domingo, agosto 07, 2016

MULHERES DE CINZA - ENTREVISTA COM MIA COUTO

Caros e caras,

          Sem muito tempo para postar, vou deixando neste espaço as coisas de que gosto e leio. Ávido leitor do moçambicano assim que puder mergulharei com afinco neste novo livro.
               Axé!

               Moisés Basílio.


Fonte: Internet, Jornal O Estado de S. Paulo, 18/11/2015
Mia Couto inicia trilogia em que reflete sobre a memória
Moçambicano lança o livro 'Mulheres de Cinza'

O escritor moçambicano Mia Couto é notável por sua prosa poética, cuja força, especialmente em um país tão marcado por problemas como o seu, permite que o povo não abandone sua capacidade de sonhar. Mia agora se volta para um projeto mais audacioso: a trilogia As Areias do Imperador, que narra os derradeiros dias do chamado Estado de Gaza, o segundo maior império da África dirigido por um africano. E o primeiro volume, Mulheres de Cinza, chega agora, com lançamentos no Rio e em São Paulo, com a presença do autor.
A trama gira em torno de Ngungunyane (ou Gunguhane, como preferiam os portugueses), último dos imperadores que governou a metade sul de Moçambique, no século 19. Derrotado pelas forças portuguesas em 1895, ele foi deportado para os Açores. Dois narradores se alternam na condução da história: Imani, uma adolescente da tribo VaChopi que foi educada por jesuítas, e Germano de Melo, sargento português que foi degredado depois de apoiar revoltas contra a monarquia. Duas visões que permitem ao autor exercitar escritas distintas, entre o poético e o burocrático. Também a reavaliar o passado. Sobre isso, Mia conversou com o Estado, por e-mail.
A história habitualmente é contada pelos vencedores. E o passado serve, muitas vezes, para justificar o presente. Quais inverdades ou falsificações históricas você confronta com a trilogia?
 O passado é sempre uma narrativa construída seja a nível individual, seja a nível coletivo. A intenção nesse livro não é denunciar algo em particular. Quero sobretudo mostrar como é grave estarmos a fundar um presente na base de uma única versão do passado. Sem uma narrativa do passado que não seja diversa e diversificada, seremos mais pobres. Não temos que proclamar que a História oficial de uma nação é uma “mentira”. Mas é preciso dizer que aquilo que sabemos não é o que foi provado por alguma caução científica, mas aquilo que se elegeu entre luzes e sombras. Existe, por exemplo, a tendência de reduzir diversidades e anular a complexidade dos tempos passados. Subsiste a ideia romântica de que o passado africano, antes da chegada dos europeus, consistia em um convívio harmonioso e sem conflito. Isso é felizmente falso porque as sociedades africanas, como todas as outras no mundo, têm o direito ao seu conflito interno, sendo esse o motor da sua evolução histórica. Curiosamente, a ideia da ausência de conflitos é uma herança que parece querer promover o que foi o nosso continente. Mas essa ingenuidade condescendente resulta da teoria europeia do bom selvagem, que infantiliza as sociedades e a gente africana.
Como será a trilogia?
 A trilogia fala de uma figura africana que foi mistificada pelos dois lados, Portugal e Moçambique. Os portugueses reinventaram nesse imperador um homem mais poderoso do que era realmente. Era preciso mostrar às potências colonizadoras rivais que Portugal tinha poderes militares para aniquilar esse império africano que, tendo sido grandioso, era já vazio e morto quando os portugueses decidiram pelo assalto final. Por outro lado, os moçambicanos precisavam de heróis nacionais e nacionalistas. E investiram na mistificação de um personagem que nunca foi realmente aquilo que hoje é proclamado.
A figura de Gungunhana, que se esfarela à medida em que se acredita na versão de seu caixão carregado de areia, seria uma representação de fragilidade de um povo?
 Não creio. A metáfora das “areias” usada para o título da trilogia refere à condição frágil não de um povo, mas do próprio imperador e do império mantido de 1884 a 1895 no sul de Moçambique. Esse império foi erguido por via de uma migração da etnia VaNguni, vinda da África do Sul para escapar da prepotência de Shaka Zulu. Esse império a que os portugueses chamaram de “Estado de Gaza” foi, como todos impérios, construído a ferro e fogo. Muitos dos povos que viviam na região ocupada rebelaram-se e foram incorporados à força. Outros foram absorvidos e colonizados pelos invasores. Não se pode, em suma, falar da fragilidade de um povo. Havia um Estado que congregava vários povos com várias línguas e várias culturas. 
Essa não foi a primeira vez que um fenômeno real inspirou tão fortemente sua escrita. 
 Já no romance O Outro Pé da Sereia, eu tinha ensaiado um registro histórico. Mas não se pode dizer que proponho ali um “romance histórico”. É antes um livro construído em diálogo com a História. Acho que o tema, no fundo, não é a História, mas a identidade e as suas construções através do tempo. Essa identidade questionada é aquela que buscamos hoje. Mas nós somos muito aquilo que já fomos. Dentro de nós, subsiste vivo um passado que ainda não passou. 
As diferenças no estilo da escrita também determinam a alternância de narradores. Como foi o processo da escrita polifônica?
É recorrente na minha escrita a existência de vozes plurais, de narradores diversos que espelham diferentes olhares sobre o mundo. Essa é a minha condição de uma pessoa distribuída entre universos. O nosso poeta José Craveirinha dizia: “não sou um homem dividido - sou uma pessoa repartida”. Partilho dessa percepção múltipla, desse mosaico de identidades. Tive de consultar fontes que eram radicalmente diferentes: do lado português, os documentos históricos que são muito ricos e produtivos. E tive que, do lado Moçambique, recorrer às fontes da oralidade. E percebi que, numa e noutra fonte, havia o registro de variadíssimas e contraditórias versões. Isso é ótimo porque encoraja o autor a escolher sua própria verdade. 
A História se mostra cada vez mais interessada em detalhes. A literatura toma o seu lugar? 
 A relação entre as pequenas histórias e a grande História já foi questionada por Guimarães Rosa, que sugeriu renomear a pequena narrativa como sendo a “estória”. A História e a estória parecem excluir-se reciprocamente. Infelizmente, o passado, que é cristalizado numa única versão oficial, aquela que aprendemos nas escolas e nas famílias, está fortemente contaminada por uma visão simplificadora e maniqueísta. Só cabem no passado os grandes heróis e os grandes traidores, num cenário que não permite nenhum espaço entre Inferno e Paraíso. Mas o grande tecido do passado foi feito por gente comum, que não teve direito à memória coletiva. Por gente que nasceu e morreu no anonimato do Purgatório. A literatura pode devolver humanidade a esses infinitos tecedores do tempo.
Você e o angolano José Eduardo Agualusa (com A Rainha Ginga) buscam mostrar como os africanos foram parte ativa em ações no passado, ao contrário do que habitualmente é mostrado, e de uma forma mais vigorosa.
Em Angola e em Moçambique, decorreram percursos históricos diferentes, mas com um grande paralelismo. São nações recentes, que precisaram de, ao mesmo tempo, atualizar e reescrever numa única temporalidade os seus passados que eram muitos e permaneceram vivos e misturados no presente. Como construir heróis, como inventar para eles uma história depurada de impurezas se os nossos avós foram seus contemporâneos? Para se criar uma nação única, é preciso ter um passado único. É isso que legitima a existência de uma voz única no presente. Mas esta recriação implica não apenas uma reelaboração da memória (e muito da obra de Agualusa trata exatamente neste tema), mas implica sobretudo um trabalho comum de esquecimento. O que devemos esquecer? Quem escolhe o que é deitado nesse abismo escuro? A verdade é a seguinte: esquecer não é um lapso, não é uma passiva ausência que tomba naturalmente como uma folha seca e morta. O esquecimento é, como a memória, uma fabricação, uma narrativa construída e partilhada. O que nos faz ser nação não é apenas o que juntos lembramos. Mas é sobretudo o que esquecemos e como esquecemos juntos. A literatura pode colocar a nu esse processo sem que intente exatamente denunciar ou proclamar verdades. O ficcionista sugere o seguinte: eis a minha obra, é uma ficção, uma mentira que diz que mente. Vale a pena perguntar quanto de ficção e falsidade se fez a história solene e oficial das nossas nações. O importante, afinal, é que essas duas construções sejam sedutoras e instigadoras de um futuro em que nos podemos recriar.
MULHERES DE CINZAS
Autor: Mia Couto
Editora: Companhia das Letras (344 págs.,R$ 39,90)
Lançamento. Sesc Pompeia. Teatro. 

R. Clélia, 93. Tel. 3871-7700. Leitura de trechos por Milton Hatoum, Mariana Lima e Maria Fernanda Cândido. Dia 25/11, 20 h. Grátis.