sábado, junho 30, 2007

EU VISTO ESTA CAMISA

Comentário Moisés Basílio: Esse mundo globalizado não trouxe só desgraças. A difusão da tecnologia tem possibilitado ampliar os registros culturais. Esse CD da Velha Guarda do Camisa é um exemplo. O texto do mestre Nei Lopes é elucidador da importância desse registro, pois como diz o próprio Nei: "acima do mercado, paira o samba enquanto gênero musical e forma de sociabilidade". Axé!

Fonte: Site Meu Lote - Nei Lopes - www.neilopes.blogger.com.br - Quinta-feira, Junho 28, 2007



Texto: Nei Lopes

Não vou dizer que São Paulo é o “berço”, porque o samba, como é conhecido hoje, formatou-se no Rio, no longo eixo Praça Onze-Estácio-Osvaldo Cruz, depois de ocorrer sincronicamente em vários pontos do país, inclusive em terras paulistanas, desde pelo menos o século 19. Mas digo veementemente que o preconceito de uma certa intelectualidade litorânea carioca contra o samba paulista sempre foi uma rematada besteira. Que o digam, por exemplo, Jangada, Talismã, Sílvio Modesto, Murilão e os primeiros Originais do Samba, grandes artistas cariocas que acolheram e foram acolhidos pelo samba de São Paulo há muito tempo. Que se evoquem, também, a cumplicidade entre Padeirinho da Mangueira e Germano Matias; e a afinidade histórica entre o Largo da Banana e a Praça Onze – só para citar dois ou três exemplos.

Diferenças, se houve e há, estão nas escolas de samba. Que, no Rio, deixaram há quase 30 anos, de ser expressão do poder e da cultura das comunidades negras, para serem a milionária atração turística que hoje são. E que em São Paulo, em sua maioria, ainda fitam, cautelosas, a bifurcação do caminho.

Mas acima do mercado paira o samba, enquanto gênero musical e forma de sociabilidade. E isso fica evidente no recém-lançado CD “Canto para Viver”, belo e comovente registro, em sua qualidade musical e sua hostoricidade – o talento e o companheirismo de compositores e intérpretes da Velha Guarda da Camisa Verde e Branco realçado por músicos exponenciais e amigos como Edmilson Capeluppi, Luizinho Sete Cordas e a “família” Quinteto em Branco e Preto – cumprindo a função de mostrar que samba é samba e escola é escola.

Isso, eu digo na condição de membro da “Irmandade dos Carmelitas Descalços”, irmão pobre que sou do produtor Carmo Lima. E de sambista que veste com orgulho a “Camisa” recebida nos anos 90, juntamente com o parceiro Wilson Moreira, como membro honorário da ala de compositores da querida verde e branco da Barra Funda.

(foto: Andréa de Valentim)

terça-feira, junho 19, 2007

ANEMIA FALCIFORME - NOVO REMÉDIO

Comentário Moisés Basílio: Na semana passada coloquei nesse blog, um série de artigos sobre anemia falciforme, publicados pelo Encontro Mineiro que trata dessa luta dos afrodescendentes brasileiros. Coisas ligadas a remédios sempre é duvidosa, na minha opinião, mas pela credibilidade do site do IBASE, publico a notícia abaixo. Se tiver maiores informações publicarei. Axé!

Fonte: Portal do IBASE - www.ibase.br/modules.php?name=Conteudo&pid=420
Combate à anemia falciforme
15.6.2007

Durante conferência de imprensa realizada na Associação de Apoio aos Doentes de Anemia Falciforme, em Luanda, Angola, o médico beninense Jérôme Fagla Médégan apresentou o medicamento “VK 500”, responsável por auxiliar o tratamento da doença anemia falciforme.

O medicamento foi reconhecido em 2005 pelo Instituto Francês de Propriedade Industrial, tornando-se uma grande conquista para o continente africano. Após 25 anos de pesquisa, Jérôme Médégan garante que o medicamento não possui efeitos colaterais por ser feito, essencialmente, à base de uma planta. Se for consumido regularmente, combate os principais sintomas da doença, como crises e dores no organismo.

Durante a conferência, o médico solicitou a contribuição dos principais chefes de Estado africanos, pois o medicamento será produzido a preços elevados para a maioria do povo africano: cerca de U$ 35 dólares mais as taxas alfandegárias. A anemia falciforme altera os glóbulos vermelhos, o que pode causar o entupimento dos vasos sanguíneos. O VK 500 abre os canais de circulação sanguíneos (veias e capilares) obstruídos, podendo prolongar a vida de portadores(as) da doença.

sábado, junho 16, 2007

Margarida Maria Alves

Comentário Moisés Basílio: "Quem sabe mais, luta melhor". É um frase do meu grande amigo Humberto Bodra, já falecido, que muito me motivou nas trilhas do conhecimento. A notícia do julgamento dos assassinos de Margarida Alves me traz de volta a memória da Margarida e das nossas lutas. Em 13 de agosto de 1983, estávamos a dias da fundação da CUT, que aconteceria em 28 de agosto de 1983. Quanto tempo, quantas lutas... Margarida virou um mito da luta popular. Aqui no distrito do Sapopemba, no bairro da Fazenda da Juta, há um rua com seu nome. Mas a luta continua, seja na punição dos assassinos de Margaridas, seja nos sonhos que Margarida sempre acalentou. Nunca me senti bem com uma letra de uma música do Geraldo Vandré que era mais ou menos assim: "Se alguém tem que morrer, que seja para melhorar". Nunca quero a morte de ninguém, mas o verso de Vandré se casa com Margarida. Sua morte melhorou muito o Brasil. Quem viveu as lutas populares dos anos 80 sabe a importância que teve essa Mulher. Axé Margarida!



Trabalhadora rural, rendeira, presidente do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Alagoa Grande, Paraíba.

Foi assassinada por um jagunço a mando de latifundiários da região, no dia 13 de agosto de 1983.

Destacou-se pela defesa dos direitos do trabalhador sem terra, pelo registro em carteira, pela jornada de 8 horas, pelo 13° salário, férias, entre outros direitos.

Raimundo Francisco de Lima, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de São Pedro, Rio Grande do Norte, assim se expressou para homenagear Margarida:

No dia doze de agosto

do ano de oitenta e três

parece que a natureza

descuidou-se ou não sei

fazendo com que Margarida

víssemos pela última vez.

Margarida porque tinha

trabalho de consciência

saiu deixando um trabalho

por outro mais de urgência

sem saber que os patrões

usariam da violência.

Estando na sua casa

conversando com o marido

foi visto por um vizinho

quando chegou um bandido

chegando deixar seu corpo

sem vida no chão caído.

Seu Casimiro que estava

nesta mesma ocasião

sentado em uma cadeira

olhando a televisão

foi escutando um disparo

e vendo a esposa no chão.

O Rio Grande do Norte

e Pernambuco também

o povo da Paraíba

de Itambé e Belém

sentiram este drama triste

por tanto lhe querer bem.

Chora toda a Paraíba

que conhecia a mulher

por ser muito combativa

e mantinha a classe em pé

a morte de Margarida

para o povo é taça de fé.

Com ela são trinta e dois

já vítimas de violência

queremos que a justiça

use de mais consciência

tomando de imediato

as devidas providências.

Justiça por caridade

descubra este bandido

se apelarmos pra Deus

faz o que Ele é servido

para que vocês esperem

porque quem com ferro fere

com ferro será ferido.

CUT - Imprensa 17/05/2002

Margarida Alves

Novo julgamento

O latifundiário e médico José Buarque de Gusmão Neto, um dos acusados de ordenar o assassinato da líder rural Margarida Maria Alves vai a novo julgamento no dia 28 de maio. Zito Buarque, havia sido absolvido ano passado, mas a Justiça considerou que o resultado do julgamento era incompatível com as provas incluídas no processo. O crime ocorreu há 19 anos, na Paraíba, e até hoje nenhum dos assassinos foi punido.

CUT - Imprensa - 27/05/02

Julgamento suspenso

O julgamento de um dos acusados de ordenar o assassinato da agricultora Margarida Maria Alves, que estava marcado para hoje, dia 28, está suspenso. O réu, José Buarque de Gusmão Neto, conhecido por Zito Buarque, latifundiário e médico, obteve liminar junto ao Superior Tribunal de Justiça (STJ). O ministro Gilson Dipp suspendeu o julgamento até a análise do mérito do pedido de habeas corpus. O crime ocorreu há 19 anos, na Paraíba, e até hoje nenhum dos assassinos foi punido. A Associação Nacional das Mulheres Trabalhadoras Rurais (ANMTR) encaminhou fax ao ministro da Justiça exigindo que o julgamento seja remarcado.

sexta-feira, junho 15, 2007

ENCONTRO MINEIRO DOENÇA FALCIFORME

Comentário Moisés Basílio: A doença falciforme é prevaleceste nas populações afrodescendente. Dado ao descaso, gerado pelo componente racial das políticas públicas no Brasil, esse tema nem sempre tem tido o destaque que merece, visto que mais de 50% de nossa população é composta de descendentes de africanos. Nesse sentido, o Encontro Mineiro, aponta um caminho que deve ser seguido por outros Estados da federação. Axé!

Fonte: Blog Território Livre - http://maralanez.spaces.live.com/
Participantes do Encontro Mineiro e Fórum Nacional de Políticas Integradas de Atenção às Pessoas com Doença Falciforme, que foi realizado na semana passada em Belo Horizonte, divulgaram uma carta aberta ao ministro da saúde, José Gomes Temporão, na qual solicitam, urgentemente, a regulamentação da Política Nacional de Atenção às Pessoas com Doença Falciforme.

O documento, que será encaminhado ao ministro da saúde, foi assinado por pacientes com doença falciforme, familiares, associações de usuários, profissionais de saúde e gestores, entre outros participantes do Encontro, que reuniu aproximadamente 800 pessoas de várias regiões do Brasil.

A carta ao ministro solicita o cumprimento da portaria 1391, de 18 de agosto de 2005, que determina a regulamentação da Política Nacional de Atenção às Pessoas com Doença Falciforme e institui, no âmbito do Sistema Único de Saúde, as diretrizes para a atenção integral aos pacientes com doença falciforme.

Outra reivindicação dos participantes do evento é a implantação da Política Nacional de Saúde da População Negra, “como resgate do direito à saúde desta parcela significativa da nossa população”.

Belo Horizonte, 08 de Junho de 2007.

Ao Exmº Sr. Ministro da Saúde
José Temporão


Nós, pessoas com doenças falciformes, familiares, Associações de usuários, profissionais de saúde e gestores, participantes do Encontro Mineiro e Fórum Nacional de Políticas Integradas de Atenção às Pessoas com Doença Falciforme, realizado durante o período de 06 a 09 de Junho de 2007, em Belo Horizonte, Minas Gerais, vimos através desta, solicitar urgentemente a regulamentação da Política Nacional de Atenção às Pessoas com Doença Falciforme, como determina a Portaria n.1.391 de 18 de agosto de 2005, que institui no âmbito do Sistema Único de Saúde, as diretrizes para o atendimento digno às pessoas com Doenças Falciformes.
Salientamos o anseio desta Política e afirmar sua implementação como condizente com as proposições da 12ª Conferência Nacional de Saúde.
Reafirmamos também a necessidade da implantação da Política Nacional de Saúde da População Negra, como resgate do direito à saúde desta parcela significativa da nossa população. Numa efetiva Política de Saúde e Direito á Vida.

Lista de Apresentações (formato pdf) das palestras realizada durante o encontro podem ser acessadas dando um clique nos links a seguir ou no site do encontro - http://www.cehmob.org.br/encontro/apresentacao.htm

CEHMOB-MG - Centro de Educação e Apoio para Hemoglobinopatias: resultados e perspectivas de uma experiência em atenção integral
José Nelio Januario - Médico

Diretor Nupad/FM/UFMG
Coordenador técnico do CEHMOB-MG


O Pacto de Gestão e a organização dos serviços para doença falciforme em Minas Gerais: o que temos, o que falta
Marta Alice Venâncio Romanini - Médica

Coordenadora de Assistência à Saúde da Mulher, Criança e Adolescente – SES


A doença falciforme e o serviço em região de alta prevalência: a experiência do município de Januária (norte de Minas Gerais)
Patrícia Maria Fernandes Brant - Pediatra

Hospital Municipal de Januária - MG


Os hemocentros, a atenção básica e o município: como integrar?
Junia Guimarães Mourão Cioffi - Hematologista

Diretora técnico-científico da Fundação Hemominas - MG

Seqüestro esplênico / infecção: hospitalização?
Mitiko Murao - Hematologista

Fundação Hemominas - MG

Coordenação técnica do CEHMOB-MG


Dor: reflexões dirigidas ao cuidado pela equipe multiprofissional
Cecília Maria Izidoro Pinto - Enfermeira

Escola de Enfermagem Anna Nery da Universidade Federal do Rio de Janeiro - RJ

A enfermagem nos primeiros cuidados de urgência
Carmem Cunha Mello Rodrigues - Enfermeira

Coordenadora dos Programas de Abrangência da Hematologia do Centro Infantil Boldrini - Campinas - SP



Traço falciforme: medindo seu impacto em saúde pública
Clarisse Lobo - Hematologista

Hemocentro Coordenador do Estado do Rio de Janeiro - Hemorio - RJ

Doença falciforme: progressos e novas opções no
tratamento
Marcos Borato Viana - Hematologista - Dpto. de Pediatria FM/UFMG - NUPAD

Coordenador de Pesquisa - CEHMOB-MG


Saúde da população negra e doença falciforme: uma questão de eqüidade
Maria Inês Barbosa

Coordenadora do Programa Regional de Combate à Pobreza - UNIFEM


A doença falciforme no contexto de um modelo pedagógico
Paulo Ivo Cortez de Araújo - Hematologista pediátrico

Coordenador do Programa de Atenção Integral às Pessoas
com Doença Falciforme do Estado do Rio de Janeiro


O cotidiano da pessoa com doença falciforme na escola: relatos de casos
Ilka Maria do Carmo - Advogada, especialista
em Direitos Humanos

Instituto Afro Brasil Cidadão


Garantia dos direitos de Assistência Social: relato de casos e a experiência do assistente social
Valéria de Abreu e Silva - Assistente Social

Fundação - Hemominas - MG

Supervisora técnica - CEHMOB-MG

Política de Assistência Social e Previdenciária para as pessoas com doença falciforme
Paulo Rogério Albuquerque de Oliveira

Ministério da Previdência Social

Perfil sócioeconômico das pessoas com doença falciforme
Altair Lira

Presidente da Federação Nacional das Associações de Doença
Falciforme - FENAFAL

quarta-feira, junho 13, 2007

ÁFRICA: FACETAS DE UM CONTINENTE ESQUECIDO

Comentário Moisés (enviado ao jornal):

Libéria, facetas de um país esquecido - Excelente a matéria de capa do caderno Aliás, do domingo, 10/06/07. Um senão para o título de chamada de capa, que destaca: "África: facetas de um continente esquecido". Por que? Se o assunto em pauta não é sobre o continente e sim sobre um dos mais de 50 paises, a Libéria. Por que generalizar, no título o todo (continente), quando o assunto é a parte (o país Libéria)? Continente por continente, todos têm suas facetas esquecidas. Se me manifesto, não é por preciosismo, mas porque sempre a grande mídia insiste em associar o continente africano com uma imagem negativa. Axé!

Resposta da editoria do jornal:

De: Laura Greenhalgh
Enviada em: terça-feira, 12 de junho de 2007 19:22
Para: Forum dos Leitores
Assunto: RES: África: um continente esquecido

Não tivemos a intenção alegada pelo leitor. Ao contrário, generalizamos exatamente para não estigmatizar a África.

E não colocamos "Libéria" no título porque boa parte das pessoas não sabe o que é, onde fica, etc, etc. Nossa preocupação é sempre conquistar a atenção do leitor.

Mas muito obrigada pelo comentário.

Um abraço, Laura Greenhalgh

Fonte: Site do Jornal O Estado de São Paulo - Caderno Aliás - 10 de junho de 2007.
O passado e o futuro

O ex-presidente da Libéria, Charles Taylor (foto), está sendo julgado por crimes de guerra e lesa-humanidade desde segunda-feira, no tribunal internacional da Corte de Haia, na Holanda. Pesa sobre ele a denúncia geral de ter sustentado grupos rebeldes na vizinha Serra Leoa e comandado atrocidades nos dois países. Estima-se que mais de 400 mil pessoas tenham morrido durante os 11 anos de guerra civil na Libéria e em Serra Leoa. Há 11 acusações contra Taylor, entre elas: homicídio; estupro; escravidão sexual; pilhagem; alistamento forçado de crianças. Ele declara inocência em todas.

Nem sempre a Libéria conviveu com esse cenário de horror. A peculiaridade do país está no berço de sua história, já que não foi formado por tribos locais e jamais foi colônia européia. Fundada por escravos libertos dos Estados Unidos, a Libéria tem em suas raízes a luta entre negros colonizadores e negros subjugados. Apesar das tensões entre esses dois grupos, até 1980 era uma nação pacífica. Miserável, explorada como fornecedora de borracha, mas pacífica. Uma série de golpes de Estado sangrentos colocou este país do oeste africano em permanente estado de sítio, destruiu a pouca infra-estrutura local, formou uma geração de analfabetos e crianças-soldado. Em 1997, Taylor foi eleito presidente, cargo que ocupou até 2003. Havia sido o grande instigador da Guerra Civil da Libéria, e elegeu-se com o slogan “I killed you ma, I killed your pa, you will vote for me” (Eu matei sua mãe, matei seu pai, você vai votar em mim).

A convite da organização internacional Oxfam, que combate a pobreza em mais de 50 países, a escritora inglesa Zadie Smith, de 32 anos, passou uma semana em Monróvia, capital da Libéria, conhecendo o trabalho de reconstrução que a entidade promove na região. Hoje, o país vive em paz, mas com dificuldades estruturais e econômicas. Em 2005, a economista Ellen Johnson-Sirleaf, eleita presidente, encheu de esperança os liberianos. Há muito por fazer. Zadie, premiada com o Orange Prize em 2006 e conhecida do público brasileiro pelos romances Dentes Brancos e O Caçador de Autógrafos (ambos publicados pela Companhia das Letras), travou contato com as crianças-soldado traumatizadas, com a exploração dos extratores de látex e com o desespero da juventude em busca de um futuro melhor. Zadie solicitou ao Estado que o pagamento pelos direitos autorais deste texto fosse encaminhado diretamente à Oxfam.

Uma semana pelas veias abertas da Libéria

Em Haia, o ex-presidente do país africano, Charles Taylor, vai a júri por crimes de lesa-humanidade. Na capital liberiana, a premiada escritora inglesa Zadie Smith descobre a nação devastada pela guerra

Zadie Smith, Monróvia, Libéria

SEGUNDA-FEIRA

Não há vôos diretos da Inglaterra para a Libéria. Ou você vai por Bruxelas ou faz reservas com a Astraeus, uma linha aérea especializada que recebeu esse nome em homenagem à deusa romana da Justiça. Eles mantêm um serviço para Freetown, na vizinha Serra Leoa. A clientela é composta na sua maioria de africanos vestidos como se fossem para a igreja. Chapéus formais, anéis de zircônio e sacolas Louis Vuitton são populares. Somente os não africanos estão vestidos para a “África”, de calças cáqui, sandálias, camisetas amarrotadas. Suas malas são simples: mochilas puídas, maletas danificadas. A bagagem de pessoas nômades.

Uma miscelânea de viajantes está sentada numa fileira. Uma freira inglesa. Um americano que trabalha num organismo de ajuda humanitária. Um libanês que se descreve como um “consertador”: “Conserto coisas em Freetown - sistemas elétricos, prédios”. O avião pousa em Serra Leoa.

Todos desembarcam levando a África da imaginação com eles, uma história que tem ao menos uma forma familiar. Quem permanece na história da Libéria? Uma dezena de pessoas apenas, chamadas a vir à frente e ficar olhando umas para as outras através do largo corredor da classe executiva. A freira vai prosseguir viagem: Irmã Anne das Carmelitas de Corpus Christi. Ela vem trabalhando na Libéria desde a década de 1980, chefiando uma escola em Greenville. “Partimos quando a guerra se tornou impossível - agora estamos de volta, ensinando alunos. Não é fácil. Eles viram coisas terríveis. Além da imaginação.” Ela parece confusa quando solicitada a descrever o caráter dos liberianos. “São ou muitíssimo bons ou o contrário. É difícil ser bom nessas condições.”

A verdade sobre a Libéria é polêmica. Consiste de “fatos” mutuamente exclusivos, simultaneamente afirmados. O World Factbook da CIA declara que, em 1980, um golpe militar comandado por Samuel Doe inaugurou uma década de regime autoritário, mas não foi a própria CIA que financiou o golpe e o regime, como se acredita amplamente na Libéria. O sucessor de Doe, Charles Taylor, o instigador da Guerra Civil Liberiana (1989-1997), na qual se calcula que tenham morrido 300 mil pessoas, está atualmente em Haia aguardando julgamento por crimes contra a humanidade (veja box na pág. ao lado), mas mesmo assim há cartazes pintados à mão em seu apoio por toda Monróvia (“Charles Taylor é inocente!”) e coletâneas de seus discursos à venda no aeroporto. Na Europa e nos EUA, a guerra civil da Libéria foi descrita como um “conflito tribal”. Nas salas de aula liberianas, crianças de meia dúzia de tribos diferentes sentam-se juntas e parecem não saber o que você quer dizer quando pergunta se isso causa alguma dificuldade.

Não existe uma verdadeira malha viária na Libéria. Durante a estação chuvosa do final do verão, grande parte do país torna-se inacessível. A chuva torrencial de hoje à noite é extemporânea, mas a estrada é a melhor do país, adequadamente asfaltada - uma longa linha reta do aeroporto ao Mamba Point Hotel, em Monróvia. Lysbeth Holdoway, assessora de imprensa da Oxfam (organização internacional de combate à pobreza), sentada na parte de trás de um veículo 4x4 todo revestido de couro, delineia a presente situação da Libéria. De quatro a cinco vezes por ano, visita alguns dos países mais atrasados do mundo. Mesmo para os padrões com os quais está acostumada, a Libéria é excepcional. “Três quartos da população estão abaixo da linha de pobreza - isto significa que vivem com US$ 1 por dia; metade vive com menos de 50 cents por dia. O que havia de infra-estrutura foi destruído - rodovias, portos, eletricidade, água, saneamento básico, escolas, hospitais municipais -, tudo desesperadamente em falta ou inexistente; 86% da população estão desempregados, não há iluminação pública”. Através da janela do carro, podem-se ver lâmpadas apagadas; seus componentes foram arrancados durante a guerra. Os relâmpagos continuam a revelar o cenário - pequenas cabanas de tijolo e barro; homens jovens com expressão entediada observam, sentados em grupos, os veículos passarem. Os carros são de dois tipos - enormes Toyotas Land Cruisers como este em que viajo, geralmente com o emblema da ONU estampado no capô, ou Nissans dilapidados, as janelas traseiras revelando seis pessoas espremidas nos assentos traseiros e quatro na frente. Pergunto a nosso motorista, John Flomo, se os serviços essenciais existiam antes da guerra. “Alguns, sim. Em cidades. Menos no campo.” Mesmo a eletricidade que ilumina o aeroporto não é municipal. Ela vem de uma usina hidrelétrica pertencente à Firestone, a companhia de borracha americana, famosa por seus pneus. A Firestone comprou 1 milhão de acres (cerca de 400 mil hectares) em 1926, um arrendamento de 99 anos ao preço irrisório de 6 cents por acre. Eles usam sua hidrelétrica para gerar energia para sua operação. A eletricidade do aeroporto é um “presente” para a nação, embora os negócios da Firestone não pudessem funcionar sem um aeroporto. “Tudo isso é Firestone”, diz Flomo, apontando para a escuridão.

TERÇA-FEIRA

O Mamba Point Hotel é um edifício liberiano incomum. Tem ar condicionado, banheiros e água potável. No estacionamento, uma dúzia de caminhões da ONU. Na sala de café da manhã, os hóspedes são uniformes: colarinhos abotoados, roupas cáqui leves, MacBooks. O único tema na Libéria é a própria Libéria. “Esta é a coisa maluca”, diz um homem a outro. “A malária nem é um problema difícil de resolver.” Numa mesa de canto, uma mulher idosa desfia estatísticas brutas a um recém-chegado que as anota: “População, 3,5 milhões. Mais de 100 mil com HIV; expectativa de vida masculina, 38; feminina, 42. Sessenta e cinco dólares liberianos por um dólar americano. O analfabetismo oficial está em 57%, mas esse número é realmente de antes da guerra. Está faltando toda uma geração...” No bar, uma dezena de garçons liberianos descansa encostada no balcão, acompanhando atentamente o seriado Baywatch.

Todas as viagens de estrangeiros, por mais curtas que sejam, são feitas nos Land Cruisers da ONG. A Oxfam divide suas instalações com a Unicef. Em cada porta há um adesivo: “Proibidas armas de fogo”. Aqui Phil Samways, o gestor do programa para o país, chefia uma pequena equipe de desenvolvimento. Ele fala com precisão e rapidez: “Estamos saindo do estágio de desastre humanitário. Agora estamos interessados em desenvolvimento de longo prazo. West Point, que é nosso projeto principal, é uma favela - metade da população de Monróvia vive em favelas. Durante oito meses chove desta maneira e o país vira um atoleiro. Quando perguntamos às pessoas do que elas mais precisavam, elas freqüentemente diziam educação em primeiro lugar, acima de banheiros, saúde básica. Isso deve lhes dizer alguma coisa.”

A atmosfera nos corredores é jovial e entusiástica, como num jornal de escola. O pessoal é positivo sobre o futuro, com muito otimismo focado em Ellen Johnson-Sirleaf, a economista formada em Harvard e primeira mulher chefe de Estado na África. Johnson-Sirleaf conquistou a presidência em 2005, vencendo por pequena margem o jogador de futebol liberiano George Weah. “Nós esperamos e rezamos”, as pessoas dizem, quando surge seu nome. Por enquanto, o impacto é mais conceitual que real: a Libéria está tendo seu momento feminino. Por toda parte, fala-se de uma nova geração de moças que “conduzirá a Libéria para o futuro.” A primeira visita do dia é a um dos “Clubes de Moças”, que a Oxfam financia.

Abraham Paye Coneh, um liberiano de 37 anos que parece 15 anos mais jovem, acompanhará os visitantes. A Lysbeth e Abraham acrescentamos agora o fotógrafo Aubrey Wade, um anglo-holandês de 31 anos. Ele apóia sua lente na janela do carro. Placas pintadas à mão bordejam a estrada. “Você foi estuprada?” ou “Parem o estupro na Libéria”. Lysbeth pergunta a Abraham sobre outros problemas enfrentados pelas mulheres no país. A lista é longa: circuncisão feminina, casamento a partir dos 11 anos de idade, poligamia, propriedade matrimonial. As garotas eram “tradicionalmente desencorajadas a freqüentar a escola.” Em algumas tribos, maridos impelem secretamente suas esposas a casos sexuais para que possam cobrar do homem ofensor uma “taxa de infidelidade”, paga na forma de trabalho não remunerado. Leis tribais como essas são praticadas em paralelo às inscritas na Constituição da Libéria, inspirada na americana.

A cultura de favores sexuais antecede a guerra. A moral da Libéria poderia ser: onde houver fraqueza, explore-a. Essa moral não é de caráter especialmente liberiano. Em maio de 2006, uma investigação da BBC revelou “abuso sexual sistemático” no país: agentes de manutenção da paz da ONU oferecendo comida a refugiadas adolescentes em troca de sexo.

Na escola em Unification Town, 14 garotas do Clube de Moças são escolhidas para se sentar em nossa companhia numa nova “biblioteca” da escola. É uma sala diminuta, muito quente. A pequena coleção de livros didáticos nas estantes tem uma década de atraso. A sala vizinha acomoda o curso de datilografia, orgulho do clube. Não é uma “escola” tal como essa palavra costuma ser entendida. É um prédio com mil crianças dentro esperando uma escola se manifestar. As perguntas previamente planejadas - Você gosta de estudar? Qual é a sua matéria favorita? - tornam-se absurdas. Elas respondem acanhada e tristemente num “inglês liberiano” difícil de compreender. A professora traduz respostas pouco claras. Ela também é difícil de compreender.

O que gostaria de ser quando crescer? “Piloto” é uma resposta popular. Também “um marinheiro”. Por mar, ou por ar, a fuga está em suas mentes. Os outros dizem “enfermeiro” ou “médico” ou “no governo.” As duas rotas de fuga visíveis na Libéria: ajuda e governo. O que seus pais fazem? Eles estão mortos, ou trabalham na extração de látex. Uma garota suspira profundamente. A professora exasperada sugere: “Pergunte a elas sobre a freqüência com que podem vir à escola.” Uma garota recosta a cabeça na carteira. Ninguém fala.

“Pergunte para mim”. É a garota que tinha suspirado. Ela tem 14 anos, seu nome é Evelyn B. Momoh, ela tem um rosto em forma de coração, feições de boneca. Evelyn praticamente vibra de inteligência e impaciência. “Temos que trabalhar com nossas mães no mercado. Precisamos viver e não há dinheiro. Não tem dinheiro, compreende? Nenhum dinheiro.” Nós anotamos. O curso de datilografia ajuda? Evelyn olha de soslaio. “Sim, sim, claro - é uma coisa boa, somos muito gratas.” A sensação é que ela está se esforçando para não gritar. Isso é um contraste com as outras garotas, que parecem apenas exaustas. Saímos da sala de datilografia. Aubrey tira fotos de Evelyn simulando datilografar. Ela se submete a isso como um político a uma foto promocional humilhante, necessária.

QUARTA-FEIRA

O panorama das ruas em Monróvia é pós-apocalíptico: pessoas ocupam a casca de uma existência anterior. O InterContinental Hotel é um cortiço onde moram centenas. A velha Executive Mansion, sede do governo, está toda aberta como uma casinha de brinquedo; jovens estão sentados no esqueleto da escadaria em espiral, aproveitando a sombra. Abraham aponta para a insígnia estatal da Libéria na parede: um navio ancorado com a inscrição “O Amor da Liberdade nos Trouxe para Cá”. Em 1822, escravos americanos libertos (conhecidos como américo-liberianos ou, coloquialmente, congos) fundaram a colônia por instigação da American Colonization Society (ACS), uma coalizão de donos de escravos e políticos cujas motivações não são difíceis de imaginar.

Até as raízes da Libéria estão afundadas em má-fé. Da primeira onda de emigrantes, metade morreu de febre amarela. No final dos anos 1820, uma pequena colônia de 3 mil almas sobreviveu. Na Libéria, eles construíram uma vida em fac-símile: casas no estilo dos casarões das plantations, igrejas com campanários brancos.

Quando a ACS faliu, nos anos 1840, pediram que o “País da Libéria” declarasse sua independência. Foi o primeiro de muitos erros categóricos: a Libéria ainda não era um país. Suas exportações agrícolas foram logo engolidas pelo preço das importações. Um padrão de empréstimos europeus (e a inadimplência) começou nos anos 1870. O dinheiro era usado para modernizar parcialmente o interior américo-liberiano negro ignorando o interior nativo empobrecido. A relação entre as duas comunidades é uma lição da artificialidade de “raça.” Para os américo-liberianos, estes eram “nativos” - e eles continuaram um tráfico ilegal de escravos do povo Manlike até os anos 1850. Ainda em 1931, a Liga das Nações descobriu o uso do trabalho forçado dos locais.

Os maiores prédios de concreto - o velho Ministério da Saúde, o velho Ministério da Defesa, a sede do True Whig Party - são remanescentes dos regimes pacíficos, injustos, do presidente Tubman (1944-71) e do presidente Tolbert (1971-80), dos quais os liberianos sentem uma perversa nostalgia. A universidade, o hospital, as escolas foram financiados por uma política do True Whig de empréstimos internacionais maciços e concessões desreguladas a empresas estrangeiras, tipicamente concedidas a companhias “extrativas” agrícolas. Durante boa parte do século 20, a Libéria teve um apelido: Firestone Republic. Em 28 de janeiro de 2005, enquanto um governo “zelador” interino presidia por um breve período de tempo um país arruinado (as eleições deveriam se realizar no final daquele ano), a Firestone conseguiu, às pressas, uma nova concessão: 50 cents por acre pelos próximos 37 anos.

Os ativistas se frustram porque os liberianos tendem a não atribuir seus problemas a companhias extrativas estrangeiras ou a lobbies de seus respectivos governos. A maioria deles sabe quanto ganha um extrator de látex: US$ 35 por mês. Todos sabem quanto recebe um ministro de governo: US$ 2 mil por mês - uma fortuna na Libéria. Ninguém sabe dizer qual é o lucro anual da Firestone (em 2005, apenas de sua produção na Libéria: U$ 81.242.190). Em um país sem classe média nem classe trabalhadora, sem vida civil funcionando, o governo abarca tudo que envolve dinheiro, habitação, saúde e educação. Ele é o foco de todas as aspirações, de todas as fúrias.

Em 1990, a presidência era ocupada por Samuel Doe, que se recusava a sair. Dez anos antes, quando Doe, então com 28 anos, um homem da tribo Krahn e suboficial do Exército liberiano, deu um golpe de Estado, seu foco era a Executive Mansion. Ele a invadiu pela força das armas e estripou o presidente Tolbert em sua cama.

Visitamos o mercado Red Light (Luz Vermelha). É uma porção de terra circular cercada de lojinhas e apinhada de vendedores de rua. As lojas têm nomes como Arun Brothers e Ziad’s, todas pertencentes a libaneses, assim como o Mamba Point Hotel. Quase todos os pequenos negócios na Libéria pertencem a libaneses. Abraham ergue os ombros: “Eles simplesmente tinham dinheiro na época em que nós não tínhamos.” A ironia são as leis de cidadania da Libéria: quem não tiver “ascendência africana” não pode ser um cidadão. O dinheiro libanês vai direto para o Líbano.

QUINTA-FEIRA

Do 4x4, West Point não parece um “projeto modelo”. Um corredor estreito de terra ladeado por pequenas moradias feitas com lixo, barro, sucata de metal. Crianças de barrigas inchadas, comida podre, homens quebrando pedras. Isso se estende por quilômetros. O veículo envereda por uma viela estreita demais. Perto dali, o cenário é outro. Não é um corredor. É uma cidade. Há comida sendo preparada. Pequenas barracas, espetos de frango à venda. Crianças seguem Aubrey querendo ser fotografadas. Elas posam simulando coragem: punhos grandes em braços magrinhos, nodosos. Ninguém mendiga. Paramos ao lado de uma oficina com pilhas de carteiras de madeira, sólidas, não são feias. Estão sendo envernizadas num tom marrom caramelo. Um homem branco jovem e muito alto está ali para nos mostrar o lugar, um administrador de programa da Oxfam em West Point. Patrick Alix tem 30 anos. Um ar aristocrático, meio francês. Patrick tem visto a situação na Libéria progredir da emergência mais terrível para o início do “desenvolvimento”. “Basicamente, acompanhamos os que retornam dos acampamentos - muitos deles assentados nesta comunidade. Sessenta e cinco mil pessoas vivem aqui, 30 mil delas crianças. Agora, há 19 escolas na favela, não há? Por isso...” Espere. Há escolas numa favela? Patrick pára de andar. “Claro”, diz ele. “Mas nós vamos para a única do governo. As demais são privadas, dividindo o espaço com igrejas, ou mesquitas, com professores voluntários.”

Ele envereda rapidamente pelas pequenas vielas caóticas, seguro do seu caminho. Aubrey tira uma foto do edifício de concreto comprido e baixo; são quatro salas grandes. Patrick diz: “A Libéria tem essa história única de escravos libertados. Agora, as coisas mudaram, o governo prometeu 10% do orçamento para educação. É uma porcentagem enorme, mas representa apenas US$ 12 milhões para o país todo. Tem coisas demais que precisam ser feitas. As ONGs preenchem a lacuna.”

Parada na frente da escada está Ella Coleman, que até recentemente era a comissária de West Point. Coleman é uma espécie de celebridade, muito conhecida em todo West Point. A atitude dela é do tipo mãos na massa no cuidado pastoral. Ela entra nas casas para verificar suspeitas de abusos. Retém crianças em sua própria casa se teme pela sua segurança. “Temos meninas de sete anos sendo estupradas por homens grandes! Eu falo com pais, educo pessoas. As pessoas são tão pobres e desesperadas. Elas não sabem. Um de nossos garotinhos estava sempre tocando uma de nossas meninas, por isso eu fiz amizade com ele. Ele foi suspenso - mas ficar lá sentado não ajudará. Fui à casa dele. A família toda dorme no mesmo quarto. Eu disse a seus pais: ‘Vocês expuseram essas crianças a essas coisas cedo demais. Tudo que acontecer com essa menininha, vocês serão responsáveis.’”

E alguns de seus alunos são ex-combatentes? “Oh, minha garota”, diz Coleman, tristemente, “há ex-combatentes por toda parte. As pessoas vivem perto de rapazes que mataram as próprias famílias. Nós, como povo, temos muita coisa para curar.”

SEXTA-FEIRA

Bong Country é lindo. Floresta de um verde luxuriante, uma brisa suave. Há hipopótamos pigmeus por aqui e macacos; uma sensação de possibilidades da Libéria. Rica em recursos naturais, fria nas montanhas, quente na praia. Nyan P. Zikeh é o diretor do programa da Oxfam para esta região. Nyan ajuda a reconstruir as comunidades de pequenas vilas de Bong, uma área estratégica disputada por todas as facções beligerantes. As pessoas vivem em minúsculas cabanas tradicionais com telhado de sapê dispostas em torno de um terreiro central. É calma e limpa. As comunidades são interligadas e se reúnem em torno dos visitantes para participar da conversa. Em uma aldeia, uma mulher explica a situação alimentar. Ela é “1-0-0”, seus filhos são (geralmente) “1-0-1”; há muitos outros que são “0-0-1”. É um sistema binário que descreve “refeições por dia”. Mas as coisas estão melhorando: agora há escolas aqui, existem latrinas.

Um quilômetro adiante pela estrada, a sra. Shaw, uma professora liberiana de 80 anos, está sentada diante de sua casinha. Ela ensinou três gerações de crianças liberianas com um salário que ela descreve como “menos que o dos extratores de látex: US$ 25 mensais”. Ela diz que as crianças que ensinou mudaram ao longo dos anos. Agora elas são “cabeça quente”. Estão zangadas com a sua situação? Ela franze a testa: “Não, zangadas umas com a outras.” Quando saímos, Lysbeth nota três sepulturas no quintal. “Meus filhos”, diz a sra. Shaw. “Foram envenenados”. Lysbeth supõe que isso seja metafórico, mas Abraham balança a cabeça. No veículo, ele explica: “Seus filhos estavam trabalhando no governo. Empregos muito bons. Acontece isso quando você está se dando bem. Às vezes você é envenenado. Colocam alguma coisa na sua bebida. Eu sempre observo meu copo quando estou fora.”

Os visitantes sentam-se na varanda comendo o jantar no CooCoo’s Nest, o segundo melhor hotel da Libéria. CooCoo, a dona, foi uma amante do presidente Tubman; ela vive nos Estados Unidos agora. Na sua ausência, o hotel é dirigido por Kamal E. Ghanam, que também administra a plantação de árvores de látex nos fundos. Ele traz a sangria enquanto Abraham e Nyan conversam. Esses dois são membros de um grupo muito pequeno na Libéria: a provisória classe média liberiana, criada em grande parte pela presença das ONGs. “É difícil”, explica Abrahams. “Basta eu pintar a minha casa para as pessoas começarem a falar: ‘Ele é Congo agora’.” Aubrey, que estivera fotografando as plantações, se aproxima. Ele traz novidades: conheceu um extrator de látex no campo.

Aubrey está ofegante e excitado: temos a sensação de sermos jornalistas intrépidos, revelando uma grande e desconhecida injustiça. Na verdade, as condições das plantações de árvores para a produção de borracha liberianas são bem documentadas. Numa reportagem da CNN de 2005, o presidente da Firestone, Dan Adomitis, explicou que cada trabalhador “só” sangra 650 a 750 árvores por dia e que cada árvore toma dois a três minutos. Tomando a mais baixa dessas estimativas, isto significa 21 horas de extração de látex por dia. No passado, os pais traziam seus filhos com eles para ajudá-los a atingir a cota; quando isso foi noticiado, a Firestone proibiu a prática. Agora as pessoas trazem seus filhos antes de amanhecer. Nyan vira-se para os visitantes: “A Firestone é um assunto tabu aqui. Mas paga melhor que a maioria dos trabalhos. Seria preciso um lobby muito forte no governo americano para pará-los”.

SÁBADO

Almoço em La Pointe, o “restaurante bom” de Monróvia. A vista é de um penhasco abrupto descendo para terras pantanosas, e além destas, águas azul-esverdeadas. Durante a guerra, a praia ficou forrada de crânios humanos. Agora, ela está simplesmente vazia. Na Jamaica, turistas se casam em praias como essas. Atualmente, toda a freqüência do La Pointe se resume a trabalhadores de ONGs, funcionários do governo e empresários estrangeiros. Um liberiano passa por ali usando um traje razoavelmente bonito. Abraham: “É um juiz da corte suprema.” Outro homem de gravata: “Oh, é o Kenyan. Ele possui uma companhia aérea”. Por toda parte na Libéria é a mesma coisa: existem apenas os muito pobres e os muito poderosos. Na camada média ausente, por enquanto, a “Comunidade Internacional”.

Num pequeno escritório nos fundos da Paynesville School, vamos encontrar um rapaz de 15 anos indicado pela Don Bosco Himes, uma organização católica especializada na reabilitação de combatentes infantis. Quatro adultos nervosos supervisionam a entrevista. Lysbeth, que tem três filhos adolescentes, parece que vai chorar antes mesmo de Richard começar. Foi uma longa semana. Richard está determinado a facilitar as coisas para nós. Ele sorri gentilmente para o gravador:

“Meu nome é Richard S. Jack. Eu tinha 13 anos em 2003. Estava vivendo com minha mãe quando começou a segunda guerra civil. Estava jogando num campo de futebol quando homens vieram e me agarraram. Foi feito à força - eu não tinha desejo de entrar nessa guerra. Eles levaram os dois times de garotos. Eles nos jogaram num caminhão. Achei que nunca mais veria meus pais de novo. Eles me levaram para Lofah Bridge. Fomos ensinados a fazer certas coisas. Fomos ensinados a usar AKs-47. Fiquei com eles por um ano e meio. Éramos muitos tipos diferentes de liberianos e serra-leonenses, muitos meninos. Nas primeiras semanas, fiquei muito assustado. Depois aquilo se tornou parte de mim. As pessoas ainda não sabem do motivo daquela guerra. Eu sei. Foi um terrível mal-entendido. Mas isso já não faz parte de mim. Não quero mais violência em mim. Sempre que paro e penso no passado, tenho esta atitude: eu vou me levantar. Por isso conto às pessoas sobre o meu passado. Elas precisam saber quem eu era. Agora quero ser mais sábio. Meu sonho é me tornar alguém bom nesta nação. Tenho a sensação de que a Libéria poderia ser uma grande nação. Mas também quero ver o mundo. Quero me tornar piloto. Querem que eu leve vocês de avião a algum lugar? Claro. Venham me procurar daqui a 10 anos. Prometo que voaremos para outros lugares.”


quarta-feira, junho 06, 2007

"NAQUELA MESA TÁ FALTANDO ELE, E A SAUDADE DELE TÁ DOENDO EM MIM"

E com muito pesar, que comunico aos amigos o falecimento de meu Pai, dia 26 de maio, com 83 anos. Devoto de Nossa Senhora Aparecida e de São Judas Tadeu. Homem de fé, que cultivou até os últimos momentos de sua vida. São Paulino em São Paulo e Vascaíno no Rio de Janeiro. Carioca de Vila Isabel, veio para São Paulo no final do anos 50. Homem digno e trabalhador, sempre ganhou o seu pão com o suor do seu trabalho. Seja como ajudante de caminhão de entregas, da antiga loja Cássio Muniz, no balcão de um bar na Vila Santa Clara, como percussionista nos bailes e shows da vida - no inicio dos anos 60 chegou a se apresentar no Teatro Oficina - , como contínuo dos conjuntos de bailes Orlando e Roberto Ferri e mais recentemente do Ed Costa. Também fazia uns bicos nos salões de bailes da terceira idade - Cartola, Club Homs e Casa de Portugal. Jogou muita bola e foi um exímio pé de valsa. Nos últimos anos, já aposentado, nos tornamos grandes amigos. Normalmente vinha duas ou três vezes por semana em minha casa, onde passávamos horas conversando, assistindo filmes e principalmente assistindo aos jogos de futebol dos campeonatos europeus. Adeus meu Pai e sua benção. Moisés Basílio



Meu pai, Luiz José de Souza

Minha Avó Zeca, Maria José de Souza
Ao fundo, retrato do meu Avô.

UMA ESCOLA EM RUÍNAS

Comentário Moisés: Reproduzo aqui esse diálogo, pois ele trás muito do que estou vivenciando na minha pratica docente atual, junto com meus companheiros de trabalho, e também, com a minha outra prática como estudante do primeiro ano do curso de Pedagogia, junto com meus companheiros de curso. Em meio às ruínas da instituição Escola Pública, quais respostas pertinentes são possíveis? Qual o papel dos profissionais da educação pública na construção dessas respostas? Como construir um "contrato social" para a instituição Escola Pública, a partir dos fundamentos democráticos e republicanos, no atual estágio civilizatório da sociedade brasileira? Axé!

Fonte: REVISTA EDUCAÇÃO - EDIÇÃO 122
Carta além dos muros
Um grito de socorro e o dilema: colocar-se como vítima, ou pensar e agir a partir de uma escola em ruínas?
Julio Groppa Aquino

Julio,

Quando você dizia nas aulas para que nos preparássemos para o pior, eu imaginava no máximo: indisciplina + desinteresse + transferências psicológicas de todo tipo + burocracia + má-vontade + falta de recursos + salário baixo. Mas isso tudo é pouco perto do que vi e vivi nesses anos.

Os índices de violência na escola em que trabalho são preocupantes - um clichê, pois todos dizem o mesmo sobre onde trabalham. As crianças já na 5ª série se batem, se xingam, ameaçam os colegas e os professores, destroem qualquer coisa que chegue às mãos delas. Todo ano temos gastos imensos com carteiras, cortinas, pratos, canecas e talheres. O pátio parece um cenário de guerra após o intervalo. Certa vez, apartando uma briga, um menino me socou e a menina que estava batendo nele aproveitou para me dar uma cuspida. Canalhice já aos 13?

A escola crê no "protagonismo juvenil". Colocam os que dão mais problema na percussão, e tome batucada. Barulho ensurdecedor de escola de samba num lugar que deveria primar pelo silêncio. Enquanto isso, os alunos que colaboram com o trabalho em aula são esquecidos. A postura da escola é: gestão docente. Você é responsável por gerir conflitos em sala, e encaminhamentos são sinônimo de despreparo. Esse também era meu discurso antes. Um dia me peguei agindo como essas professoras estereotipadas de filmes e propagandas. Eu tinha de gritar, bater porta pra tentar chamar a atenção ou levar pra direção os casos graves. E eu me sentia tão imbecil nesse papel.

O que hoje te relato é reflexo da minha solidão profissional absoluta. Meus conceitos do que era ser um bom professor baseavam-se na imagem dos mestres que tive e no que já li. Eles (vocês) me ensinaram a pensar e até a sentir. Quis retribuir isso ao mundo sendo professora, mas são raros os interlocutores. Faço o teste, sempre: "para que você veio à escola hoje?". A resposta é decorada, como tudo o que aprendem em suas religiões, assim como o "sou da paz" na camiseta de quem está socando o outro.

O professor deveria se chamar ouvidor. Ouvem-se as idéias dos autores sobre educação, da coordenação pedagógica, dos pais, dos alunos. Professor não precisa pensar e, menos ainda, ensinar a pensar. No máximo, deve fornecer respostas prontas, decoradas também. Hoje, se houvesse um regime militar no país, não prenderiam professores. Não são formadores de opinião. São babás.

Sexta-feira passada morreu uma professora em sala, numa escola aqui perto. Ataque do coração. Dizem que ela era dedicada e bacana com os alunos. Eles chegaram a gritar 'u-hu' quando chegou o carro do IML, talvez porque não tivessem mais aula naquele dia. E, por mais que um professor seja tirano e estúpido, comemorar sua morte não me parece algo justificável. Porque nenhum professor comemora a morte de um aluno bandido, ainda que este lhe tenha trazido medo e angústia. Mas talvez seja porque apenas um aluno morrendo não nos dá aula vaga. Restam os outros na sala.

Abraços, Clarissa

Clarissa,

Você já deve ter-se dado conta de que determinados ex-alunos têm uma estranha ascendência sobre seus (não mais, mas ainda) professores. Isso porque eles, e só eles, são testemunhas e, às vezes, cúmplices de uma existência exposta ao limite em sala de aula, cujo despudor, por mais intenso que seja, não consegue evitar uma certa tragicidade aí latente: entre professor e aluno, há sempre algo mais a ser dito. É o que se passa aqui, creio.

Assim, nada que eu porventura lhe responda ombreará seu relato perspicaz e sombrio acerca da condição docente hoje. Perspicaz porque revela um desassossego raro dentre aqueles tantos professores que se deixaram corromper pelas rotinas venenosas do pensar e do agir. Sombrio pela mesma razão, uma vez que o preço de não tombar ante a implacabilidade de tais rotinas só se pagaria às custas da própria integridade. Daí a encruzilhada por você exposta: sucumbir, ou não, àquilo que se apresenta como a "realidade" brutalizada das escolas hoje.

No primeiro caso, sucumbir significa escolher a morte em vida, aquela despejada a conta-gotas nas imagens de almanaque que nos convencem a ser quem mais desprezamos. Tal escolha se justificaria como rendição a uma conjuntura hostil ou desagregadora, e não mais passível de transformação. A vitimização torna-se, então, a razão nuclear para continuar existindo nas escolas. Nada além.

No segundo caso, fazer frente a ela exige a coragem de colocar a própria vida em risco, em nome de algo que ultrapasse a miséria moral reinante e seus privilégios fúteis, firmando-se como conseqüência de um acordo íntimo com a existência que se quis e se fez - sem lugar para arrependimento, nem pesar, portanto. Habitar ruínas, valer-se de despojos, gestar acontecimentos inéditos a partir deles.

É exatamente dessa terra arrasada que você emite seus sinais: cenário devastado pela virulência do hábito (seja discente, seja docente), esse inimigo das chances de que dispomos para fazer girar a grande engrenagem da vida que se abriga também nas salas de aula. O hábito não nos convoca; petrifica-nos, aterroriza-nos. Eis como a encontro agora, diferentemente de quando nos despedimos anos atrás.

Encontro-a abatida por decibéis e falatórios sem razão, achacada por determinações tão redentoras quanto nefastas. Mas a encontro lúcida, clamando por mais que um minuto de silêncio - condição básica para pensar e agir afirmativamente. Encontro-a pulsando, enfim. E esse é todo o requisito para a experiência gratuita de liberdade e criação (e sem possibilidade de reduplicação) que só a educação pública oferece. Uma vida devotada a encontros aleatórios que se esgotam em si mesmos; frestas daquelas paragens exuberantes que um dia imaginamos vicejar no intervalo entre carteiras e quadros-negros; paragens de pouso de Machado, de Drummond, de Guimarães e, quem sabe, da colega sem nome que deixou seu coração em uma sala de aula qualquer.

Abraço,
Julio.

Clarissa é professora de português há oito anos, quatro dos quais na rede estadual paulista.


Julio Groppa Aquino - Professor da Faculdade de Educação da USP - juliogroppa@editorasegmento.com.br

Conferência Internacional de Educação Democrática (IDEC)

Comentário Moisés: Por convite do meu amigo e professor, Elie Ghanen, me escrevi para participar desse evento. Indico também a participação para os amigos leitores desse blog. Axé!

8 a 16 de setembro de 2007

Mogi das Cruzes - São Paulo - Brasil

Pela primeira vez na América Latina, temos orgulho em anunciar as datas e local da IDEC 2007: a conferência ocorrerá em Mogi das Cruzes, a 52 km de São Paulo de 8 a 16 de setembro.

Parte da conferência será organizada em parceria com o Fórum Mundial de Educação do Alto Tietê, que acontecerá de 13 a 16 de setembro.

As organizações responsáveis pela IDEC são o Instituto para a Democratização da Educação no Brasil (IDEB), Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP), o Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino e Diversidade da Universidade de Campinas (LEPED - Unicamp) e o Instituto SocioAmbiental (ISA). Nosso maior objetivo é articular instituições, grupos e pessoas interessados na educação democrática e criar uma poderosa rede envolvendo esses projetos.

As preparações com local, hospedagem, alimentação, infra-estrutura, transporte e outras vão sendo tomadas e a cada novidade disponibilizaremos as informações neste site.

Informações Gerais

O que é a IDEC?

Você tem interesse em participar?

Um convite

Lista de organizações que vão participar da Conferência

Contatos

e-mail: idec2007@gmail.com

telefone: +55 11 3586-1916

endereço: Rua Lincoln Albuquerque, 328 - Perdizes - São Paulo - SP - Brasil - cep: 05004-010

Sobre BBC Brasil e a genética do Povo Negro no Brasil

Comentário Moisés: No dia 3 de junho, teci comentário e publiquei nesse blog a longa matéria que a BBC Brasil divulgou, amplamente em seu site, sobre a questão genética na formação atual do povo negro no Brasil. No artigo a seguir, o Athayde Motta, faz um boa reflexão sobre o contexto em que se situa essa polêmica.

Fonte: Site IBASE - publicado em 1/6/2007 - www.ibase.br/modules.php?name=Conteudo&pid=1812
Essencialismo genético: por que a genética do século 21 soa como a biologia do século 19?


Athayde Motta*

O novo episódio das guerras culturais sobre raça no Brasil usa a BBC, a prestigiosa rede de comunicação quase-pública britânica, como avalista dos desejos de democratas raciais. Da forma como as várias notas foram publicadas na imprensa brasileira esta semana (veja, por exemplo, “Negros de origem européia”, O Globo, 29/05/2007), fica parecendo que a velha Auntie Beeb, como a rede é carinhosamente chamada, está de fato engajada em comprovar que negros brasileiros são irrefutavelmente mestiços, quer queiram ou não.

O subterfúgio é típico do clima de guerras culturais e se aproveita do desconhecimento da maioria da população brasileira sobre como o tema da raça é debatido fora do Brasil. Vamos, então, aos esclarecimentos.

Em primeiro lugar, a BBC não está empenhada em descobrir percentuais de ascendência genética nos seres multi-ancestralizados do planeta. Ela apenas teve faro para produzir belos documentários (com um ranço levemente (pós)colonialista) sobre as pesquisas de DNA para consumo individual que pululam na Europa e nos EUA. E o motivo que desperta interesse é uma das facetas do racismo contemporâneo na diáspora africana.

Em um dos primeiros documentários sobre o tema, chamado Motherland: A genetic journey ou “Terra-mãe: uma viagem genética” (veja a notícia de 2003, “Negros britânicos encontram suas raízes africanas”, http://news.bbc.co.uk/2/hi/africa/2757525.stm, em inglês), as pessoas retratadas realizavam viagens idílicas de volta às suas origens africanas, posto que na relação entre negros(as) e brancos(as) no Reino Unido está sempre implícito que os(as) primeiros não pertencem, de fato, àquele lugar. O diálogo ficcional a seguir é baseado nos relatos de vários(as) negros(as) britânicos(as) com quem já conversei e segue mais ou menos assim:

“Dois premiados no Festival de Flores de Chelsea se cumprimentam orgulhosos de suas medalhas. O senhor branco se apresenta: ‘Olá, sou de Londres’. O senhor negro responde: ‘Olá, eu nasci em Moss Side, em Manchester’. Pausa. O senhor branco sorri e continua: ‘Mas de onde você é de verdade?’

Licenças poéticas à parte e descontado o fato de que a maioria dos(as) negros(as) britânicos(as) fez uma parada de uns dois séculos no Caribe na “viagem” entre a África e a Europa, a questão fundamental é que no assim-chamado “velho continente” e nos Estados Unidos, de maneiras diferenciadas em cada lugar, a origem e a ancestralidade (os dois termos não são sinônimos) são moeda de valor em relações raciais desiguais.

Daí a necessidade de se oferecer “evidências científicas” para que negros(as) britânicos(as) também tivessem um “lugar de origem” e uma ancestralidade que lhes fosse de alguma valia neste jogo. Ao serem referenciadas em um lugar no globo, estas origens e ancestralidade tornam-se positivas e relevantes, embora o suporte científico seja apenas um suporte para uma construção histórico-social (porque é baseada de fato na experiência vivida e contada por meio de gerações, e não apenas em uma invenção). Poderia também ser chamada de ação afirmativa genética, pois acaba por dar aos genes africanos o mesmo “valor” que é formalmente atribuído aos genes europeus.

Portanto, não me parece que a BBC ou empresas como AfriGeneas and Ancestry.com, que fornecem a pesquisa de DNA individual por preços que variam de US$ 350 a US$ 600, estejam interessadas em dar estofo ao conceito de multi-ancestralidade como doublê da velha democracia racial. A idéia primeira, romântica e alienada em relação à desigualdade racial que expressa, é de proporcionar indicações, não apenas para negros(as), das prováveis origens territoriais de um indivíduo com conexões com outros lugares. Não creio ser necessário explicar o quanto isto é indiferente se o indivíduo em questão é, digamos, descendente de italianos(as) da Móoca, em São Paulo, ao invés de um quilombola de Conceição das Crioulas, em Pernambuco.

A outra questão fundamental é o descuido com que as matérias da imprensa defendem conclusões que os dados genéticos utilizados não necessariamente comprovam. Aqui entra a arrogância da tropa de choque dos(as) democratas raciais brasileiros(as), que não só se consideram empoderados(as) para impor uma identidade coletiva à nação como ainda utilizam argumentos pseudo-científicos de uma forma que só pode ser chamada de escandalosa.

Desta forma, é simplesmente mentira que o Brasil seja um dos países mais miscigenados do mundo (este “recorde” está provavelmente em alguma ilhota do Caribe). É igualmente errado dizer que qualquer negro(a) brasileiro(a) tem porcentagem X de genes europeus como se isto fosse uma marca de identidade positiva, sem referência histórica e de experiência vivida e, o que é pior, desrespeitando a identidade e experiência que o indivíduo possa ter. Finalmente, se um negro(a) brasileiro(a) tem 40% de genes europeus, cabe a velha pergunta: E daí? Isto não apaga a memória da experiência de vida daquela pessoa, seja a da violência racial, seja a da cultura em sua comunidade, nem deveria ser considerada tão valiosa a ponto de virar notícia de jornal.

O que a precisão e suposta objetividade da pesquisa genética acaba por criar é uma imposição de valor sobre a obsolescência do conceito de raça (tão mais falsa quanto mais se defende a democracia racial) e sobre a irrefutável mestiçagem de todos os seres (preferencialmente os de pele mais escura) porque assim disse a ciência.

Não foi assim que a biologia deu “suporte científico” à idéia da inferioridade de negros(as) africanos(as)? Com sua histeria e táticas de Caveirão acadêmico, democratas raciais brasileiros(as) não têm contribuído de fato para o fim do racismo e da discriminação racial, mas podem se vangloriar pela criação do essencialismo genético. Não é pouco para quem, até ontem, acusava os movimentos negros de essencialistas apenas por dizerem que eram...negros! e não moreninhos.

*Coordenador do Ibase

domingo, junho 03, 2007

DEBATE SOBRE A POLÍTICA DE COTAS

Comentário Moisés: O debate continua e, pelo jeito, vai longe. O Congresso Nacional vai ter que se posicionar e mesmo assim, seja qual for o resultado, a polêmica continuará. Eu, em particular e publicamente, tenho me posicionado em favor das políticas de cotas para o Povo Negro, pois pela forma com esta estruturada a sociedade brasileira, de fato já existe uma política de cotas velada, às avessas, que não está instituída em lei, mas que segue a tradição discriminatória originada pelo escravismo que perdurou por mais de três séculos e meio em nosso país e que excluiu e continua excluindo a grande maioria do Povo Negro de oportunidades iguais. O Povo Negro não precisa de privilégios, mas de oportunidade iguais.

Fonte: Site do Jornal O Estado de São Paulo - acessado em 03/06/2007 - www.estado.com.br/editorias/2007/06/03/pol-1.93.11.20070603.36.1.xm
Especialistas divergem sobre causas da desigualdade no País

Debate no Estado opõe defensor e adversário de políticas de cotas para negros em instituições públicas

Veja o debate

Roldão Arruda

Na opinião de dois importantes estudiosos de questões sociais e políticas, o Congresso poderá alterar substancialmente os rumos da história do Brasil quando votar os projetos de lei que já estão nas mãos dos parlamentares, definindo cotas para negros nas universidades públicas federais e outras instituições do serviço público. Os dois discordam, porém, quanto aos efeitos dessas leis.

Na opinião do geógrafo Demétrio Magnoli, da USP, será um passo atrás na história de um país que vem construindo sua imagem na base da miscigenação, sem recorrer a conceitos raciais ultrapassados. Ele afirma até que será uma abertura para uma guerra civil no futuro. Para o administrador de empresas Hélio Santos, um dos mais respeitados estudiosos da questão racial no País, a aprovação dos projetos será um avanço. Ela acredita que isso permitirá exorcizar três seculos e meio de escravidão.

Magnoli e Santos estiveram na redação do Estado, na quinta-feira, para um debate sobre o tema, denominado Desigualdades no Brasil: Desigualdades Sociais ou Raciais? O encontro, marcado pelo tom da polêmica, durou 1 hora e 20minutos e foi transmitido ao vivo pelo site Estadão.com, com a participação de internautas, que podiam fazer perguntas e participar da enquete sobre cotas. A seguir, alguns dos principais pontos do debate:

DEMÉTRIO MAGNOLI - Em relação ao tema proposto para esse debate, diria que as raízes das desigualdades no Brasil são sociais. O Brasil é um país de desigualdades sociais profundas, produto de uma certa formação da sociedade, de uma certa forma de distribuição da terra ao longo da história e de um certo padrão de modernização da economia - um padrão excludente. Não é, obviamente, questão racial. Se olharmos para o Norte e o Nordeste, vamos ver que os 50% mais pobres da população são pardos na sua imensa maioria; e que os 10% mais ricos são pardos. Se olharmos para o Sul e o Sudeste, veremos que os 10% mais ricos são brancos; e que os 50% mais pobres são predominantemente brancos.

O Brasil tem profundas desigualdades sociais, que são também desigualdades regionais. É preciso não confundir essas desigualdades com desigualdes raciais. Se fizermos isso, logo paramos de discutir temas como educação pública para todos, saúde de qualidade para todos, direitos sociais para todos, e começamos a dividir o Brasil em raças, em nações dentro da nação.

HÉLIO SANTOS - O que está em jogo é a definição de que tipo de modernização o País quer. O professor Magnoli se referiu ao processo histórico, mas poderia ter lembrado também que a escravidão durou 354 anos. Falou da distribuição da terra, o que é perfeito, mas faltou lembrar que os imigrantes chegaram ao Brasil e receberam terra, enquanto a população negra foi impedida de ter terra. Falou da diferença entre regiões, mas seria bom lembrar que para onde o imigrante foi o dinheiro foi junto. As províncias de Santa Catarina e do Paraná investiram muito na política de imigração.

Todo esse processo histórico já foi avaliado do ponto de vista acadêmico. Nos anos 60, Fernando Henrique Cardoso, Octavio Ianni, Oraci Nogueira, todos liderados por Florestan Fernandes, discutiram isso brilhantemente. Nos anos 70, Nelson do Vale Silva calculou, de maneira sofisticada, o preço que um engenheiro paga por ser negro no Rio de Janeiro, Porto Alegre, onde você quiser. Numa linguagem pouco acadêmica, diria que já existe uma jamanta de estudos sobre o tema.

A essa altura, portanto, esse debate já deixou de ser acadêmico. Trata-se de um debate político. O discurso usado pela mídia para combater nossas propostas é muito parecido com os argumentos dos quem era contra a escravidão. Eles também diziam que o Brasil seria dividido.

MAGNOLI - Não é verdade que o debate acadêmico esteja resolvido. Tanto assim que as explicações dadas pelo professor Hélio sobre a história do Brasil são falsas. Não é verdade que os imigrantes chegaram ao Brasil e foram tratados a pão-de-ló. Os imigrantes que vieram para São Paulo e se tornaram brasileiros (eles não são estrangeiros entre nós) criaram sindicatos livres, fizeram greves para reivindicar direitos e obter conquistas sociais. Esses imigrantes, como tantos outros trabalhadores, de todas as cores, fazem parte de uma classe social que foi excluída no momento da modernização do Brasil.

Isso não aparece no discurso do professor Hélio porque o discurso racialista, que deseja dividir o Brasil em raças, imagina que a história resulta da contraposição de raças e não de sistemas sociais e econômicos. Mas acontece que, no momento em que os trabalhadores desaparecem da conversa, assim como as classes sociais e os sistemas econômicos, entramos no campo de falsificação histórica. É falsificação imaginar que a escravidão foi imposição de um sistema de dominação de brancos sobre negros. Não foi. A escravidão no Brasil foi um sistema “democrático”: todos podiam ter seus escravos. Grandes traficantes de escravos baseados no Rio eram mulatos.

SANTOS - Isso é irrelevante.

MAGNOLI - Não é. Quando a ministra da Igualdade Racial diz que o ódio de negros contra brancos é algo que compreende e acha razoável, está dizendo que os brancos de hoje representam os donos de escravos de ontem, que os negros representam os escravos, o que é falso. Há brancos cujos ancestrais foram escravos; e há negros cujos ancestrais foram donos de escravos. Isso sim está resolvido. Porque a discussão sobre a cor da pele é cientificamente falsa - a genética já mostrou que não existem raças entre os seres humanos - e socialmente falsificadora. Em vez de falarmos sobre os interesses da maioria da população, que são trabalhadores de todas as cores, vamos cuidar dos interesses de raças. Isso é transformar o Brasil numa Iugoslávia, onde a população está dividida em sérvios, croatas, muçulmanos; numa Ruanda, onde as pessoas foram divididas em tutsis e iutus; numa África do Sul, onde o poder branco do apartheid criou raças entre a maioria negra.

SANTOS - Você e seus parceiros falam no perigo das divisões. Mas, na minha opinião, mais perigosas do isso são as exclusões. Há pouco tempo um empresário do sul, bem branco, contou que teve que afastar uma de suas funcionárias, responsável pelo recrutamente de meninas que trabalhavam como digitadoras. Ele fez isso depois de constatar que tinha 30 funcionárias e nenhuma era negra. Ou seja: as cotas de 100% para os brancos estão aí desde sempre e ninguém contesta.

O Brasil, portanto, já está bem dividido. As políticas de ação afirmativa buscam recuperar prejuízos históricos, que podem ser calculados em real ou dólar. Todos os estudos, não importa qual seja o instituto de pesquisa, identificam muito bem os pretos e os pardos situados em posições muito abaixo da população branca; todos mostram que negros trabalhando na mesma região e com a mesma escolaridade percebem menos que os brancos.

Quanto ao fato de os negros terem sido escravizados com a ajuda de outros negros, insisto: é irrelevante. Na história, todos os povos escravizaram a si próprios.

O problema real é outro. Enquanto o negro era objeto de pesquisas, para os acadêmicos estava ótimo. Deixou de ser assim quando disse: também quero estar nessa universidade, construí este país por 354 anos e quero minha parte, quero mostrar que tenho talento não só no futebol.

Nossos jogadores de futebol são elogiados no mundo inteiro. Por quê? Porque é a única área dessa sociedade onde não há discriminação. Ali, o branco que tiver talento vai em frente. E o negro, também. E ninguém aqui há de confundir futebol com algo que não requer inteligência. Para jogar tem que ter criatividade, senso de antecipação, velocidade de raciocínio... Quem joga bola pode pilotar Boeing, ser chefe de redação.

MAGNOLI - É preciso desconhecer o Brasil para afirmar que os negros são os pobres e os brancos, os ricos. É preciso não ter ido a uma favela, não ter andado de ônibus às seis da tarde, nem visitado escolas públicas para não perceber que o Brasil não é os Estados Unidos, de onde se importa a política de cotas.

SANTOS - É pior.

MAGNOLI - Nos Estados Unidos, negros e brancos estão de fatos separados, geograficamente, em áreas diferentes da cidade, pelos casamentos, que raramente são interraciais, pelas faixas de renda. No Brasil não é assim. No Brasil, pessoas de todas as cores de pele estão juntas, nas favelas, nas escolas. Elas não sabem dizer qual é sua raça: 2/5 dos brasileiros se declaram pardos, o que é vantagem, indica que conseguimos definir nossa identidade sem uma referência racial.

A proposta que estão apresentando é reacionária. É a proposta da política do sangue, da ancestralidade. O Hélio Santos é uma pessoa democrática, mas precisamos dar nome às coisas: a política do sangue é fascista. É no facismo que as pessoas se definem pelos seus ancestrais, pela história. Na democracia, as pessoas têm direitos políticos iguais, almejam direitos econômicos iguais e se definem por suas potencialidades futuras - não pela ancestralidade.

No Brasil, a política da ancestralidade é, além de tudo, uma política de fantasia, porque se trata de obrigar os brasileiros a fazer o que não fazem - que é definir sua raça. Essa política, profundamente retrógrada, tem a possibilidade, em décadas, de implantar o que não existe entre nós, o ódio racial de massas.

É o contrário da modernidade. Vamos ter que dizer a crianças de uma escola pública, que vieram de famílias de um mesmo nível de renda, que uma parte delas vai ter direito às cotas e a outra, não. Mas todas continuarão estudando na mesma escola arruinada, porque essa discussão, sobre a qualidade dos serviços públicos, a qualidade da educação pública não interessa aos promoteres de políticas de cotas raciais. Eles não acreditam na universalidade. Acreditam em raça.

SANTOS - O doutor Magnoli tem razão quando diz que o Brasil nunca teve raças. Mas sempre teve cor. Todo mundo fala em cor. A questão é o fenótipo. Gostaria de lembrar que a polícia do Rio de Janeiro, na época do Esquadrão da Morte, matou mais negros que a polícia da África do Sul.

No Brasil não existe, de fato, ódio racial explícito. O que temos aqui é uma sofisticação. A miscigenação, uma realidade e um artigo intangível e importante da nossa terra, está muito presente no discurso dos antropólogos, mas no dia a dia não é assim. Os estudos evidenciam que aqui se paga um bom preço por não ser branco.

O mundo corporativo já percebeu isso. A Febraban hoje desenvolve políticas de ação afirmativa. Todos os sindicatos de empregados, as centrais sindicais, como CUT, CGT, Força Sindical, também não acreditam nessa história de miscigenação do professor Magnoli e seus pareceiros. No País, 31 universidades já adotam políticas de cotas. A Escola Paulista de Medicina tem a melhor escola de medicina da América Latina e não está nem um pouco insatisfeita com o sistema.

Isso não é novidade. O Brasil já teve políticas de cotas nos anos 30. Pela Lei dos 2/3, toda empresa tinha que fazer uma relação anual mostrando para o Estado que de cada três empregados contratados, dois eram brasileiros. Foi a forma que o governo encontrou para proteger o trabalhador nacional, numa época, que se estendeu pelos anos 40 e 50, em que a população mais qualificada era estrangeira. Isso prosseguiu até os anos 60.

MAGNOLI - É impressionante como se falsifica a história nessa discussão. Na verdade, quando Getúlio Vargas instaurou cotas de trabalho nacional e imigrante, nos anos 30, visava a destruir o movimento sindical e operário que nas décadas de 10 e 20 se organizou para reivindicar salários e melhores condições de trabalho. Não foram cotas a favor do trabalhador nacional, mas do trabalhador desorganizado, não sindicalizado.

SANTOS - Eram cotas.

MAGNOLI - A política de Vargas, ao destruir os sindicatos livres, copiava as políticas de Benito Mussolini na Itália fascista.

O professor Hélio fala a verdade ao afirmar que a polícia é especialmente repressiva, cruel e discriminatória com as pessoas de pele mais escura. Quando o Caveirão sobe os morros do Rio, ele discrimina as pessoas de pele escura.

Ora, a pergunta que as pessoas devem fazer diante disso é: como responder ao racismo entranhado em algumas instituições do País, mas não na população? Será que a resposta é classificar as pessoas segundo sua raça? Obrigar os 2/5 de brasileiros que não se definem nem como brancos nem como pretos a serem negros ou afrodescendentes? Será que devemos produzir uma fantasia, dizendo que pretos e pardos são afrodescendentes e os demais são eurodescendentes? Essa é uma mentira genética, porque 90% dos brasileiros tem importante afrodescendência.

SANTOS - Insisto: no Brasil o que importa é o fenótipo. No mercado de trabalho, não adianta nada eu dizer que geneticamente tenho 60% de ancestralidade européia. O que importa é o que as pessoas estão vendo.

O que o Magnoli propõe é a invisibilidade. É como se dissesse: não se identifiquem. Mas a medicina ensina que não se cura sem um diagnóstico. Vocês sabem por que estamos tendo políticas públicas mais adequadas no Brasil, em áreas como saúde e segurança? Porque desde 1995, quando coordenei um grupo criado pelo governo Fernando Henrique para discutir políticas públicas, passou-se a identificar a etnia das pessoas no atestado de óbito. Foi possível saber então que o que mais matava os jovens negros eram tiros.

A identificação não tem cunho facista. Muito pelo contrário. Todos os estudos estatísticos já mostram onde a população negra está: ela é maioria na cadeia, não consegue os melhores empregos.

Ainda de volta à miscigenação, vale lembrar que ela começa em 1500: os marujos chegam, sem mulheres, vêem as índias seminuas e, nove meses depois, nasce o primeiro brasileiro, um caboclo, mestiço. São cinco séculos de miscigenação, mas uma miscigenação que não é integradora.

Já nos anos 90 o professor Danilo Pena mostrou que nós, negros, temos sangue branco, temos sangue indígena. E daí? Importa o fenótipo. Veja-se o caso dos gêmeos univitelinos, que teve tanto destaque no Jornal Nacional, porque um foi aceito no sistema de cotas e o outro, recusado. O que importa ali é que os dois são afrodescendentes e serão discriminados no mercado de trabalho. Pelo que eu vi na TV, o pai é negro e a mãe cabocla.

Se houve erro na identificação, digo que é um preço barato diante do que tem feito a UnB, uma das melhores universidades do País. Nos anos 90, quando eu andava pelo campus daquela escola, só via uma população branca. Hoje, ela ficou melhor até do ponto de vista estético: é possível avistar pretos e pardos em quantidade.

MAGNOLI - É curioso. Primeiro o professor Hélio Santos concorda que não existem raças; e depois se coloca como um juiz de raças, definindo o que são gêmeos univitelinos e assegurando que são afrodescendentes. Ora os gêmeos são brasileiros, resultado de 500 anos de miscigenação.

O que acontece hoje na UnB é algo gravíssimo. Os alunos são selecionados para as cotas por meio de fotografias, num sistema de cotas que já foi chamado, com razão, de tribunal racial. É um processo nazista e precisa ser impedido, de acordo com as leis contra o racismo existentes no Brasil.

A UnB é um campo de provas do racialismo. Ali as pessoas se definem pela raça desde a chegada e aprendem que a raça é o alfa e o ômega da vida política e social. O que se propõe agora é transformar o Brasil numa imensa UnB, num lugar onde cada uma terá sua carteira de identidade racial, onde a identidade não é mais definida pelo lugar da pessoa na política, na sociedade, no trabalho, mas pela cor da pele. O perigo é transformar o Brasil num país dividido entre grupos de cor da pele.

É fundamental combater o racismo da polícia, mas não se faz isso classificando as pessoas. Se faz com corregedorias, campanhas de opinião pública, criminalização do racismo.

SANTOS - Sobre a fotografia usada para as inscrições da UnB, quero lembrar que os profissionais mais antigos da área de recursos humanos conhecem o Código 4, que aparecia nas folhas de recrutamento e seleção de pessoal. Ele indicava que o candidato era negro. Não significava necessariamente que seria discriminado, mas era um argumento.

Também sabemos que a fotografia serviu durante muito tempo para impedir a participação do negro no mercado de trabalho. É ótimo que sirva agora para permitir essa seleção.

A Constituição do Brasil tem vários tópicos favoráveis à criação políticas públicas de ação afirmativa. Estamos tentando fazer o que a República não foi capaz de fazer em 118 anos.

A República é um fracasso. As políticas universalistas não dão certo porque um número imenso de negros se beneficiaria delas. Quando se diz que há negros e há brancos nas favelas, é verdade: cerca de 30% de brancos padecem porque estão juntos com a imensidão de negros.

MAGNOLI - Deveriam estar separados?

SANTOS - Quando o Magnoli e seus parceiros dizem que as escolas públicas devem ser recuperadas, para que seus alunos tenham condições de chegar à universidade, estão sendo falaciosos. Não tem sido assim. Essa escola não vai para a frente porque educadores, pessoas como eu e o Magnoli, não colocamos nossos filhos nelas. O secretário de educação também não. Mas ele coloca na universidade pública, que é uma das poucas políticas universalistas do Estado que a elite brasileira ainda procura. Nem segurança pública ela utiliza mais. Prefere a privada.

MAGNOLI - No Brasil, política afirmativa virou sinômino de cota racial. Na verdade, ela deveria servir para reduzir as discriminações e desigualdades sociais que dividem os brasileiros. Se nós investirmos nas escolas públicas, principalmente nas escolas da periferias, dos bairros pobres, das favelas, nós estamos beneficiando principalmente os pobres e as pessoas de pele escura, porque é verdade: existe mais pobreza entre pretos e pardos.

Se seguirmos o caminho da política racial, podemos estar preparando o caminho para a guerra civil no futuro.

SANTOS - O que propomos são ações afirmativas com foco na etnia. No Brasil, uma sociedade patriarcal, qualquer homem sabe da vantagem que tem em relação à mulher. Da mesma maneira, qualquer branco, levemente atento, sabe das vantagens que tem em relação ao negro em qualquer contexto de disputa em uma empresa.

MAGNOLI - Existem outros tipos de discriminação no mundo corporativo. Gordos e baixos também sofrem.

SANTOS - A polícia não mata mais os gordos e os baixos.

MAGNOLI - Judeus são discriminados, mas não estamos propondo cotas para eles.

SANTOS - Veja as propagandas, a televisão, o ambiente das empresas, de qualquer porte. Em determinados contextos só existem brancos, mesmo em áreas de até dois salários mínimos.

MAGNOLI - Não há dúvida de que no Brasil as pessoas de pele mais escura têm prejuízos concretos na sua vida escolar, acadêmica e profissional, em função do racismo. Isso tem que ser combatido. É importante que o Brasil mostre para o mundo que é um país de miscigenação - um país que não é uma democracia racial, mas quer ser. O que eu discordo é dessa proposta de classificar cada um dos brasileiros de acordo com a cor da pele, definir raças e direitos diferentes.

SANTOS - Os projetos de leis de cotas e do Estatuto da Igualdade Racial, que já foram aprovados em todas as instâncias do Congresso, visam a exorcizar três séculos e meio de escravismo. Não exorcizar esse estigma é insanidade em estado puro.

PESQUISA DNA - RAÍZES AFRO-BRASILEIRAS

Comentário Moisés: A BBC Brasil apresentou na última semana de maio um especial sobre o DNA de personalidade negras brasileira e abriu uma discussão sobre a questão dos afro-descendentes. É interessante acompanhar esse tipo de discussão, pois ela está relacionada com a discussão que corre no Congresso Nacional sobre a política de cotas para os afro-descendentes e também com os critérios adotados pelo IBGE em suas estatísticas. Afinal de contas, como medir a origem de uma pessoa? É ela quem se auto declara, por um decisão política de identidade? É pela cor da pele? Ou é pelo DNA?




http://www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2007/05/070326_dna_estudo_pena_cg.shtml

Afro-descendente?
Pesquisa mostra ascendência européia de negros.

http://www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2007/05/070523_dna_polemica_raca_cg.shtml
Debate
Genética alimenta polêmica sobre raças no Brasil.


http://www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2007/06/070516_dna_obina_cg.shtml
Obina do Flamengo - Jogador é 61,4% africano, 25,4% ameríndio e 13,2% europeu.


http://www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2007/06/070531_dna_milton_cg.shtml
Milton Nascimento - 99,3% dos genes do cantor e compositor são africanos.



http://www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2007/05/070521_dna_apresentacao_projetocg.shtml
Origens... Especial da BBC Brasil traça perfil de nove negros famosos.