domingo, julho 19, 2009

Adolescentes e educação

Comentários Moisés Basílio:
Pais e professores, embora possuam papéis diferentes, são figuras que se relacionam com a adolescência no plano do educar. Digo educar em dois sentidos - o do cuidar e o do ensinar. O problema é que o adolescente não quer ser cuidado e nem ensinado, ele se considera auto-suficiente. Não há uma receita pronta para enfrentar esse problema, pois educar é uma arte que brota da experiência de vida de cada pai ou professor. Mas, se por um lado não há receitas prontas, por outro a troca de experiências em enfretar o problema é de grande validade. A experiência relatada no livro do Gilmour, que serve de base para o artigo do Calligaris é deveras interessante, e estou curioso em ler o livro. Axé!


Fonte: Jornal Folha de S. Paulo - 16/07/2009

Autor: CONTARDO CALLIGARIS

Educar pelo cinema

Quase sempre, na vida de um adolescente, não basta preparar-se para o futuro; ele quer viver


QUANDO CHEGA uma convocação da orientação pedagógica do colégio de seus filhos, alguns pais já sabem que escutarão queixas: o garoto não estuda e não presta atenção, anda com uma gangue, dever de casa nem se fala etc.
Para mim, a queixa mais alarmante é a que diz que nosso filho é legal, mas não se interessa por nada -não só por nada do que a escola lhe propõe: nenhum esporte, nenhuma atividade extracurricular, nenhum hobby, nada.
Ele pode, eventualmente, ser obcecado com sua aparência (roupas, marcas, corte de cabelo), mas, no mais, ele só gosta de jogar conversa fora num shopping, beber cerveja, ficar no MSN e, às vezes, fumar cigarros ou baseados. O baseado é pior: afasta das tarefas cotidianas e do desejo, e, quando o afastamento se torna angustiante (os adolescentes sofrem com sua própria inércia), volta-se ao baseado para acalmar a angústia.
É um tranco que muitos pais atravessam do jeito que dá: desde as punições (cortar mesada, computador, saídas) até as tentativas desesperadas de envolver o rebento nas atividades dos adultos. "Ele vai jogar bola comigo", "Por caro que seja, se formos para o Quênia, ele vai se interessar, ao menos, pela vida dos elefantes. E pode querer ser veterinário", "E se comprássemos um cachorro do qual só ele se ocuparia?", "E se ele trabalhar na ONG daquela amiga que cuida de crianças de rua?", "Se ele encontrasse uma namorada, não seria o estímulo que lhe falta?".
O fato é que quase sempre chega um momento, na existência de um adolescente, em que, de repente, preparar-se para o futuro não lhe basta. Ele não quer se preparar, quer viver. Só que não sabe bem o que seria "viver": o mundo, como dizia a mãe de Forrest Gump, é uma caixa com chocolates variados, mas, no caso, por não conhecer os gostos e os recheios, o jovem hesita e morre de fome.
Os pais e os adolescentes que passam por essa situação não precisam se desesperar. O tempo cura muitos males, e a vida não é tão curta assim que um adolescente não possa "perder" alguns anos (tanto mais que nem sempre os ditos anos são propriamente perdidos).
Enfim, pais e adolescentes, que estejam ou não em apuros, não percam o livro de David Gilmour, "O Clube do Filme", que acaba de ser traduzido pela Intrínseca e que é uma pequena joia de coragem e sinceridade.
Gilmour conta como, confrontado com um filho de quinze anos que ele adorava, mas que não se interessava por nada, diante do espetáculo intolerável da aflição do garoto com as obrigações escolares, ele decidiu retirá-lo da escola. Mas nada de "Se você não quer estudar, tem que trabalhar; vagabundo não cabe nesta casa". Gilmour inventou uma educação alternativa: nenhuma obrigação, salvo a de não usar drogas (crucial) e a de compor, com o pai, o clube do filme, ou seja, assistir, três vezes por semana, a filmes que o pai escolheria e introduziria com breves comentários. Depois disso, a cada vez, pai e filho conversariam sobre o filme. O garoto, evidentemente, topou.
Começaram assim vários anos em que pai e filho viveram uma relação que não era parasitada pela necessidade de forçar o garoto a estudar, mas não foi nenhum paraíso: o pai, que atravessava um tempo de fracasso profissional, não parava de questionar sua própria decisão (será que ele estava acabando com o futuro do filho, que, aos 16 anos, não sabia onde está a Flórida no mapa?), e o filho não tinha como não sofrer com a sensação de estar sem rumo na vida.
A história acaba bem. Mas, cuidado, não é uma receita praticável, a não ser por quem tenha uma coragem de leão e, sobretudo, consiga amar seu filho mesmo que ele não corresponda aos sonhos dos pais (tipo de amor muito mais raro do que a gente imagina). Além disso, eu me perguntei se não teria sido possível instituir o clube do filme sem que o garoto saísse da escola (talvez não, talvez sim).
De qualquer forma, terminei o livro com dois pensamentos.
1) Há uma coisa que nossos filhos precisam conquistar, e que nunca vai ser uma matéria do programa: é o desejo de viver. Nessa tarefa decisiva, a ficção talvez seja o melhor recurso. E, das ficções, o cinema é a mais facilmente acessível.
2) Os adolescentes devem se preparar para sua vida futura, mas, igual eles estão vivendo, agora. Às vezes, parecemos sacrificar radicalmente seu presente em troca de nossa própria (ilusória) tranquilidade quanto ao seu futuro.

ccalligari@uol.com.br

quinta-feira, julho 09, 2009

Kabenguele responde a Magnolli

Comentários Moisés Basílio:
Quando li o artigo do Magnoli em maio fiquei indignado, não pela tese que ele defende - contra as cotas raciais -, mas pela forma com que defende, desferindo ataques gratuitos ao Professor Kabengele através da distorção de suas palavras escritas e idéias. Agora surge a resposta do Professor Kabengele, que prontamente publicizo a seguir neste espaço.
Os dois textos são excelentes exemplos de estilos diferentes de discursos de defesa de um ponto de vista. O texto do Magnoli, publicado num jornal de grande circulação, é marcadamente um texto de ataque político e ideológico. Magnoli não está preocupado - ou preparado - para fundamentar seus argumentos, mas sim intencionado à desmoralizar seus oponentes, que num plano mais geral são as hegemônicas idéias da "esquerda" sobre a questão racial e no específico um de seus defensores, o Professor Kabengele. Magnoli conta que muitos lerão o seu artigo no Estadão e não terão a oportunidade de ler a resposta, pois dificilmente o Estadão abrirá esse espaço para o professor.
Quanto ao texto do Professor Kabengele é uma resposta fundamentada aos ataques de Magnoli e também uma brilhante defesa da importância das políticas de cotas no atual momento histórico da sociedade brasileira. Axé!

POLÊMICA - TEXTO 1
Fonte: Jornal O Estado de S. Paulo - 14/05/2009 - Opinião
Monstros tristonhos

Por: Demétrio Magnoli é sociólogo e doutor em Geografia Humana pela USP. E-mail: demetrio.magnoli@terra.com.br

Tatiana de Oliveira teve sua matrícula cancelada na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) menos de um mês após o início do curso de Pedagogia, no qual ingressou pelo sistema de cota racial. A instituição inscreve candidatos cotistas com base na autodeclaração de cor/raça negra, mas depois, com base numa entrevista, pode rejeitar a matrícula. O pai da estudante se define como "pardo" e o avô paterno, como "preto", mas uma comissão da UFSM que funciona como tribunal racial pespegou-lhe o rótulo de "branca".

Juan Felipe Gomez, cotista ingressante na Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR), conheceu sorte similar. A instituição impugnou sua declaração racial, recusando uma declaração cartorial na qual a mãe do jovem se identificou como "parda" e "afrodescendente", uma certidão de nascimento que identifica a avó materna de Juan como "negra" e um prontuário civil em que a mãe é classificada como "parda". Ele não está só: na UFSCAR, um quarto dos candidatos aprovados pelo sistema de cotas raciais neste ano teve sua matrícula cancelada em razão de impugnações do tribunal racial.

Segundo a lenda divulgada pelos arautos da doutrina racialista, a "raça negra" é constituída pela soma dos que se declaram censitariamente "pretos" com os que se declaram "pardos". Em tese, o sistema de cotas raciais está destinado a esses dois grupos. Então, por que os tribunais raciais instalados nas universidades impugnam mestiços como Tatiana, Juan e tantos outros?

A resposta encontra-se na introdução de um livro de Eneida dos Reis devotado a investigar o lugar social do mulato. O autor da introdução é o antropólogo Kabengele Munanga, professor titular na USP e um dos ícones do projeto de racialização oficial do Brasil. Eis o que ele escreveu: "Os chamados mulatos têm seu patrimônio genético formado pela combinação dos cromossomos de ?branco? e de ?negro?, o que faz deles seres naturalmente ambivalentes, ou seja, a simbiose (...) do ?branco? e do ?negro?. (...) os mestiços são parcialmente negros, mas não o são totalmente por causa do sangue ou das gotas de sangue do branco que carregam. Os mestiços são também brancos, mas o são apenas parcialmente por causa do sangue do negro que carregam."

O charlatanismo acadêmico está à solta. Cromossomos raciais? Sangue do branco? Sangue do negro? Seres naturalmente ambivalentes? Munanga quer dizer seres monstruosos? Do ponto mais alto da carreira universitária, o antropólogo professa a crença do "racismo científico", velha de mais de um século, na existência biológica de raças humanas, vestindo-a curiosamente numa linguagem decalcada da ciência genética. Mas ele vai adiante, saltando dos domínios da biologia para os da engenharia social: "Se no plano biológico, a ambiguidade dos mulatos é uma fatalidade da qual não podem escapar, no plano social e político-ideológico eles não podem permanecer (...) ?branco? e ?negro?; não podem se colocar numa posição de indiferença ou de neutralidade quanto a conflitos latentes ou reais que existem entre os dois grupos, aos quais pertencem, biológica e/ou etnicamente."

É o horror - científico, acadêmico e moral. Mas, desgraçadamente, nessas frases abomináveis, que representam um cancelamento do conceito de cidadania, está delineada uma visão de mundo e exposto um plano de ação. De acordo com elas, a mola propulsora da história é o conflito racial e, no Brasil, para que a história avance é preciso suprimir a mestiçagem, propiciando um embate direto entre as duas raças polares em conflito. O imperativo da supressão da mestiçagem exige que os mestiços - esses monstros tristonhos condenados pela sua natureza à ambivalência - façam uma escolha política, decidindo se querem ser "brancos" ou "negros" no novo mundo organizado pelo mito da raça.

No veredicto do Grande Inquisidor que ocupa o cargo de reitor da UFSM, Tatiana foi declarada "branca" porque, em audiência diante de um tribunal racial, ela não testemunhou ser vítima de discriminação racial. A estudante, tanto quanto Juan Felipe e os demais rejeitados pelo Brasil afora, teve cassado o direito à autodeclaração de cor/raça por um punhado de inquisidores, que são professores racialistas e militantes de ONGs do movimento negro. Mas, antes disso, essa turma tomou de assalto as chaves de acesso ao ensino superior e, desafiando as normas constitucionais, cassou o direito de centenas de milhares de jovens da cor "errada" de ingressar na universidade pelo mérito demonstrado em exames objetivos. A massa dos sem-direito é formada por estudantes de alta, média ou baixa renda, com diferentes tons de pele, que compartilham o azar de não funcionarem como símbolos úteis a uma ideologia.

Esquece-se com frequência que a pedra fundamental dos Estados baseados no princípio da raça é a proibição legal da miscigenação. A Lei Antimiscigenação da Virginia, de 1924, que sintetizava o sentido geral da legislação segregacionista nos EUA, definiu como "negros" todos os que tinham uma gota de "sangue negro". A Lei para a Proteção do Sangue Germânico, de 1935, na Alemanha nazista, criminalizava casamentos e relações sexuais entre judeus e arianos. A Lei de Proibição de Casamentos Mistos, de 1949, na África do Sul do apartheid, proibiu uniões e relações sexuais entre brancos e não-brancos. Raça é um empreendimento de higiene social: a busca da pureza.

Mestiçagem se faz na cama e na cultura. É troca entre corpos e intercâmbio de ideias. Os arautos brasileiros do mito da raça talvez gostassem de ter uma lei antimiscigenação, mas concentram-se na missão mais realista de higienizar as mentes, expurgando de nossa consciência a imagem de uma nação misturada. Cada um dos jovens mestiços pré-universitários terá de optar entre as alternativas inapeláveis de ser "branco" ou ser "negro". Para isso, e nada mais, servem as cotas raciais.

POLÊMICA - TEXTO 2
Fonte: AfroPress Agência de Informação Multiética - 03/07/09 - http://www.afropress.com/colunistasLer.asp?id=633

Kabenguele responde a Magnolli

Por: Kabenguele Munanga é Professor Titular do Departamento de Antropologia da Universidade de S. Paulo (USP).

Manifestação do professor Kabengele Munanga acerca da matéria “Monstros tristonhos” publicada no jornal O Estado de S. Paulo de 14 maio de 2009, de autoria de Demétrio Magnoli.

Em matéria publicada no jornal O Estado de S. Paulo de 14 maio de 2009 (http://arquivoetc. blogspot. com/2009/ 05/demetrio- magnoli-monstros -tristonhos. html), intitulada “Monstros tristonhos”, o geógrafo Demétrio Magnoli critica e acusa agressivamente as Universidades Federais de Santa Maria (UFSM) e de São Carlos (UFSCAR) e também a mim, Kabengele Munanga, Professor do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

As duas universidades são criticadas e acusadas por terem, segundo o geógrafo, criado ”tribunais raciais” que rejeitam as matrículas de jovens mestiços que optam pelas cotas raciais. No caso da Universidade Federal de Santa Maria, trata-se apenas de Tatiana de Oliveira, cuja matrícula foi cancelada menos de um mês após o início do curso de Pedagogia.. No caso da Universidade Federal de São Carlos, trata-se do estudante Juan Felipe Gomes. O acusador acrescenta que um quarto dos candidatos aprovados na UFSCAR pelo sistema de cotas raciais neste ano de 2009 teve sua matrícula cancelada pelo “tribunal racial” dessa universidade.

A questão que se põe é saber se além desses estudantes, cujas matrículas foram canceladas, outros alunos mestiços ingressaram em cerca de 70 universidades públicas que aderiram à política de cotas. Se a resposta for afirmativa, os que tiveram sua matrícula cancelada constituem casos raros ou excepcionais que mereceriam a atenção não apenas de Demétrio Magnoli, mas também de todas as pessoas que defendem a justiça e a igualdade de tratamento.

Mas por que esses casos raros, que constituem uma exceção e não a regra, foram “injustiçados” pelas comissões de controle formadas nessas universidades para evitar fraudes, comissões que o sociólogo Demétrio rotula de “tribunais raciais”? Por que só eles? Por que não ocorreu o mesmo com os outros mestiços aprovados? Houve realmente injustiça racial ou erro humano na avaliação da identidade física dessas pessoas que foram simplesmente consideradas brancas e não mestiças apesar de sua autodeclaração? Os erros humanos, quando são detectados, devem ser corrigidos pelos próprios humanos, como o foi no caso dos estudantes gêmeos da UnB. As injustiças, flagrantes ou não, devem ser apuradas e julgadas pela própria justiça que, num estado democrático de direito como o Brasil, deverá prevalecer. Acho que os estudantes Tatiana de Oliveira e Juan Felipe Gomes, e tantos outros que o sociólogo menciona sem entretanto nomeá-los, devem procurar um advogado para defender seus direitos se estes tiverem sido efetivamente violados pelos chamados “tribunais raciais”. Entendo que o geógrafo Demétrio tenha pena deles, considerando a sua sensibilidade humana.

Se realmente houve erro humano na verificação da identidade desses estudantes, a explicação não está na citação intencionalmente deturpada de algumas linhas extraídas de um texto introdutório de três páginas ao livro de Eneida de Almeida dos Reis, intitulado MULATO: negro-não-negro e/ou branco-não-branco, publicado pela Editora Altara, na Coleção Identidades, São Paulo, em 2002.

Veja como é interessante a estratégia de ataque do geógrafo Demétrio Magnoli. Ele escondeu de seus leitores o título do livro de Eneida de Almeida dos Reis, assim como a casa editora e a data de sua publicação para evitar que possíveis interessados pudessem ter acesso à obra para averiguar direta e pessoalmente o fundamento das acusações. De fato, ele não disse absolutamente nada sobre o conteúdo desse livro, e passa a impressão de ter lido apenas vinte linhas do total de três páginas da introdução, a partir das quais constrói seu ensaio e sua acusação. Com sua inteligência genuína, acho que ele poderia ter feito uma pequena síntese desse livro para seus leitores; se ele o tivesse mesmo lido, entenderia que nada inventei sobre a ambivalência genética do mestiço que não estivesse presente no próprio título da obra “Mulato: negro-não-negro e/ou branco-não-branco”. Desde quando a palavra ambivalência é sinônimo de “monstro tristonho”? Estamos assistindo à invenção, pelo geógrafo, de novos verbetes dos dicionários da língua portuguesa?

O livro de Eneida de Almeida dos Reis resultou de uma pesquisa para dissertação de mestrado defendida na PUC de São Paulo sob a orientação de Antonio da Costa Ciampa, Professor do Programa de Estudos Pós-graduados em Psicologia da PUC São Paulo. Ele foi convidado a fazer a apresentação do livro, na qualidade de professor orientador, e eu para escrever a introdução, na qualidade de ex-professor na disciplina “Teorias sobre o racismo e discursos antirracistas”, ministrada no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da USP. O livro se debruça sobre as peripécias e dificuldades vividas pelos indivíduos mestiços de brancos e negros, pejorativamente chamados mulatos, no processo de construção de sua identidade coletiva e individual, a partir de um estudo de caso clínico. É uma pena que nosso crítico acusador não tenha tido a coragem de apresentar a seus leitores o verdadeiro conteúdo desse livro, resultado de uma meticulosa pesquisa acadêmica, e não da minha fabulação.

Para entender porque essas pessoas mestiças foram consideradas brancas, apesar de terem declarado sua afrodescendência, é preciso voltar ao clássico “Tanto preto quanto branco: estudos de relações raciais”, de Oracy Nogueira (São Paulo: T.A. Queiroz, 1985). Se o geógrafo Demétrio tivesse lido esse livro, acredito que teria entendido porque as pessoas brancas que possuem algumas gotas de sangue africano são consideradas pura e simplesmente negras nos Estados Unidos – apesar de exibirem uma fenotipia branca – e brancas no Brasil. Ensina Nogueira que a classificação racial brasileira é de marca ou de aparência, contrariamente à classificação anglo-saxônica que é de origem e se baseia na “pureza” do sangue. Do ponto de vista norteamericano, todos os brasileiros seriam, de acordo com as pesquisas do geneticista Sergio Danilo Pena, considerados negros ou ameríndios, pois todos possuem, em porcentagens variadas, marcadores genéticos africanos e ameríndios, além de europeus, sem dúvida. Quando essas pessoas fenotipicamente brancas e geneticamente mestiças se consideram ou são consideradas brancas no decorrer de suas vidas e assumem, repentinamente, a identidade afrodescendente para se beneficiar da política das cotas raciais, as suspeitas de fraude podem surgir. Creio que foi o que aconteceu com os alunos cujas matrículas foram canceladas na UFSM e na UFSCAR. Se não houver essa vigilância mínima, seria melhor não implementar a política de cotas raciais, porque qualquer brasileiro pode se declarar afrodescendente, partindo do pressuposto de que a África é o berço da humanidade..

Lembremo-nos de que no início dos debates sobre as cotas colocava-se a dificuldade de definir quem é negro no Brasil por causa da mestiçagem. Falsa dificuldade, porque a própria existência da discriminação racial antinegro é prova de que não é impossível identificá-lo. Senão, o policial de Guarulhos não teria assassinado o jovem dentista identificado como negro pelo cidadão branco assaltado, e os zeladores de todos os prédios do Brasil não teriam facilidade para orientar os visitantes negros a usar os elevadores de serviço. Por sua vez, as raras mulheres negras moradoras dos bairros de classe média não seriam constantemente convidadas pelas mulheres brancas, quando se encontram nos elevadores, para trabalhar como domésticas em suas casas. Existem casos duvidosos, como o dos alunos em questão, que mereceriam uma atenção desdobrada para não se cometer erros humanos, mas não houve dúvidas sobre a identidade da maioria dos estudantes negros e mestiços que ingressaram na universidade através das cotas.

Bem, o geógrafo Demétrio Magnoli leva ao extremo a acusação a mim dirigida quando me considera um dos “ícones do projeto da racialização oficial do Brasil”. Grave acusação! Infelizmente, ele não deu nomes a outros ícones. Nomeou apenas um deles, cuja obra não leu, ou melhor, demonstra não ter lido. Mas por que só o meu nome mencionado? Porque sou o mais fraco, pelo fato de ser brasileiro naturalizado, ou o mais importante, por ter chegado ao ponto mais alto da carreira acadêmica? Isso parece incomodá-lo bastante! Um negro que chegou lá, ao topo da carreira acadêmica, numa das melhores universidades do país, mas nem por isso esse negro deixou de ser solidário, pois milita intelectualmente para que outros negros, índios e brancos pobres tenham as mesmas oportunidades.

De acordo com as conclusões assinaladas no livro de Eneida de Almeida dos Reis, muitos mestiços têm dificuldades para construir sua identidade por causa da ambivalência (Mulato: negro-não-negro e/ou branco-não-branco) , dificuldades que eles teriam superado se tivessem política e ideologicamente assumido uma de suas heranças, ou seja, a sua negritude, que é o ponto nevrálgico de seu sofrimento psicológico. Se o sociólogo acusador tivesse lido este livro e refletido serenamente sobre suas conclusões, ele teria percebido que não alimento nenhum projeto ou plano de ação para suprimir a mestiçagem no Brasil. Isto só pode ser chamado de masturbação ideológica, e não de análise sociológica, nem geográfica! Como seria possível suprimir a mestiçagem, que é um fato fundamental da história da humanidade, desafiando as leis da genética e a vontade dos homens e das mulheres que sempre terão intercursos interraciais? Nem o autor do ensaio sobre as desigualdades das raças humanas, Arthur de Gobineau, chegou a acreditar nessa possibilidade. Se as leis segregacionistas do Sistema Jim Crow no Sul dos Estados Unidos e do Apartheid na África do Sul não conseguiram fazê-lo, os ícones da racialização oficial do Brasil, entre os quais nosso colega me situa, terão esse poder mágico e milagroso que ele lhes atribui?

Entrando na vida privada, gostaria que o sociólogo soubesse que tenho um filho e uma neta mestiços que não são monstros tristonhos como ele pensa, pois são educados para assumir sua negritude e evitar assim os graves problemas psicológicos apontados na obra de Eneida de Almeida Dos Reis, através da indefinida personagem Maria, (ver p.39-100). Como se pode dizer que os mestiços são geneticamente ambivalentes e que política e ideologicamente não podem permanecer nessa ambivalência e ser por isso taxado de charlatão acadêmico? Creio que se trata apenas de uma reflexão que decorre das conclusões do próprio livro e que de per si não constituiria nenhum charlatanismo. Não seria um contra-senso e um grave insulto à USP que esse “charlatão acadêmico” tenha chegado ao topo da carreira acadêmica? E que tenha orientado dezenas de doutores hoje professores nas grandes universidades brasileiras, como a USP, UNICAMP, UNESP, UFMG, UFF, UFRJ, Universidade Federal de Goiás, Universidade Federal de São Luiz do Maranhão, Universidade Estadual de Londrina, Universidade Candido Mendes, PUC de Campinas, etc. Creio que, salvo o geógrafo Demétrio, os que me conhecem através de textos que escrevi, de minhas aulas e de minhas participações nos debates sociais e intelectuais no país e no exterior, não me atribuiriam esse triste retrato.

Disse ainda o geógrafo Demétrio que “do ponto mais alto da carreira universitária, o antropólogo professa a crença do racismo científico, velha de mais de um século, na existência biológica de raças humanas, vestindo-a curiosamente numa linguagem decalcada da ciência genética”. Sinceramente, não entendo como Demétrio conseguiu tirar tanta água das pedras. Das 20 linhas extraídas, de maneira deturpada, de um texto de três páginas de introdução, ele conseguiu dizer coisas horríveis, como se tivesse lido tudo que escrevi durante minha trajetória intelectual sobre o racismo antinegro. A colonização da África, contrariamente às demais colonizações conhecidas na história da humanidade, foi justificada e legitimada por um corpus teórico-cientí fico baseado nas idéias evolucionistas e racialistas produzidas na modernidade ocidental. Teria algum sentido para mim, que milito contra o racismo, professar o racismo científico para lutar contra o racismo à brasileira? Acho que nosso geógrafo quer me transformar num demente que não sou. As pessoas que leram seu texto no jornal O Estado de S. Paulo podem pensar que eu sou esse negro ex-colonizado que professa as mesmas idéias do racismo científico que postulou a inferioridade e a desumanidade dos africanos, incluída a dele mesmo. Como entender que meus alunos de Pós-graduação, a quem ensino há vinte anos “As teorias sobre o racismo e discursos antirracistas”, uma disciplina freqüentada por alunos da USP, de outras universidades e outros estados, têm a coragem de ocupar um semestre inteiro para escutar profissões de fé em favor do racismo científico?

Se o geógrafo Demétrio quer saber mais sobre mim, ingressei na Faculdade em 1964, aos vinte e dois anos de idade. Tive aulas de Antropologia Física com um dos melhores biólogos e geneticistas franceses, Jean Hiernaux. Uma das primeiras coisas que ele me ensinou era que a raça não existe biologicamente. Através de suas aulas, li François Jacob, Nobel de Fisiologia (1965) e um dos primeiros franceses a decretar que a raça pura não existe biologicamente; e J.Ruffie, Albert Jacquard e tantos outros geneticistas antirracistas dessa época. Portanto, sei muito bem, e bem antes de Demétrio que o racismo não pode ter mais sustentação científica com base na noção das raças superiores e inferiores, que não existem biologicamente. Sei muito bem que o conteúdo da raça enquanto construção é social e político. Ou seja, a realidade da raça é social e política porque tivemos na história da humanidade povos e milhões de seres humanos que foram mortos e dominados com justificativa nas pretensas diferenças biológicas. Temos em nosso cotidiano, pessoas discriminadas em diversos setores da vida nacional porque apresentam cor da pele diferente. Nosso sistema educativo é eurocêntrico e nossos livros didáticos são repletos de preconceitos por causa das diferenças. Não sou um novato que ingressou ontem na universidade brasileira. No Brasil, fui introduzido ao pensamento racial nacional por grandes mestres, como João Baptista Borges Pereira, que foi meu orientador no doutoramento, Florestan Fernandes, Octavio Ianni, Oracy Nogueira, entre outros. Não sei onde estava Demétrio nessa época e em que ano ele descobriu que a raça não existe. Acho um exagero querer me dar lição de moral sobre coisas que eu conheço muito antes dele. Isto não quer dizer que ele não possa me ensinar temas pertinentes à geografia, como por exemplo, o que se pode ler em seu livro sobre a África do Sul – “Capitalismo e Apartheid”, publicado pela Editora Contexto, São Paulo, 1998, que oferece algumas informações interessantes sobre a história do sistema do apartheid. Esse livro faz parte da bibliografia recomendada na disciplina ministrada na Graduação, não obstante algumas incorreções históricas nele contidas.

Um dos maiores problemas da nossa sociedade é o racismo, que, desde o fim do século passado, é construído com base em essencializações sócio-culturais e históricas, e não mais necessariamente com base na variante biológica ou na raça. Não se luta contra o racismo apenas com retórica e leis repressivas, não somente com políticas macrossociais ou universalistas, mas também, e, sobretudo, com políticas focadas ou específicas em benefício das vítimas do racismo numa sociedade onde este é ainda vivo. É neste sentido que faço parte do bloco dos intelectuais brancos e negros que defendem as políticas de ação afirmativa e de cotas para o acesso ao ensino superior e universitário. Na cabeça e no pensamento de Demétrio Magnoli, todos os que fazem parte desse bloco querem racializar o Brasil, e isso faz parte de um projeto e de um plano de ação. Que loucura!

Defendemos as cotas em busca da igualdade entre todos os brasileiros, brancos, índios e negros, como medidas corretivas às perdas acumuladas durante gerações e como políticas de inclusão numa sociedade onde as práticas racistas cotidianas presentes no sistema educativo e nas instituições aprofundam cada vez mais a fratura social. Cerca de 70 universidades públicas estaduais e federais que aderiram à política de cotas sem esperar a Lei ainda em tramitação no Senado entenderam a importância e a urgência dessa política. Acontece que essas universidades não são dirigidas por negros, mas por compatriotas brancos que entendem que não se trata do problema do negro, mas sim do problema da sociedade, do seu problema como cidadão brasileiro. Podemos dizer que todos esses brancos no comando das universidades querem também racializar o Brasil, suprimir os mestiços e incentivar os conflitos raciais? Afinal, podemos localizar os linchamentos e massacres raciais nos Estados onde se encontram as sedes das universidades que aderiram às cotas? Tudo não passa de fabulações dos que gostariam de manter o status quo e que inventam argumentos que horrorizam a sociedade. Quem está ganhando com as cotas? Apenas os alunos negros ou a sociedade como um todo? Quem ingressou através das cotas? Apenas os alunos negros e indígenas ou entraram também estudantes brancos da escola pública?

Concluindo, penso que existe um debate na sociedade que envolve pensamentos, filosofias e representações do mundo, ideologias e formações diferentes. Esse pluralismo é socialmente saudável, na medida em que pode contribuir para a conscientização de seus membros sobre seus problemas e auxiliar a quem de direito, o legislador e o executivo, na tomada de decisões esclarecidas. Este debate se resume a duas abordagens dualistas. A primeira compreende todos aqueles que se inscrevem na ótica essencialista, segundo a qual a humanidade é uma natureza ou uma essência e como tal possui uma identidade genérica que faz de todo ser humano um animal racional diferente dos demais animais. Eles afirmam que existe uma natureza comum a todos os seres humanos em virtude da qual todos têm os mesmos direitos, independentemente de suas diferenças de idade, sexo, raça, etnias, cultura, religião, etc. Trata-se de uma defesa clara do universalismo ou do humanismo abstrato, concebido como democrático. Considerando a categoria raça como uma ficção, eles advogam o abandono deste conceito e sua substituição pelos conceitos mais cômodos, como o de etnia. De fato, eles se opõem ao reconhecimento público das diferenças entre brancos e não brancos. Aqui temos um antirracismo de igualdade que defende os argumentos opostos ao antirracismo de diferença. As melhores políticas públicas, capazes de resolver as mazelas e as desigualdades da sociedade, deveriam ser somente macro-sociais ou universalistas. Qualquer proposta de ação afirmativa vinda do Estado que introduza as diferenças para lutar contra as desigualdades, é considerada, nessa abordagem, como um reconhecimento oficial das raças e, conseqüentemente, como uma racialização do Brasil, cuja característica dominante é a mestiçagem. Ou, em outras palavras, as políticas de reconhecimento das diferenças poderão incentivar os conflitos raciais que, segundo dizem, nunca existiram. Assim sendo, a política de cotas é uma ameaça à mistura racial, ao ideal da paz consolidada pelo mito de democracia racial, etc. Eu pergunto se alguém pode se tornar racista pelo simples fato de assumir sua branquitude, amarelitude ou negritude? Como se identifica então o geógrafo Demétrio: branco, negro, mestiço ou Demétrio indefinido? Pelo que me consta, ele se identifica como branco, mas não aceita que os negros e seus descendentes mestiços se identifiquem como tais e lutem por seus direitos num país onde são as grandes vítimas do racismo. A menos que ele negue a existência das práticas racistas no cotidiano brasileiro, e as diferenças de cor, sexo, classe e religiões que exigiriam políticas diferenciadas.

A segunda abordagem reúne todos aqueles que se inscrevem na postura nominalista ou construcionista, ou seja, os que se contrapõem ao humanismo abstrato e ao universalismo, rejeitando uma única visão do mundo em que não se integram as diferenças. Eles entendem o racismo como produção do imaginário destinado a funcionar como uma realidade a partir de uma dupla visão do outro diferente, isto é, do seu corpo mistificado e de sua cultura também mistificada. O outro existe primeiramente por seu corpo antes de se tornar uma realidade social. Neste sentido, se a raça não existe biologicamente, histórica e socialmente ela é dada, pois no passado e no presente ela produz e produziu vítimas. Apesar do racismo não ter mais fundamento científico, tal como no século XIX, e não se amparar hoje em nenhuma legitimidade racional, essa realidade social da raça que continua a passar pelos corpos das pessoas não pode ser ignorada.

Grosso modo, eis as duas abordagens essenciais que dividem intelectuais, estudiosos, midiáticos, ativistas e políticos, não apenas no Brasil, mas no mundo todo. Ambas produzem lógicas e argumentos inteligíveis e coerentes, numa visão que eu considero maniqueísta. Poderão as duas abordagens se cruzar em algum ponto em vez de se manter indefinidamente paralelas? Essa posição maniqueísta reflete a própria estrutura opressora do racismo, na medida em que os cidadãos se sentem forçados a escolher a todo momento entre a negação e a afirmação da diferença. A melhor abordagem seria aquela que combina a aceitação da identidade humana genérica com a aceitação da identidade da diferença. Para ser um cidadão do mundo, é preciso ser, antes de mais nada, um cidadão de algum lugar, observou Milton Santos num de seus textos. A cegueira para com a cor é uma estratégia falha para se lidar com a luta antirracista, pois não permite a autodefinição dos oprimidos e institui os valores do grupo dominante e, conseqüentemente, ignora a realidade da discriminação cotidiana. A estratégia que obriga a tornar as diferenças salientes em todas as circunstâncias obriga a negar as semelhanças e impõe expectativas restringentes.

Se a questão fundamental é como combinar a semelhança com a diferença para podermos viver harmoniosamente, sendo iguais e diferentes, por que não podemos também combinar as políticas universalistas com as políticas diferencialistas? Diante do abismo em matéria de educação superior, entre brancos e negros, brancos e índios, e levando-se em conta outros indicadores socioeconômicos provenientes dos estudos estatísticos do IBGE e do IPEA, os demais índices do Desenvolvimento Humano provenientes dos estudos do PNUD, as políticas de ação afirmativa se impõem com urgência, sem que se abra mão das políticas macrossociais.

Não conheço nenhum defensor das cotas que se oponha à melhoria do ensino público. Pelo contrário, os que criticam as cotas e as políticas diferencialistas se opõem categoricamente a qualquer política de diferença por considerá-las a favor da racialização do Brasil. As leis para a regularização dos territórios e das terras das comunidades quilombolas, de acordo com o artigo 68 da Constituição, as leis 10639/03 e 11645/08 que tornam obrigatório o ensino da história da África, do negro no Brasil e dos povos indígenas; as políticas de saúde para doenças específicas da população negra como a anemia falciforme, etc., tudo isso é considerado como racialização do Brasil, e virou motivo de piada.

Convido o geógrafo Demétrio Magnoli a ler o que escrevi sobre o negro no Brasil antes de se lançar desesperadamente em críticas insensatas e graves acusações. Se porventura ele identificar algum traço de defesa do racismo científico em meus textos, se encontrar algum projeto ou plano de ação para suprimir os mestiços e racializar o Brasil, já que ele me acusa de ícone desse projeto, ele poderia me processar na justiça brasileira, em vez de inventar fábulas que não condizem com minha tradicionalmente pública e costumeira postura.


quarta-feira, julho 08, 2009

DIREITO HUMANO À EDUCAÇÃO - Cartilha

Comentários Moisés Basílio: Um excelente material de consulta para todos que lutam pela educação pública no Brasil. Vamos usá-lo. Axé!


Título: Cartilha - Direito Humano à Educação
Autor: Ação Educativa e Plataforma Dhesca Brasil
e-book: Baixar e-book
Descrição:

Plataforma Dhesca Brasil e Ação Educativa, após anos de parceria, sentiram a necessidade de ter um documento comum, de ampla divulgação e fácil acesso, que sistematize seus conhecimentos e aponte caminhos para que os direitos humanos sejam realmente agregados às dimensões físicas e concretas da vida de todos.
Coordenação Editorial: Denise Carreira, Lígia Cardieri e Salomão Ximenes
Autores: Ester Rizzi, Marina Gonzalez e Salomão Ximenes
Revisão: Denise Carreira, Laura Bregenski Schühli, Ligia Cardieri e Suelaine Carneiro.

Clique para baixar.

sábado, julho 04, 2009

Ideas para la izquierda

Comentários Moisés Basílio: A derrota da esquerda nas ultimas eleições européias traz um alerta para nós, esquerda brasileira, que em 2010 teremos o desafio de darmos continuidade ao projeto iniciado pelo governo Lula em 2002. O artigo de Innerarity é um alerta, com um ano de antecedência para nós. Saibamos lê-lo. Axé!

Fonte: Jornal espanhol El País - em 28/06/2009.
Autor: Daniel Innerarity es profesor de Filosofía en la Universidad de Zaragoza. Acaba de publicar El futuro y sus enemigos. Una defensa de la esperanza política.

El fracaso de los socialistas en las recientes elecciones europeas, precisamente por haber afectado a todos los países, remite a algunas causas ideológicas de carácter general. La pregunta que se plantea con irritación y desconcierto sería la siguiente: ¿cómo explicar que la crisis o los casos de corrupción golpeen de manera muy diferente, desde el punto de vista electoral, a la izquierda y a la derecha?

Pienso que la raíz de esa curiosa decepción, que se reparte tan asimétricamente, está en las diversas culturas políticas de la izquierda y la derecha.

Por lo general, la izquierda espera mucho de la política, más que la derecha, a veces incluso demasiado. Le exige a la política no sólo igualdad en las condiciones de partida sino en los resultados, es decir, no sólo libertad sino también equidad. La derecha se contenta con que la política se limite a mantener las reglas del juego. Es más procedimental y se da por satisfecha con que la política garantice marcos y posibilidades, mientras que el resultado concreto (en términos de desigualdad, por ejemplo), le es indiferente; a lo sumo, aceptará las correcciones de un "capitalismo compasivo" para paliar algunas situaciones intolerables.

Por supuesto que ambas aspiran a defender tanto la igualdad como la libertad y que nadie puede pretender el monopolio de ambos valores, pero el énfasis de cada uno explica sus distintas culturas políticas. La diferencia radicaría en que la izquierda, en la medida en que espera mucho de la política, también tiene un mayor potencial de decepción. Por eso el vicio de la izquierda es la melancolía, mientras que el de la derecha es el cinismo.

Esto explicaría sus distintos modos de aprendizaje, lo que probablemente responde a dos modos psicológicos de gestionar la decepción. La izquierda aprende en ciclos largos, en los que una decepción le hunde durante un espacio de tiempo prolongado y no consigue recuperarse si no es a través de una cierta revisión doctrinal; la derecha tiene más incorporada la flexibilidad y es menos doctrinaria, más ecléctica, incorporando con mayor agilidad elementos de otras tradiciones políticas.

Por eso la izquierda sólo puede ganar si hay un clima en el que las ideas jueguen un papel importante y hay un alto nivel de exigencias que se dirijan a la política. Cuando estas cosas faltan, cuando no hay ideas en general y las aspiraciones de la ciudadanía en relación con la política son planas, la derecha es la preferida por los votantes.

La izquierda debería politizar, en el mejor sentido del término, frente a una derecha a la que no le interesa demasiado el tratamiento "político" de los temas. La derecha hoy exitosa en Europa es una derecha que promueve, indirecta o abiertamente, la despolitización y se mueve mejor con otros valores (eficacia, orden, flexibilidad, recurso al saber de los técnicos...). Lo que la izquierda debería hacer es luchar, a todos los niveles (frente al imperialismo del sistema financiero, contra los expertos que achican el espacio de lo que es democráticamente decidible, contra la frivolidad mediática...) para recuperar la centralidad de la política.

Hoy no es que haya una política de izquierdas y otra de derechas; el verdadero combate se libra actualmente en un campo de juego que está dividido entre aquellos que desean que el mundo tenga un formato político y aquellos a los que no les importaría que la política resultara insignificante, un anacronismo del que pudiéramos prescindir. Por eso la defensa de la política se ha convertido en la tarea fundamental de la izquierda; la derecha está cómodamente instalada en una política reducida a su mínima expresión, a la que le han reducido enormemente sus espacios el poder de los expertos, las constricciones de los mercados y el efectismo mediático. Para la izquierda, que el espacio público tenga calidad democrática es un asunto crucial, en el que se juega su propia supervivencia.

La idea de que la izquierda está por lo general menos movilizada se ha convertido en un tópico que a veces revela una concepción mecánica y paternalista (cuando no militar) de la política. Hay quien entiende la movilización como una especie de hooliganización, como si la ciudadanía fuera una hinchada, y, llegado el momento, propone suministrar la dosis oportuna de miedo o ilusión para que la clientela se comporte debidamente. Este automatismo no es la solución sino el síntoma del verdadero problema de una izquierda que se está acostumbrando a chapotear en una ciudadanía de baja intensidad.

Lo que la gente necesita no son impulsos mecánicos sino ideas que le ayuden a comprender el mundo en el que vive y proyectos en los que valga la pena comprometerse. Y la actual socialdemocracia europea no tiene ni ideas ni proyectos (o los tiene en una medida claramente insuficiente).

No quiero caer en un platonismo barato y exagerar el papel de las ideas en política, pero si la izquierda no se renueva en este plano seguirá sufriendo el peor de los males para quien pretende intervenir en la configuración del mundo: no saber de qué va, no entenderlo y limitarse a agitar o bien el desprecio por los enemigos o bien la buena conciencia sobre la superioridad de los propios valores.


Daniel Innerarity es profesor de Filosofía en la Universidad de Zaragoza. Acaba de publicar El futuro y sus enemigos. Una defensa de la esperanza política.

quinta-feira, julho 02, 2009

Criança fora da infância

Comentários Moisés Basílio: Quem é professor em escola pública vive essa situação cotidianamente. É aquele menino que te manda tomar naquele lugar... E é também aquele menino com olhar angelical... Os dois são teus alunos, os dois são crianças, mas os dois não fazem parte do mesmo mito da infância, que nós adultos usamos para classificar as crianças. E aí discriminamos, e acreditamos que estamos eticamente agindo com justiça. O artigo do Calligaris nos alerta para esse desafio da cidadania. Boa leitura. Axé!



Fonte: Jornal Folha de São Paulo - quinta-feira, 02 de julho de 2009.

CONTARDO CALLIGARIS


Amparamos as crianças, mas excluímos as que não têm como encenar um futuro feliz

A FOLHA de 24 de junho (caderno Cotidiano) relatou uma estranha decisão do Supremo Tribunal de Justiça.
Em Mato Grasso do Sul, em 2003, dois adultos, Zequinha Barbosa e Luiz Otávio F. da Anunciação, encontraram num ponto de ônibus, contrataram e levaram para um motel três moças que, na época, tinham 13, 14 e 15 anos. De uma delas, Anunciação tirou e armazenou fotos pornográficas.
Em 2004, em primeira instância, Barbosa e Anunciação foram condenados, respectivamente, a cinco e sete anos de reclusão. Recorreram e, no ano seguinte, foram absolvidos pelo Tribunal de Justiça. Barbosa alegou que não participou do sexo, e Anunciação que ele não sabia que as garotas eram menores de 18 anos.
Foi a vez da Procuradoria recorrer, e a coisa chegou ao Supremo Tribunal de Justiça, que decidiu assim: Anunciação é culpado por ter armazenado imagens pornográficas de uma menor, mas ele e Barbosa são absolvidos do crime de ter tido relações sexuais com menores. Por quê? Porque o Tribunal "considerou que não é crime manter relações sexuais com menores de 18 anos que sejam prostitutas". Ou seja, como não foram eles que "iniciaram" as meninas (ao sexo e à prostituição), eles não têm culpa.
Curiosa contradição: se não é crime transar com uma menor que já transou, não se entende por que seria crime tirar e armazenar fotos pornográficas da mesma menor. Afinal, vai ver que alguém já tirou uma foto dela no passado.
Mas isso é o de menos. Na linha de pensamento do STJ, também não haveria por que proibir o trabalho de crianças que já pediram esmola no farol -afinal, já trabalharam, não é? Da mesma forma, não seria crime estuprar uma mulher que já foi estuprada. E o que acontece com assaltar alguém que já foi assaltado? Ainda bem que, por sorte, não dá para matar alguém que já foi morto.
A decisão do STJ não é uma excentricidade. Ao contrário, ela é reveladora de uma verdade que está escondida atrás de nossa "proteção" da criança e do adolescente.
Nossa cultura decidiu separar as crianças dos adultos. Instituímos, por assim dizer, a infância como tempo da vida que deveria ser protegido tanto das necessidades (crianças não devem ganhar seu pão) quanto do desejo (chegamos a negar a sexualidade infantil).
Tudo isso, aos poucos, acabou amparando efetivamente as crianças, mas a intenção inicial não era, propriamente, a de lhes reservar um destino melhor. Tratava-se de responder a uma necessidade dos adultos: mais ou menos duzentos anos atrás, com a progressiva crise de nossa fé no além e na eternidade das almas, as crianças se tornaram oficialmente nossa grande (e talvez única) garantia de continuidade, se não de eternidade. Morremos, e as crianças têm a missão de dar seguimento à nossa vida. Claro, gostaríamos que nosso futuro fosse melhor que nosso presente, portanto queremos que as crianças encenem, para nosso contentamento, uma visão de paraíso que compense nosso purgatório ou inferno cotidianos.
Qual melhor consolação, para nós, cujas esperanças foram frustradas, do que a de contemplar nas crianças a felicidade que nos escapa? Somos infelizes e a vida é dura? Pois bem, faremos o que é preciso para que as crianças sejam (ou pareçam) felizes.
Em suma, amamos nas crianças apenas um sonho de nosso próprio futuro. E as crianças que não são "aptas" a encenar esse sonho não são propriamente crianças, pois o que definiria as crianças (as que queremos proteger) não seria sua idade, mas sua capacidade de encenar uma infância feliz.
Pois bem, a decisão do STJ é fiel a essa inspiração originária de nossa cultura: pouco importa que ela tenha 12, 13, 15 anos ou menos, uma menor que se vende num ponto de ônibus já não tem mais como encenar para nós a vinheta da infância feliz. Portanto, ela não é mais "criança". Transar com ela não é mais transar com uma criança, não é?
Essa lógica, aliás, vale para todas as crianças que, por uma razão ou outra, não podem mais (se é que um dia puderam) encenar o cartão postal sorridente que chamamos infância -por exemplo, as que encontramos nas esquinas ou dormindo debaixo das marquises de nossas ruas.
Em suma, o STJ decidiu como se quisesse proteger não as crianças (como manda a letra da lei), mas o mito da infância. A Procuradoria recorrerá. Veremos como decidirá o Supremo Tribunal Federal.