trabalhar com as crianças lá na base, não é tempo perdido, mas, sim, um investimento, e a escola pode fazer isso nos quatro anos de Ensino Básico. Os estudantes precisam sair de lá aptos para aprender a viver bem e dignamente, dominando os códigos de leitura, de escrita, de comunicação e de bem-viver. E há assuntos que só serão vistos lá no Segundo ou Terceiro Grau ou quando ele quiser estudar, pois na vida é possível se interessar e aprender tudo, o tempo todo e de todas as maneiras, e não temos só a escola o tempo inteiro para nos ensinar.




Pró-Menino – Pela sua metodologia, nos exemplos que o senhor citou da “pedagogia da roda” e da conversa com a menina sobre o hectômetro, é necessário estar sempre atento às demandas dos alunos. O senhor acredita que o educador é um pouco como um psicólogo?

Tião – Não sei se o educador deve ser um pouco psicólogo. Ele precisa ser um aprendiz permanente e bom ouvinte; ele precisa aprender a transformar os saberes, fazeres e quereres das crianças e dos jovens em instrumentos de aprendizagem para todos. Então, eu falo que é como usar as Tecnologias da Informação e da Comunicação (as TICs) para transformá-las em conhecimento, em Tecnologias de Aprendizagem e de Convivência (as TACs). É necessário esse exercício de ritmo, tempo e pulsação no processo de aprendizagem. O educador é um construtor de pedagogias próprias. E deve ser verdadeiro. Não adianta a gente querer que ele saiba ou tenha a resposta para tudo, mas ele precisa ser uma pessoa curiosa, instigante, que queira aprender junto e que pesquise todo dia. E outro ponto que nossos professores ainda não descobriram é que esta é a única categoria profissional que tem o privilégio e a honra de estar diante de seu “cliente”, que são seus alunos, todos os dias. Isso não acontece com o psicólogo nem com o médico, o engenheiro, o advogado, o padre ou o bancário, pois eles encontram seus clientes de vez em quando, ao ir ao banco, à igreja, ao hospital, etc. Já o professor está diariamente com o aluno, ou seja, se ele quiser, pode rever e passar o mundo a limpo todos os dias. Isso é fundamental porque, se ele tiver esse jeito de olhar e a vontade de fazer, ele pode realizar uma transformação fantástica. Por outro lado, se ele acredita que os meninos passam quatro anos para aprender sempre a mesma coisa, com repetição e perda de tempo, aí acaba criando um lugar que fica chato para ir, ficar e conviver. Por isso, é sempre um grande desafio pensar qual seria a escola ideal: é aquela em que os alunos, professores e funcionários querem que haja aulas aos sábados, domingos e feriados, por exemplo. Atualmente ocorre o contrário: é só falar de um feriado à vista que todos ficam felizes. Muitos professores pensam assim e dão graças a Deus quando ficam três dias ou uma semana sem ver aqueles “capetinhas”. E do outro lado, com os meninos, acontece a mesma coisa, pois eles falam: “Oba, vou ficar sem ver aquela jararaca!”. Ou seja, temos um problema de relação: enquanto o professor fica copiando coisas em que não acredita na lousa, mas porque alguém mandou fazer, os alunos são obrigados a copiar aquilo que não faz sentido na vida deles. Então um finge que ensina, o outro finge que aprende, a escola finge que existe e o Estado finge que paga, criando essa relação de mútuos fingimentos. E as pessoas imaginam que está tudo certo, mas depois estouram as estatísticas de violência e criminalidade, e alguém grita que o motivo é a falta de investimento em Educação...

“Para educar uma criança, é necessária toda uma aldeia.”


Pró-Menino – Como o senhor vê o uso da tecnologia da Internet na Educação?

Tião – Qualquer que seja a tecnologia, ela será sempre um instrumento a serviço da nossa humanidade e, se for bem usada, pode ser muito legal. O acesso à informação pela Internet possibilita a transformação das Tecnologias de Informação e da Comunicação (as TICs) em Tecnologias de Aprendizagem e Convivência (as TACs). E isso é a própria pessoa que faz, não é o computador. É o menino com a capacidade de transformar aquilo que leu em valor, e isso serve para todos e para qualquer mídia — como a televisão e a Internet —, outras linguagens, os livros e todas as pedagogias. As TICs devem estar sempre à disposição das TACs.

Pró-Menino – Como a sua concepção de ensino e de aprendizagem é vista por outros profissionais da área de linha mais tradicionalista?

Tião – Nunca fiz uma avaliação rigorosa disso, mas o que observo é que incomoda muito os tradicionalistas, pois cutuca e mexe na ferida. Eles se sentem incomodados e tentam reagir. Claro que quem é tradicionalista e conservador não quer sair do lugar, e, toda vez que se faz uma provocação, ele precisa se sacolejar, tirar a poeira e o ranço. Também é cômodo ficar no mesmo lugar, empurrando com a barriga, quando ninguém cobra resultados. Por isso, incomoda muito mais pessoas como os gestores de políticas de ensino, secretários e ministros. Essa turma toda se sente muito amarrada a algo que julgam muito maior que eles: é o dito sistema, que pensam estar pronto e acabado. Chegam lá só para cumprir tabela, aplicar regras e normas caducas, e a maioria não quer nem tentar mudar, prefere fazer pequenas reformas; são reformistas, não transformadores. Quando se mexe na possibilidade de construir o novo, é preciso mudar de posição para ter outra perspectiva, pensar e agir de forma sistêmica, sair da caixa e da fôrma, pois não dá para transformar a sociedade sem sair do lugar.

Pró-Menino – E pelos mais “progressistas”?

Tião – Estes, vejo que assumem muito como uma bandeira, e, nesse caso, a grande dificuldade é executá-la e colocá-la em prática. Vemos pessoas fazendo coisas extraordinárias de forma anônima na escola, na sala de aula ou na comunidade, mas com muita dificuldade de serem reconhecidas, porque a diretora da escola não admite ou a superintendência de Educação olha com maus olhos. E a Secretaria da Educação e o MEC nem sabem ou imaginam que existem e o que está acontecendo lá na ponta. Mas existe muita coisa positiva, e vejo que estamos fazendo basicamente algo que vai na contramão da lógica e dos teóricos da Economia, da Política, pois podemos fazer política pública não governamental. Quem disse que só o Estado faz política pública e que nossa sociedade civil organizada e desorganizada também não faz? Podemos fazer algo de caráter coletivo para o bem-estar de todos, e esse é o novo paradigma quando se começa a romper com determinadas lógicas e a quebrar um monte de barreiras. Com essa lógica de dividir os espaços de atuação em compartimentos estanques — a “educação bancária”, que Paulo Freire criticava quando dizia da relação do ensino e da aprendizagem —, temos o Primeiro Setor, que é de responsabilidade do Estado; o Segundo Setor, que é da área do mercado; e o Terceiro Setor, que é da sociedade. Mas, ao olharmos o aspecto da eficácia dos três setores, percebemos que não funciona, porque eles ficam numa briga em que um setor acusa o outro, e, enquanto isso, ninguém resolve nada. Por isso, defendo, cada vez com mais veemência, que devemos criar o Setor Zero, que não é comandado nem pelo Estado nem pelo mercado nem pela sociedade, mas, sim, pela ética. Por exemplo, não é ético que, em pleno século XXI, tenhamos crianças analfabetas, e isso não é uma questão econômica ou social. Temos que pensar em “analfabetismo zero” e seguir o mesmo raciocínio com pessoas que passam fome neste país com tanta riqueza, pensando em “fome zero”. Não é ético que haja degradação ambiental, desmatamento, queimadas na natureza, então pensamos na “degradação zero”, e também não podemos aceitar a violência contra mulheres e crianças, por isso “violência zero”, e assim por diante. Precisamos zerar esses déficits e, para isso, temos que criar o Setor Zero. Não é questão de saber se isso é responsabilidade de A, B ou C, porque é responsabilidade de todos nós, por uma questão ética, e a ética serve para todo mundo. Temos que cuidar do nosso ethos, da nossa morada, do sentido da nossa vida, por uma razão ética, e transformar isso numa bandeira, numa causa nacional, do País todo, e não tratá-las como questões setorizadas e sempre terceirizadas.

Pró-Menino – Como a cultura popular pode contribuir para o ensino de matérias tradicionais como Matemática e Ciências?

Tião – Aqui no CPCD, criamos o MDI (de quantas Maneiras Diferentes e Inovadoras podemos, por exemplo, ensinar Matemática ou Ciências para uma criança). Se perguntarmos aos educadores, vai aparecer, provavelmente, uma lista com mais de oitenta possibilidades, ou MDIs, em que provavelmente uma delas será por meio da cultura popular. Se funcionar, ótimo. Se não funcionar, usamos outra maneira, mas o importante não é pegar a cultura popular como solução dos “problemas da lavoura”. Claro que tudo que for ligado à tradição das crianças, da sua comunidade, da sua herança cultural as aproxima do mundo. Mas será muito chato se usarmos isso somente como uma instrumentalização da cultura para atender a um interesse que não tenha a ver com ela. Por exemplo, lá em Curvelo (MG) havia um garoto de 11 anos que estava na primeira série, pois todo ano ele era matriculado, repetia, mas era resistente e persistente, matriculava-se de novo e não aprendia de jeito nenhum. A escola não conseguia ensinar a ele as quatro operações básicas da Aritmética, mas ele sabia jogar damas muito bem e ganhava das pessoas nesse jogo. E aquilo nos incomodava muito, pois o menino era bom de espaço e de lógica. Por que ele não aprendia a Matemática? Na realidade, o aprendizado foi nosso, pois eu achava que Matemática e Aritmética eram coisas iguais, mas são coisas absolutamente diferentes. Matemática é a forma de pensar usando o raciocínio lógico; já Aritmética, qualquer maquininha faz. Então pegamos o tabuleiro de damas e enchemos com números variados e colocados aleatoriamente. Como ele jogava com tampinhas de garrafa de refrigerante, colocamos um sinal de “+” ou de “-” em cima delas, e ele só podia comer uma peça na jogada se ele fizesse uma conta de soma ou subtração. Se ele errasse, o outro faria no lugar dele. Em pouco tempo e dessa forma, esse menino aprendeu a calcular, somar, subtrair e multiplicar. E nós percebemos que tínhamos criado nosso primeiro jogo, uma mistura de damas com Matemática, que chamamos de damática. Ele funciona para resolver dificuldades dos meninos que precisam aprender a somar, subtrair e multiplicar; para dividir, o jogo não serve, pois tem suas limitações. Portanto, a cultura popular pode virar uma “damática”, mas é um prejuízo e uma bobagem pegar qualquer coisa ligada à tradição popular, como a dança ou a música, e forçar o seu uso como simples instrumento.

“Devemos criar o Setor Zero, que não é comandado nem pelo Estado nem pelo mercado nem pela sociedade, mas, sim, pela ética.”


Pró-Menino – O que o senhor acha da lei federal que estabelece a inclusão da História da África e da cultura afro-brasileira nos currículos?

Tião – É um passo importante, mas tenho o mesmo receio, como disse anteriormente em relação à questão da inclusão dos direitos da criança e do adolescente, pois podemos cair na mesma vala. Apesar disso, há um avanço significativo, por exemplo, pela minha própria experiência de vida, de uma história que me marcou profundamente. Sou sobrinho de uma rainha, mas nunca pude falar dela na escola primária, no Ginásio, na faculdade e em nenhum lugar, porque ela era Rainha Perpétua do Congado, da Irmandade da Nossa Senhora do Rosário dos Pretos. Quando fui estudar Antropologia, meu trabalho de pesquisa foi um comparativo entre as mitologias africana e grega, porque tinha necessidade de entender isto: o culto de Oxalá segundo a mitologia yorubá e o culto de Zeus segundo a Teogonia de Hesíodo, base da mitologia grega. Também passei quase cinco anos em uma faculdade de História e, durante seis meses, estudei a mitologia greco-romana, mas nunca tive uma aula sequer de mitologia yorubá. Eu nunca pude falar nem aprender sobre a minha tia rainha nem sobre a cultura yorubá. Como é que pode um país ser mulato, negro em sua essência e ter na negritude uma de suas raízes de força, beleza e talento e isso não ser razão de nosso aprendizado? Temos essa cultura fantástica e fundamental para ser estudada e aprendida. Por isso, penso que é um absurdo os alunos terem que conhecer todos os reis e as rainhas da França, da Inglaterra, todos os Luíses, os Stuarts, os Bourbons e essa turma toda e não existir uma aula sequer sobre os reis e as rainhas do congado ou sobre a cultura negra da África e também a que está no Brasil, nas nossas veias e no nosso dia a dia. Essa é uma conquista, uma forma de nos valorizar, aumentar nossa autoestima e criar mais um espaço, mas esse espaço deve ter o mesmo status de outras matérias e outros conhecimentos, senão pode virar alegoria ou adereço. Precisa ser tão importante como um samba-enredo. Percebemos que hoje esse é um conteúdo tratado com muito carinho, porque está ligado à força e à beleza cultural da nossa negritude. Isso nos diferencia de outros povos, porque somos misturados e diversificados e, apesar de todos os problemas de preconceito que vivemos, estamos levando essas conquistas com muita garra. Por isso, é uma conquista boa pela qual eu louvo e torço para que não fique engradada no currículo e tratada como algo menor e secundário, mas que ela tenha a pujança de transformação, porque traz a geratriz de nossa brasilidade.


Pró-Menino – O que o senhor acha do sistema de ensino brasileiro?

Tião – Como disse anteriormente, do ponto vista do sistema de ensino, atrelado para atender ao mercado, ele está mal. Basta vermos os dados estatísticos do Pisa, que mostram que nossos meninos de 15 anos não estão preparados para concorrer no mercado de trabalho, nessa sociedade competitiva, excludente e capitalista. Se o sistema estiver funcionando como gerador e produtor de cidadania, de solidariedade, de um país mais justo, ele também vai mal, porque não tem alcançado esses resultados e parece que não tem compromisso com essa questão. Então estamos em uma grande encruzilhada, vivendo uma demanda fundamental que a sociedade brasileira deseja: uma Educação de qualidade para seus filhos, netos e tataranetos. Por isso, temos que pensar e construir um sistema de ensino mais ligado aos interesses da nação que desejamos, e não da que temos. Qual é o país e o tipo de cidadão que queremos? Que sejam pessoas mais éticas, sem a defasagem e o abismo da injustiça social, da má distribuição de renda, em um país mais igualitário. Não precisa ser o primeiro do mundo em poder econômico, mas que seja o primeiro do mundo em dignidade e em cidadania. Esse é o grande desafio. Queremos esse país assim ou outro? Torço para que a gente seja campeão mundial da ética, da solidariedade, da alegria, do bem-estar, porque a experiência mostra que um país mais endinheirado não é necessariamente um país melhor. Os resultados estão nos indicadores de qualidade de vida, mas os nossos dirigentes precisam parar de olhar o Brasil apenas pela ótica do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), porque ele só mostra o lado vazio do copo ao medir aspectos de Economia, Saúde e Educação. Precisamos criar um novo jeito de olhar, pelos Indicadores de Potencial de Desenvolvimento Humano (IPDH), observáveis no lado cheio do copo. Para construir essa nova referência, nós temos que começar já, pois, se não fizermos, não vai acontecer. E não serão os americanos nem os europeus que vão fazer isso, porque, para eles, a História já está pronta e acabada, e só precisam dar prosseguimento. Mas nós, sim, precisamos e podemos construir um país.