sexta-feira, outubro 27, 2006

Mês da Consciência Negra

UM POEMA À IGUALDADE

God save you, Mãe inglesa
Cujo ventre abençoado
Vem, no momento aprazado
Por as cartas sobre a mesa
Ou, dando ainda mais clareza,
Depor na mesa do parto
O exemplo, nu, cru e farto
De que a cor da pele humana
Vale apenas quando irmana
Na paz, na copa ou no quarto.


sexta-feira, outubro 20, 2006

ENTREVISTA - WANDERLEY GUILHERME DOS SANTOS

Observação: Esta entrevista toca em pontos importantes da Reforma Política e qualifica o debate. Moisés Basílio.

Fortalecimento da democracia não depende da Reforma Política

O cientista político relembra as as raízes históricas do sistema eleitoral e partidário brasileiro, desengana os entusiastas da Reforma Política e ainda desbanca a tese de crise de governabilidade. Para ele, urgente é a Reforma do Estado.

Maurício Hashizume - Carta Maior - 19/10/2006

BRASÍLIA – Ai de quem, nos dias de hoje, se atreva a questionar a pomposa comenda de “mãe de todas as reformas” que vem sendo atribuída à Reforma Política. Virou quase um consenso nacional. Veredicto definitivo de aura auto-explicativa. Analistas, políticos das mais variadas filiações partidárias e curiosos replicam solidariamente esse conceito “de uma nota só”, seja em conversas de botequim ou em discussões filosóficas sobre possíveis e palpáveis providências em decorrência da crise política.

Discursos únicos, por mais oportunos que sejam, não são capazes de anestesiar o raciocínio agudo, organizador e provocativo do cientista político Wanderley Guilherme dos Santos, coordenador do Laboratório de Estudos Experimentais (Leex) da Universidade Candido Mendes (Ucam), no Rio de Janeiro.

Em entrevista exclusiva à Carta Maior, Santos não deixa pedra sobre pedra. Retoma as raízes históricas das mudanças no sistema eleitoral e partidário brasileiro, desengana os entusiastas da Reforma Política edulcoradas como panacéia e ainda desbanca a tese de crise de governabilidade. De quebra, delineia uma agenda prioritária de Reforma do Estado para enfrentar os verdadeiros problemas do País.

O intelectual recebeu a reportagem em sua sala acomodada num dos prédios da Praça Pio X, ao lado da Igreja da Candelária, no final de agosto último. As explicações, provocações e sugestões de Wanderley Guilherme dos Santos estavam sendo guardadas como jóia e encerram o ciclo especial de matérias sobre Reforma Política (veja relação de todos os textos publicados ao final da entrevista). Confira:

Carta Maior – A Reforma Política ganhou tamanha projeção no Brasil que comumente vem sendo associada a outros dois desafios: o combate à corrupção e o desenvolvimento socioeconômico. Qual é a relação concreta que se pode estabelecer entre o conjunto de mudanças no sistema eleitoral e partidário que está sendo proposto e essas duas outras questões?
Wanderley Guilherme dos Santos – As provas, as evidências e os argumentos comprovando que não existe relação sistemática entre tipos de sistema político-eleitoral e nível de corrupção ou desempenho de desenvolvimento é dado pela História. Grande parte dos analistas sabe disso. De modo que é por isso que eu até atribuo – o que não costumo fazer – motivações que não tem a ver com o problema institucional ou acadêmico. Porque são fatos banais, triviais, conhecidos pela academia internacional, que a corrupção existe em qualquer tipo de governo. Não tem a ver com o sistema eleitoral. Há corrupção nos Estados Unidos onde há voto distrital puro. Na Alemanha, há primeiros-ministros sendo denunciados com o voto distrital misto. Há corrupção em países com sistema proporcional como no Brasil. Há corrupção em sistemas parlamentaristas, presidencialistas, autoritários, em qualquer tipo de sistema.

Desenvolvimento econômico também não está sistematicamente associado a nenhum sistema eleitoral ou forma de organização de governo. Se não, nós seríamos obrigados a propor um sistema como o da China, que vem dando show em matéria de crescimento econômico – com uma das mais altas de crescimento da História. Não tem nada a ver. Sem falar na nossa experiência não muito antiga, do período “delfinista” [do ex-ministro Delfim Netto], em que nós também tivemos taxas de crescimento altíssimas durante o regime autoritário. Olhando no longo prazo, a experiência de todos os países a partir da Revolução Industrial – portanto, o período moderno do crescimento econômico – e também a partir do momento em que começa a democratização do voto – isto é, ampliação do eleitorado pela redução e queda das barreiras que impediam a participação –, o que nós temos, como evidência, é o contrário: quanto mais nós temos eleições e sistemas políticos e eleitorais organizados de maneiras diferentes e mais eventos e fenômenos históricos se repetindo, mais fica comprovado que não existe relação sistemática entre essas coisas. Esses fatos são banais, não é segredo de nenhuma investigação de pós-doutorado que eu fiz. É absolutamente trivial. Há mais de dez anos que eu repito isso mesmo que eu estou dizendo. Só não uso exatamente as mesmas evidências porque cada vez tenho mais.

As mesmas pessoas continuam a divulgar as mesmas falsas informações. Então eu chego a conclusão de que não se trata de um problema de persuasão democrática, de falta de debate, de controvérsia, de força de argumentos ou de evidências. Não se trata disso. Então é um debate inútil do ponto de vista acadêmico. Trata-se de mobilizações de forças políticas. É pura cobertura. Não está aí a questão.

CM – Quais seriam então as questões em jogo nas mudanças do sistema eleitoral e político que ainda dependem do confronto de idéias?
WGS – O problema consiste na tentativa de alteração do nosso sistema proporcional. O sistema proporcional teve origem, historicamente, foi resultado de uma estratégia mal-sucedida dos conservadores, mas que fazia sentido à época. Na medida em que houve a democratização do voto e aumentava o número de pessoas qualificadas para votar, e conseqüentemente aumentava o número de trabalhadores dentro no eleitorado – até porque as coisas estavam mais ou menos vindo juntas, com o aumento da população urbana e do operariado industrial –, havia uma perspectiva comum, tanto aos social-democratas, aos socialistas e aos conservadores, de que, com o desaparecimento dessa barreira, a maioria do eleitorado passaria a ser formada por trabalhadores e isso subverteria o sistema. Essa era a estratégia do socialismo revisionista, a de que havia possibilidade de se chegar ao socialismo por via parlamentar. Os conservadores também tinham a mesma opinião e achavam, portanto, que seriam destruídos. O que eles fizeram então? Propuseram a substituição do sistema de maioria - no qual quem tinha a maioria simples levava tudo - por um sistema proporcional, para que as minorias não fossem massacradas pela maioria. Foi uma proposta conservadora, daqueles que estavam com medo de serem liquidados.

Eles ainda tinham a maioria, mas implantaram o sistema proporcional, garantindo o seu próprio futuro. E não aconteceu nada disso. Inclusive o eleitorado, ao longo dos anos, se revelou extremamente conservador. O que acontece é que depois de um primeiro momento de expansão do eleitorado - que apareceu com feições conservadoras -, ainda não havia democracia de massa. Não havia um grau de urbanização, uma quantidade de trabalhadores e de participantes tão grande assim. Era uma democracia grande comparada com o sistema oligárquico anterior, mas não era uma democracia de massa e, portanto, permaneceu sendo conservadora.

Depois da criação dos partidos social-democratas, das crises do capitalismo e de vários eventos, quando efetivamente desaparecem as principais barreiras (ao voto), sobretudo ao fim da II Guerra Mundial, começam efetivamente as democracias eleitorais de massa. Até então pouquíssimos países tinham voto universal. As experiências de funcionamento das democracias eleitorais de massa são muito recentes.

Na verdade, não existe ainda campo histórico sedimentado para se saber das regularidades porque se trata de uma coisa assustadora. É uma coisa inédita na história. Nunca houve isso. É uma maluquice, entende? Todo mundo poder votar, milhões de pessoas. No Brasil, são 120 milhões que vão a cada dois anos votar. Sem falar no eleitorado indiano, paquistanês - que é parecido com o brasileiro -, o japonês, o americano, quando votam. Isso tem trazido, para a classe política e para os analistas, fenômenos absolutamente novos na História. Não adianta ir buscar Maquiavel, porque ele escreveu sobre um sistema vagabundinho e fechado, muito pequenininho, em que a competição era entre em poucas pessoas. Nada do que Maquiavel disse faz sentido. Todo mundo cita porque é bonito na retórica. Mas tudo que ele escreveu e valia naquele tipo de sistema não tem nada a ver com a atual ordem democrática. Então é uma coisa nova em relação a qual nós estamos aprendendo.

Os chamados políticos fisiológicos, que prestam serviços em troca de votos, estão nos ensinando. Isso não é uma forma que surge apenas porque eles são imorais. Esta é a forma que a democracia de massa, na ausência de um poder público eficiente, coloca como oportunidade de ser eleito. Eles estão ensinando coisas. É preciso saber por que eles estão fazendo isso e por que estão sendo levados a fazer essa escolha. Não é só porque ele tinha outra forma melhor de ser eleito – com propostas em vez da prestação de serviços – e escolheu isso porque é um corrupto do ponto de vista moral. Não existe isso. É claro que existem pessoas que podem se encaixar nessa categoria, mas isso acontece no mundo inteiro. No mundo inteiro é assim.

CM - Fala-se muito dos avanços que poderiam ser obtidos com o voto distrital no que diz respeito ao vínculo dos eleitores com os eleitos. O que o senhor acha disso? Em que medida os partidos seriam fortalecidos com a adoção da lista fechada (pré-estabelecida pelos partidos) e da cláusula de barreira (que determinou critérios de desempenho para a segregação de partidos sem grande acúmulo de votos)?
WGS - O tal do representante distrital nos Estados Unidos não faz outra coisa que não seja trocar voto por serviço. É o mais fisiológico de todos porque não tem saída. A forma mais fisiológica que existe é aquela baseada no voto distrital puro, na qual o cidadão ou presta serviço pelos votos ou não se elege. Aí ele é o representante mais antidemocrata. Ele não tem liberdade de representação. É, na verdade, um "pau mandado". Há uma parte da representação que implica em representar o seu eleitorado, mas há uma parte em que ele é eleito para educar. Para ser pedagogo do seu eleitorado. Faz parte da concepção democrática. Essa parte, eles (representantes distritais puros) não têm e não estão nem aí.

Então essa democracia de massa, que é uma coisa inédita, está ensinando coisas novas. E de novo aparece a enorme ameaça para os conservadores da invasão dessa massa tanto quanto candidatos – pessoas esquisitas, com nomes estranhos – quanto como eleitores. Deixou de ser um jogo entre famílias e de pessoas conhecidos. Isso traz muita ameaça aos tradicionais participantes da política.

O que você tem aí é uma tentativa de reduzir a imprevisibilidade da política que é a essência da competição democrática. Com o voto em lista, você já sabe quem será eleito. Foi o partido que colocou lá. Com o voto distrital puro, é fulano, beltrano ou sicrano, dos maiores partidos que vão concorrer. Isso não está certo porque não corresponde à dispersão de opiniões no eleitorado e nem da dispersão de oportunidades que o eleitorado tem que ter para escolher seus candidatos. Essa é uma reação típica dos conservadores, só que agora ao reverso. Em vez de propor o proporcional com medo de se garantir, eles propõem o distrital para barrar a entrada de “estranhos”.

A cláusula de barreira, por exemplo, vem claramente nesse sentido. Se você examinar os dados que já existem, a existência de partidos não traz rigorosamente nenhum defeito para o funcionamento da democracia. Inclusive a taxa de desperdício de votos destinados a esses partidecos que estão aí é ridícula, pouco mais de 1%. Nem como desperdício do voto do eleitor isso se sustenta. É curioso porque não traz prejuízo a ninguém. Na verdade, quando se coloca o problema do número de partidos, não se está pensando nesses partidecos, está se pensando em tirar o PSB e o PCdoB, por exemplo. São partidos médios consolidados, que têm realmente políticas próprias, histórias. São esses que eles estão visando e não os partidecos, com pessoas exóticos. Eles dão esses exemplos para justificar, mas eles não têm a menor relevância. É a estratégia contemporânea do conservadorismo numa subversão histórica da estratégia inicial.

CM – Mas existem outras mudanças sugeridas nessa mesma leva como, por exemplo, o fim das coligações proporcionais e as medidas referentes à fidelidade partidária?
WGS – Há muita coisa que pode ser definitivamente melhorada desde que a sua intenção seja melhorar e não mudar o sistema. O que você tem em uma coligação eleitoral, por exemplo, que não é justa em relação à manifestação do eleitor? Você vota em um candidato e acaba elegendo outro. Mas há a possibilidade de sanar esse problema. Como? A coligação elege um número hipotético de deputados em função do quociente eleitoral. Elegeu dez, por exemplo. Não é impossível fazer uma discriminação dos votos recebidos pelos candidatos das diversas legendas e ver a proporção que cada um dos partidos recebeu dentro do total de votos da coligação. Vamos supor que seja 40% para X, 30% para Y e 30% para Z. Seriam quatro deputados de X, três de Y e três de Z. É possível fazer essa modificação. Os partidos elegeriam em função da proporção de votos que receberam. Acaba esse negócio de votar em um e eleger outro. É possível eleger outro do mesmo partido, mas aí é outra coisa. Essa coisa esdrúxula seria reduzida. Pronto.

Sobre coligações no Parlamento, por exemplo. É sabido que em sistemas multipartidários, exceto em sistemas parlamentaristas, as coligações eleitorais não são necessariamente as coligações parlamentares. E não precisa nem ser sistema proporcional. Num sistema como o dos Estados Unidos, que é distrital puro, as coligações que dão suporte às administrações democratas são os democratas do Norte com os republicanos do Sul. Os democratas do Sul são contra os democratas do Norte, por razões locais. Como nós temos gente do PSDB e do PFL, por exemplo, que se enfrentam por razões locais. Esse fenômeno da coligação parlamentar para a sustentação de um governo é diferente da coligação eleitoral. Podemos melhorar? Claro, desde que se disponha a manter o sistema e melhorá-lo. E vem melhorando muito, por exemplo, em relação às medidas provisórias e à feitura do orçamento. O Parlamento e o Executivo vêm melhorando. Só que isso não aparece. Como se o sistema brasileiro fosse imutável e só produzisse bobagem.

O problema da fidelidade partidária tem dois aspectos. Um é sobre o comportamento dos membros de um partido nas votações dentro do Congresso. Quanto a isso, não há muita discussão, não. Eles normalmente seguem a orientação. O problema está na transferência de legenda. Isso merece um estudo. Não é uma coisa saudável, mas deve haver alguma razão que não seja o mau-caratismo dos políticos. Pode até ter de alguns, mas, por alguma razão, o sistema está condicionando esse tipo de decisão. Vamos ver o que é e o que se pode fazer. Não há estudo sobre isso, a não ser quantitativo. Fulano mudou 50 vezes? Mas por quê? Eles também não devem gostar de estar a cada momento em um partido. O que está acontecendo que a política brasileira está contaminada bastante fortemente por isso? É legal, podemos deixar? Não, mas é preciso saber por que isso acontece e o que se pode fazer.

CM – Foi cunhado até um termo específico chamado "presidencialismo de coalizão" para caracterizar a relação crítica existente entre os Poderes Executivo e Legislativo no Brasil. Há como melhorar a questão da governabilidade?
WGS - Do ponto de vista mais duro, que significa risco de paralisia, não existe problema de governabilidade no Brasil. O País tem passado por coisas inacreditáveis - desde os "anões" do orçamento, passando pelo impeachment [do ex-presidente Fernando Collor]. Há mais de um ano, convive-se com escândalo atrás de escândalo e não existe esse problema. Dá um trabalho desgraçado para os políticos, mas, se não quiserem, mudem de profissão. Se não estiverem gostando, parem de se candidatar e façam outra coisa. Não são escravos.

O sentido fraco de governabilidade é que governar implica em elevados custos de transação. Muita barganha. Isso existe. Aqui é que entra a estratégia e a virtude de Maquiavel. Depende muito de quem está conduzindo o processo. Esse tipo de questão, de como formar a maioria nem sempre é dada pela coligação eleitoral. Isso não existe só no presidencialismo de coalizão, existe também no parlamentarismo de coalizão; é um problema dos sistemas multipartidários. Quando a coligação eleitoral não cria a maioria necessária, o governo eleito é obrigado a agregar alguns dos outros que não participaram da sua eleição para poder governar. Isso é uma questão permanente de sistemas multipartidários, que também tem as suas vantagens. Significa que aquela coligação não representa todo mundo e que vai precisar ouvir a opinião dos outros. Qual é o problema? Essa é uma concepção democrática.

Isso não surgiria se o governo conseguisse, com a sua coligação eleitoral, conquistar uma maioria absoluta no Congresso. Mas essa maioria acontece raramente, em qualquer país. São raras as eleições, em sistemas multipartidários e mesmo em sistemas de voto distrital, em que os eleitores dão a maioria àqueles que vencem as eleições. Portanto, para governar, é preciso fazer uma reorganização.

Aí entra a virtú, de Maquiavel: a capacidade, a inteligência e a maleabilidade dos líderes. Juscelino [Kubitschek, foi presidente de 1956 a 1961] foi quem melhor fez isso na história republicana. Brilhantemente. Ele fez tudo isso antes de assumir. Negociou com a UDN, que só fez oposição a Juscelino naquilo que estava fora do acordo. Ele disse o seguinte: 'O meu governo é o Plano de Metas, eu ganhei as eleições e preciso governar. Preciso dos instrumentos para realizar o Plano de Metas'. A UDN respondeu: 'Até aí tudo bem. Fora daí, nada'. Na época, com uma moeda instável, os orçamentos precisavam a cada seis meses de créditos suplementares. E a UDN votou todos. Fora do Plano de Metas, a UDN pintava o diabo de Juscelino.

O que me parece que aconteceu, para voltar ao tempo contemporâneo, foi um exemplo oposto. Eu acho que o governo Lula não conduziu bem exatamente essa parte. Em vários episódios. Não conduziu bem o episódio em relação ao PMDB, com uma posição metida a purista de fachada. Não obstante, acabou fazendo alianças com PL, PP, etc. - partidos piores e irresponsáveis. E o PMDB não é um partido irresponsável. [O governo Lula] Cometeu outro equívoco sério na sucessão da presidência da Câmara, apoiando a ambição irracional do João Paulo Cunha [de se reeleger como presidente da Casa], quebrando uma rotina, tentando fazer aquilo de forma autoritária, e aquilo acabou por desorganizar a base parlamentar do governo. Ficou à deriva e muito vulnerável à oposição.

CM – Qual agenda o senhor propõe, então, para o fortalecimento da democracia no País?
WGS – Várias coisas, mas eu quero insistir em duas. Em primeiro lugar, é preciso que haja um processo de federalização real da República brasileira. Isso tem sido feito, mas muito lentamente. O poder é muito concentrado. Essa é uma das razões, aliás, pelas quais há tanta política fisiológica. É preciso ter um deputado para conseguir dinheiro para qualquer coisinha nas localidades. A implantação de uma Federação real levará muito tempo. Não é uma coisa de um governo. É necessário que medidas sejam tomadas de forma gradual até para aferir pouco a pouco os resultados de cada uma delas. É indispensável. Mas não se pode ter um poder tão concentrado na União porque ele será ineficiente. Ele não pode dar conta de todas as demandas que recebe. Não tem aparelho para isso e nem deve ter. Não tem informação suficiente e nem precisa ter. Não é diminuir o Estado, não. O Estado brasileiro é muito pequeno, tem até que aumentar. Mas é preciso diminuir a centralização. Não há Estado eficiente dessa maneira.

A outra [agenda] é a constitucionalização do País. O que houve no Brasil foi uma incorporação política e econômica com uma velocidade extraordinária. Há 20, 30 anos, o Norte e o Centro-Oeste faziam parte do mapa brasileiro, mas não faziam parte, de fato, nem do mapa econômico e nem do político. Era a parte periférica. Essas regiões foram incorporadas e nós demos um salto em termos de eleitorado, de urbanização, etc. O Brasil está acabando de se invadir. E esse processo muito rápido não foi acompanhado do enraizamento dos direitos constitucionais. A Constituição não vale a mesma coisa em todos os quadrantes do País. Nós temos um vastíssimo 'estado da natureza hobbesiana' [referência ao filósofo inglês Thomas Hobbes, autor de O Leviatã] nas fronteiras do Estado civilizado. E dentro do Estado civilizado nós temos também, com o crime organizado. É a decadência do Estado brasileiro, que é a face negativa da sua democratização e do seu crescimento aceleradíssimos. O Estado brasileiro não foi preparado para administrar uma sociedade democrática. É um Estado oligárquico preparado para administrar para pouca gente. Para o resto da população é porrada, polícia. Agora somos 180 milhões. O Estado brasileiro não tem condições de garantir as vigências dos preceitos constitucionais no território brasileiro. Tornar cada brasileiro detentor de direitos, esteja onde ele estiver, é crucial, fundamental, e tem a ver com a Reforma do Estado.

O impedimento [dessa agenda], como é histórico, está ligado aos interesses econômicos ilegítimos presentes nessas fronteiras como ocorreu na Inglaterra, nos Estados Unidos. Em todas as áreas de fronteira, houve todo um processo até que as leis chegassem até lá. A inexistência da lei permite que o poder da riqueza esteja associado ao poder político. Não interessa que chegue a Constituição nas minas de Rondônia, no interior do Centro-Oeste. Não interessa. A democracia dissocia poder político, poder econômico e poder social. Exceto por mérito, mas não automaticamente. E quando não há Estado, essa acumulação é automática. Há um vastíssimo 'estado da natureza' no Brasil cercando o Brasil civilizado que está sendo comido por dentro porque continua como um Estado oligárquico.