sexta-feira, fevereiro 08, 2013

MAIS ÁFRICA DO QUE VENEZA: CARNAVAL NA FALA DE NEI LOPES

Comentários de Moisés Basílio: 

Sexta-feira gorda de carnaval. Antes de cair na folia é bom ler este aperitivo para uma boa reflexão sobre as origens mais Afro do que Euro do nosso Carna, escrito pelas mãos e mente do nosso Nei Lopes. 

Axé!


CARNAVAL DE RUA, MAIS ÁFRICA DO QUE VENEZA 
 - Sexta-feira, Fevereiro 08, 2013

Fonte: Blog Meu Lote - http://www.neilopes.blogger.com.br/


Toda vez que, no Brasil, se fala em origens do Carnaval, buscam-se origens na Roma antiga, na Veneza renascentista etc. Mas o caso é que embora a festa, por aqui, tenha sido fixada dentro do ca­len­dá­rio ca­tó­li­co, ela, em sua manifestação a céu aberto, nas ruas e nas praças – seja na antiga forma de entrudo quanto na moderna, dos desfiles em cortejo – tem mais semelhança com “carnavais” que ocorrem em vá­rias cul­tu­ras afri­ca­nas. 

Em Gana, entre os povos do grupo Acã, por exem­plo, é co­mum a rea­li­za­ção de um gran­de fes­ti­val ­anual, o od­wi­ra, se­gui­do de um lon­go pe­río­do de re­co­lhi­men­to e abs­ti­nên­cia, co­mo na qua­res­ma. Da mesma forma em inúmeras outras culturas como se pode ver em www.africaguide.com/culture/events.htm. 

Devido a es­sa si­mi­li­tu­de, as ce­le­bra­ções car­na­va­les­cas nas Américas, com cer­te­za, de­vem sua ale­gria e seu bri­lho, fun­da­men­tal­men­te, à mú­si­ca dos ­afrodes­cen­den­tes. Assim foi e é, no Brasil, nos ran­chos car­na­va­les­cos, nas es­co­las de sam­ba, nos afo­xés, blo­cos-­afro etc.; no can­dom­be pla­ti­no; nas com­par­sas cu­ba­nas; e no mar­di­gras, nas Antilhas e em New Orleans. 

No Caribe, o car­na­val teria sido in­tro­du­zi­do pe­los ca­tó­li­cos fran­ce­ses, que cos­tu­ma­vam es­ten­dê-lo por um bom tem­po an­tes de en­fren­ta­rem os ri­go­res da qua­res­ma. Isolados pe­la so­cie­da­de do­mi­nan­te, os es­cra­vos ­uniam-se pa­ra ce­le­brar o car­na­val à sua mo­da, com a mú­si­ca e a dan­ça de sua tra­di­ção, in­tro­du­zin­do, na fes­ta eu­ro­péia, ­além dos ins­tru­men­tos ca­rac­te­rís­ti­cos, ­suas cren­ças e seu mo­do de ser. 

Na Martinica, o cos­tu­me foi ado­ta­do por vol­ta de 1640 e as fes­ti­vi­da­des do kan­na­val, co­mo é de­no­mi­na­do o car­na­val mar­ti­ni­ca­no, ex­pres­sam-se em um es­ta­do de es­pí­ri­to pe­cu­liar, trans­mi­ti­do de ge­ra­ção pa­ra ge­ra­ção. Durante mui­to tem­po a fes­ta rea­li­za­da na ci­da­de de Saint-Pierre foi o pon­to cul­mi­nan­te da co­me­mo­ra­ção na ­ilha, e, ten­do sua fa­ma se es­ten­di­do pe­lo Caribe, ­atrai anual­men­te mi­lha­res de vi­si­tan­tes de to­do o mun­do. Depois da de­vas­ta­do­ra erup­ção vul­câ­ni­ca de 1808, a tra­di­ção car­na­va­les­ca re­vi­veu em Fort-de-France, a no­va ca­pi­tal da Martinica, on­de, nos ­dias de ho­je, os pre­pa­ra­ti­vos co­me­çam na epi­fa­nia, em mea­dos de ja­nei­ro, e se es­ten­dem até a quar­ta-fei­ra de cin­zas. 

Durante es­se pe­río­do e no car­na­val pro­pria­men­te di­to, a ca­da do­min­go, gru­pos fan­ta­sia­dos ­saem às ­ruas, em tra­jes va­ria­dos: ca­sa­cos ve­lhos, rou­pas fo­ra de mo­da, cha­péus ras­ga­dos, fan­ta­sias bri­lhan­tes e co­lo­ri­das de ar­le­quim, pier­rôs e dia­bos. As más­ca­ras tam­bém são im­por­tan­tes aces­só­rios da fes­ta: ­além das que ho­me­na­geiam ou cri­ti­cam per­so­na­li­da­des do mo­men­to, há aque­las re­la­cio­na­das à mor­te, re­ple­tas de sim­bo­lo­gias afri­ca­nas, cu­jo sig­ni­fi­ca­do Aimé Cesaire en­con­trou em ri­tuais da re­gião de Casamance, no Norte do Senegal (con­for­me Alain Eloise). 

No Haiti, de mo­do ge­ral, o car­na­val é ce­le­bra­do se­guin­do es­se mes­mo es­pí­ri­to e com tra­ços se­me­lhan­tes aos fes­te­jos que se rea­li­zam no Brasil, em Trinidad e na Louisiana, Estados Unidos. Em Porto Príncipe, o vi­si­tan­te en­con­tra des­fi­les, fes­tas e fan­ta­sias cria­ti­vas, co­mo os que se ­vêem nes­ses lu­ga­res. 

Agora, estendemos nosso olhar para observar o seguinte: Pelo me­nos des­de o iní­cio do sé­cu­lo XIX, a par­ti­ci­pa­ção do po­vo ne­gro nos fol­gue­dos car­na­va­les­cos bra­si­lei­ros sem­pre foi mar­ca­da por uma ati­tu­de de re­sis­tên­cia, pas­si­va ou ati­va, à opres­são das clas­ses do­mi­nan­tes. Proibidos por lei de re­vi­dar aos ata­ques dos bran­cos, afri­ca­nos e criou­los pro­cu­ra­vam ou­tras ma­nei­ras de brin­car no en­tru­do. Tanto as­sim que Debret, en­tre 1816 e 1831, pe­río­do em que vi­veu no Brasil, fla­grou ce­nas in­te­res­san­tes de car­na­val, co­mo por exem­plo, um gru­po de ne­gros que, fan­ta­sia­dos de ve­lhos eu­ro­peus e ca­ri­ca­tu­ran­do-­lhes os ges­tos, zom­ba­va dos opres­so­res, crian­do, sem sa­ber, os cor­dões de ve­lhos, de imen­so su­ces­so no iní­cio do sé­cu­lo XX. 

Entre 1892 e 1900 sur­gi­ram no car­na­val baia­no, pe­la or­dem, a “Embaixada Africana”, os “Pândegos d’Áfri­ca”, a “Chega­da Africana” e os “Guerreiros d’Áfri­ca”, apre­sen­tan­do-se em prés­ti­tos cons­ti­tuí­dos úni­ca e ex­clu­si­va­men­te de ne­gros. Essa mo­da­li­da­de car­na­va­les­ca – “a exi­bi­ção de cos­tu­mes afri­ca­nos com ba­tu­ques” – se­ria proi­bi­da em 1905 na Ba­hia. Exatos ­dois ­anos de­pois, sur­ge no Rio de Janeiro o ran­cho car­na­va­les­co “Ameno Re­sedá” que, pre­ten­den­do “­sair do afri­ca­nis­mo orien­ta­dor dos cor­dões” (con­for­me Jota Efegê), con­quis­ta, com ­seus en­re­dos ope­rís­ti­cos, im­por­tan­te es­pa­ço pa­ra os ne­gros no car­na­val ca­rio­ca, pre­pa­ran­do o ca­mi­nho pa­ra as es­co­las de sam­ba, que sur­gi­riam um pou­co ­mais tar­de. 

Estruturadas no fi­nal dos ­anos de 1920, de 1932, ano do pri­mei­ro des­fi­le real­men­te or­ga­ni­za­do, até os ­dias de ho­je, as es­co­las de sam­ba ca­rio­cas vi­ve­ram vá­rias fa­ses de um ins­ti­gan­te pro­ces­so dia­lé­ti­co. Nunca dei­xa­ram de ser, no en­tan­to, pe­lo me­nos em te­se, nú­cleos de re­sis­tên­cia ne­gra – a ri­ca sim­bo­lo­gia das ­alas de baia­nas e das ve­lhas-guar­das cons­ti­tui exem­plo em­ble­má­ti­co. 

Enquanto as es­co­las ca­rio­cas iam se trans­for­man­do, na Bahia ­eram fun­da­das agre­mia­ções co­mo o afo­xé “Filhos de Gandhi”, em 1948, “pa­ra di­vul­ga­ção do cul­to na­gô, co­mo for­ma de afir­ma­ção ét­ni­ca”, se­gun­do ­seus es­ta­tu­tos; o blo­co-­afro Ilê ai­yê, em 1974, “por um gru­po de jo­vens cons­cien­tes da ne­ces­si­da­de de man­ter vi­va a lu­ta dos ­seus an­ces­trais pe­la com­ple­ta in­te­gra­ção so­cial da po­pu­la­ção ne­gra no Brasil”, tam­bém con­for­me ­seus ob­je­ti­vos es­ta­tu­tá­rios; e o afo­xé “Badauê”, em 1978, tor­nan­do, se­gun­do o es­cri­tor Antonio Risério, “ir­re­ver­sí­vel o pro­ces­so de rea­fri­ca­ni­za­ção do car­na­val da Bahia”. 

Mas a realidade mercadológica desmentiu a previsão do escritor. E é de prever-se que a realidade político-religiosa (mercadológica também) faça sua parte no futuro. 

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(Fonte: Nei Lopes - “Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana”. São Paulo, Selo Negro, 2ª ed. 2011)