segunda-feira, dezembro 20, 2010

História da África - edição UNESCO

Comentários Moisés Basílio: Sempre namorei essa coleção. Agora ela está inteirinha à disposição para ser baixada na Internet. Muito boa notícia. Axé!

Coleção História Geral da África disponível na Internet

Os oito volumes da coleção completa História Geral da África está disponível em português na internet. Esse é um dos projetos editoriais mais importantes da UNESCO nos últimos trinta anos, pois é um importante marco no processo de reconhecimento do patrimônio cultural da África. A obra permite a seus leitores compreender o desenvolvimento histórico dos povos africanos e sua relação com outras civilizações a partir de uma visão de dentro do continente. A coleção foi produzida por mais de 350 especialistas das mais variadas áreas do conhecimento, sob a direção de um Comitê Científico Internacional formado por 39 intelectuais, dos quais dois terços eram africanos. 
 
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Download gratuito (versão em português):
· Volume II: África Antiga (PDF, 11.5 Mb)

Fonte: Boletim do NPC Nº 182De 1 a 15/12/2010 - http://www.piratininga.org.br/

O pensamento crítico literário de Lima Barreto na Primeira República e a expansão industrial de 1808 a 1930 no Brasil

Por Moisés Basilio Leal

Trabalho final apresentado à disciplina Indústria, Desenvolvimento Econômico e Projeto Nacional no Brasil, ministrada pelo professor doutor Alexandre de Freitas Barbosa, no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da Universidade de São Paulo, segundo semestre de 2010.

1.    Introdução

Nesse trabalho minha intenção foi a de refletir sobre o desenvolvimento da indústria no Brasil em seu contexto anterior ao processo de industrialização que se consolida a partir dos anos de 30.

O sonho da industrialização sempre esteve presente no horizonte dos setores mais lúcidos da nação, mas para se realizar sempre teve que enfrentar grandes obstáculos. Luz (1978) cita que na plataforma política dos Inconfidentes Mineiros a questão da indústria já era um dos pontos importantes do programa insurrecional. Se no período colonial a metrópole portuguesa impediu qualquer iniciativa mais ousada de industrialização, com o fim da colonização tivemos que enfrentar os interesses vorazes do capitalismo inglês em expansão e também os interesses dos setores agroexportadores dominantes, que viam o Brasil como uma economia agrária por excelência.

São no final do século XIX, e nas primeiras décadas do século XX, que o desenvolvimento industrial consegue seus surtos mais consistentes e que levará o país às grandes transformações do seu eixo econômico a partir dos anos 30. É também nessa conjuntura de transformações que vamos encontrar a obra de Lima Barreto, um dos grande pensadores do Brasil do inicio dos século XX, que se utilizando da arte literária retratará e refletirá as principais questões postas nesse momento crucial de entrada do país na modernidade capitalista, com originalidade e criatividade de pensamento, conforme citado em Sevcenko (1983). No conjunto de sua vasta obra, que pelas dimensões desse trabalho não pode ser analisada à exaustão, é possível inferir um projeto nacional de desenvolvimento para o Brasil, com o rosto do povo brasileiro. Pelos acontecimentos recentes da cidade do Rio Janeiro, tão querida e amada por nosso autor, quase 100 após sua morte, ler seus textos ainda se mostra demasiadamente atual nesse inicio de século XXI.

2.    O sonho da industrialização brasileira no século XIX

Para Luz (1978) o sonho da industrialização do Brasil é um projeto antigo. Com a vinda da família real em 1808 e a elevação politica do território do Brasil à categoria de Reino Unido ao de Portugal, inicia-se a primeira tentativa de industrialização, que tem sequência depois da independência nacional, nos moldes de uma política mercantilista, com bases no Antigo Regime monárquico, que cria setores privilegiados para a exploração industrial.

A segunda tentativa se processa em 1844, com a política de iniciativa estatal, baseada na chamada Tarifa Alves Branco, que implanta uma política nacionalista de protecionismo aduaneiro.

Tanto a tentativa de 1808, com a de 1844, segundo Luz (1978) não se concretizam por dois motivos: A força política e econômica dos interesses ingleses reverte a situação à seu favor; E a política fiscal do Segundo Império, que seguia os interesses majoritários dos setores da economia agrícola.

Mesmo com muitas dificuldades alguns setores industriais prosperaram com base em políticas de favorecimento do Estado e também devido a precariedade do sistema de transporte nacional que encareciam em muito a distribuição dos produtos estrangeiros em território brasileiro.

Mas, a partir da década de 70 do século XIX duas ameaças forçam o setor industrial a se rearticular. O desenvolvimento técnico das indústrias europeias e a melhor do sistema de comunicação de acesso ao mercado nacional de um lado e do outro certa tendência liberalizante do Estado em relação à economia.

O setor industrial forja então um movimento de nacionalismo econômico para levantar a bandeira da industrialização, como forma de buscar o equilíbrio da balança econômica do país. E na década de 1880 esse nacionalismo vai contar com certo respaldo popular e irá se voltar contra os setores do comércio importador, considerado o sanguessuga da pátria. Esse movimento buscará sensibilizar o Estado e a Sociedade com o discurso da necessidade do desenvolvimento da industrialização como forma de equilibrar a balança de pagamento do país. Mas, para que a industrialização se processe é necessário a intervenção do Estado com políticas de controle do cambio, de crédito e de controle das taxas alfandegarias. De fato, uma política de industrialização só iria acontecer depois dos anos 30 do século XX.

3.    As quatros principais interpretações do desenvolvimento industrial no Brasil

Sobre o desenvolvimento industrial brasileiro Suzigan (2000) vai identificar quatro possibilidades de interpretações a partir da nossa economia de base agrário exportadora.

A primeira das interpretações é a chamada “teoria dos choques adversos”. Uma versão extrema dessa teoria foi produzida na Comissão Econômica para a América Latina (Cepal), e teve grande influência explicativa na América Latina. A base dessa teoria são as relações de comércio entre o centro (países industrializados) e periferia (países da América Latina). Essas relações criam um padrão de dependência econômica dos países da América Latina para com os países centrais industrializados. Essa dependência se dá nas relações de trocas econômicas desiguais, onde os países periféricos são exportadores de produtos primários e importadores de produtos industrializados. O próprio centro de decisões econômicas dos países periféricos para a CEPAL é deslocado para fora, para as economias centrais. Para mudar esse padrão seria necessário a criação de uma mercado interno e um processo de industrialização, que estabelecesse um novo dinamismo econômico em oposição ao modelo voltado para o mercado externo. Para a CEPAL essa mudança ocorreu a partir do que chamou de choques adversos causados na economias latino-americanas sucessivamente pela Primeira Guerra Mundial, pela Grande Depressão econômica iniciada em 1929 e pela Segunda Guerra Mundial. Esse processo de industrialização ao deslocar o eixo de crescimento econômico para dentro dos países periféricos, além da mudanças econômicas, também causariam mudanças políticas.  Mais adiante, a teoria da dependência foi desenvolvida pela CEPAL para ser um arcabouço explicativo da persistência subdesenvolvimento latino-americano, quando a industrialização substitutiva de importações não conseguiu mudar as relações dependência econômica entre centro e periferia.

            Esse versão extrema da CEPAL sofreu pesada críticas, mas Suzigan (2000) nos alerta, que no Brasil, os dois mais destacados expoentes do pensamento cepalino brasileiros, Celso Furtado e Maria da Conceição Tavares, vão refinar a interpretação da teria dos choques adversos para o caso brasileiro. Furtado (1963) e Tavares (1972) caracterizam o desenvolvimento da indústria no período antes de 1930 com sendo induzido pelo crescimento da renda do setor exportador primário, principalmente a renda do café. Diferente da versão extrema cepalina, para eles não há oposição entre os crescimento econômico das variáveis endógenas e exógenas. O crescimento da renda interna pelo aumento do setor exportador propicia o crescimento do mercado interno e o crescimento industrial. Mas o crescimento industrial nesse período é limitado, pois se torna dependente do crescimento da economia primaria exportadora, que é o centro dinâmico do crescimento econômico. Para os dois autores expoentes do pensamento cepalino no Brasil a grande inflexão na economia se dá com a Grande Depressão de 1929 e a crise do café nos anos 30, ao qual qualificam como o nosso choque adverso que desloca o eixo da economia.

            A título de ressalvas, Suzigan (2000) mesmo concordando em linhas gerais com a análise de Furtado e Tavares vê que eles limitam o crescimento industrial pré anos 30 e que ao darem grande destaque para o ponto de inflexão da economia a partir de 1930, não percebem que a transição de fato começou bem antes.

            A segunda linha de interpretação vê a industrialização como resultado do processo de expansão das exportações. Diferente das visões de Furtado e Tavares, os pensadores dessa visão articulam sempre pari passu o crescimento e decrescimento da industrial com o crescimento do setor agroexportador e também não limitam o crescimento industrial desse período e o enxergam como um verdadeiro processo de industrialização e uma relação de complementariedade entre o capital agroexportador e o capital industrial. Os principais trabalhos dessa linha de pensamento são os de Dean (1976), Nicol (1974), Peláez (1972) e Leff (1982). Para Suzigan (2000) a tese principal desse pensamento é inaceitável pois ao defender uma relação direta entre o setor exportador e o desenvolvimento industrial os autores acabam por ignorar o papel das mudanças estruturais operadas com a Grande Depressão da década de 30 e a crise do café.

            A terceira linha interpretativa trabalha com a visão do “capitalismo tardio”. Os principais estudos dessa vertente de pensamento são: Silva (1976), Mello (1975), Tavares (1974), Cano (1977) e Aureliano (1981). É uma interpretação que busca fazer uma revisão da interpretação cepalina. Discorda do pensamento cepalino de que o desenvolvimento é reflexo e afirma que o desenvolvimento latino-americano é um desenvolvimento capitalista, onde os fatores determinantes em primeiro lugar são os internos e secundariamente ficam os fatores externos. A chave das mudanças está na transição do trabalho escravo para o trabalho assalariado, que faz emergir o modo de produção capitalista. Essa transição no Brasil se realiza no período entre 1880 e 1920, momento onde o se estabelece uma economia capitalista exportadora que dará origem e consolidação ao capital industrial.

            A quarta linha interpretativa é a visão da industrialização como sendo promovida pela ação politica do Estado. Embora haja um consenso que uma efetiva política de intervenção do Estado em favor da industrialização no Brasil só tenha ocorrido depois do anos 30, alguns autores criticam a visão de que o Estado brasileiro teve participação nula nos processos de desenvolvimento da indústria antes dos anos 30. Dois aspectos da presença do Estado são os seguintes: Um papel positivo a ter um politica de proteção alfandegária para a indústria; Por meio de incentivos e subsídios à indústrias especificas. Para Suzigan (20002) essas afirmações não procedem, pois o Estado brasileiro praticamente não teve política para indústria antes de 1930, no máximo houve algumas intervenções pontuais, mas nada sistemático digno de nota.


4.    Questões importantes para sobre o desenvolvimento industrial brasileiro

Após analisar o conjunto de interpretações sobre o desenvolvimento industrial brasileiro Suzigan (2000) levanta algumas questões que em sua opinião estão em aberto e que são de importância para o estudo do nosso processo de industrialização.

A primeira questão é relativa as relações entre o setor exportador e o desenvolvimento industrial. Estudar essas relações na sua totalidade e também como em cada cadeia industrial se processa essas relações.

A segunda questão diz respeito ao papel do Estado no desenvolvimento da indústria. Em termos mais gerais essa discussão se concentra na tarifa aduaneira e nas oscilações da taxa de câmbio. No atacado outros elementos entram na discussão: legislação, créditos, taxa de juro de retorno do capital etc.

     Outro ponto importante para discussão é sobre as origens do capital industrial. Também aponta como questões relevantes: oferta de trabalho e tipos de mão de obra; processamento de matérias-primas e as dependência de matérias-primas importadas; energia disponível; as políticas econômicas locais e eventos econômicos internacionais e seus efeitos em indústrias específicas.

5.    O pensamento e a literatura de Lima Barreto nesse contexto de desenvolvimento industrial

Lima Barreto, que em vida foi estigmatizado como pessoa e também não teve o reconhecido público de sua vasta obra, a não ser num seleto círculo de amigos e em setores alternativos ao poder hegemônico, hoje cada vez mais é tido como um dos mais importantes e influentes pensadores do Brasil. Caio Prado Junior, que na década de 50 do séc. XX como editor participou do esforço de edição completa de suas obras, assim definiu a importância de seus escritos:

 “Lima Barreto é um dos poucos escritores que entre nós compreenderam verdadeiramente seus país; e não excluo que nem sociólogos quaisquer outros pensadores. Exprimiu seu conhecimento em romances; mas em poucos obras, esmo especializada, ou que se julgam tais, se encontrará e isto mesmo até hoje, uma percepção tão clara e nítida do que é o Brasil; este Brasil que não é o do discursos, dos relatórios oficiais e d nossa literatura tão convencional.” (Caio Prado Junior, In Edição crítica de O triste fim de Policarpo Quaresma, 1997)

            O nosso autor viveu num período de intensas transformações sociais. Nasceu no dia 13 de maio de 1881, no Rio de Janeiro, sede da corte, sete anos antes da abolição do regime escravista no Brasil, esse filho de pais mestiços que sempre manteve viva a sua identidade racial e fez dela um poderoso instrumento de sua arte. Morreu no dia 1º de novembro de 1922, ano da revolta dos tenentes no Forte de Copacabana, da fundação do Partido Comunista do Brasil, da Semana de Arte Moderna de São Paulo e do Centenário da Independência do Brasil. Morreu pobre, junto aos seus iguais, no subúrbio carioca, no bairro de Todos os Santos, que ele carinhosamente apelidara de Vila Quilombo.           

            Sua obra contempla uma vasta produção literária divida em crônicas, contos, romances e escritos biográficos. Pela natureza desse trabalho não cabe aqui uma pesquisa exaustiva de como a questão do desenvolvimento industrial foi contemplado pelo pensamento de Lima Barreto. Vou apenas apresentar alguns fragmentos que demonstram seu arguto senso de observação do que se passava no Brasil no período em que às duras penas era puxado para a modernidade capitalista. Um exemplo é a descrição de desenvolvimento econômico que o personagem Dr. Bogolóff, um imigrante russo recém-chegado ao Brasil e que procura conhecer as coisas da terra apresenta no romance Numa e a Ninfa de 1915:

“... Durante muito tempo, a fortuna do Brasil veio do pau de tinturaria que lhe deu o nome, depois do açúcar, depois do ouro e dos diamantes; alguns desses produtos, por isso ou por aquilo, aos poucos foram perdendo o valor ou, quando não, deixaram de ser encontrados em abundância remuneradora.
Mais tarde vieram o café e a borracha, produtos ambos que, por concorrência, quanto ao primeiro, e também, quanto ao segundo, pelo adiantamento das indústrias químicas, estão à mercê de desvalorização repentina. Viu bem isso tudo.
A vida econômica do Brasil nunca se baseara num produto indispensável à vida ou às indústrias, no trigo, no boi, na lã ou no carvão. Vivia de expedientes...
Bogoloff fatigou-se de sua vida de colono, que nunca chegaria à fortuna, daquele viver medíocre e monótono, fora dos seus hábitos adquiridos. Viu a cidade, quis fugir ao sol inexorável, à gleba em que estava. Liquidou os haveres e correu ao Rio de Janeiro. Foi professor aqui e ali, ganhando ninharias. Não encontrou apoio nem procurou. Passava dias nos cafés, conheceu toda a espécie de gente, caiu na miséria e foi socorrido por Lucrécio, quando doente e sem vintém, em cuja casa estava há dois meses.
O almoço era parco e Baraba-de-Bode tornara-se jovial. O russo não se deixara contaminar pela alegria do hóspede e viu-lhe entrar o filho com um olhar compassivo agradecido.
— Doutor, tudo isso vai mudar. O "homem" vem...
— Quem?
— O Bentes.
Bogoloff não tinha fé nem estima pela política e muito menos o costume de depositar nela os interesses de sua vida. Calou-se, mas Barba-de-Bode asseverou:
— Pode ficar certo que lhe arranjarei um emprego.
O russo olhou com um ingênuo espanto o rosto jovial do antigo carpinteiro.”
(LIMA BARRETO, 1915).

            Lima Barreto vai ser um crítico contumaz dos projetos de Brasil propostos pelas elites dominantes. Mesmo sendo negro e pobre, por intermédio de um padrinho influente na vida política do Império, que custeou os seus estudos nas melhores escolas do Rio de Janeiro, o que o credencia a fazer engenharia na Escola Politécnica, espaço destinado aos filhos da elite. Por exemplo, terá como colega de faculdade futuros grandes nomes na vida política e intelectual brasileira, como economista liberal Eugenio Gudin entre outros.

            Sua condição de classe social, sua cor, os infortúnio que a vida lhe reservou e o mais importante, sua posição política o fará mudar radicalmente de vida. Abandona o curso de engenharia, para sustentar a família. Por concurso, assume um pequeno cargo burocrático no funcionalismo público, com baixos vencimentos. Compra briga com a grande imprensa da época e passa a ser colaborar da imprensa alternativa ligada aos partidários dos movimentos socialistas e anarquistas.
 
Bibliografia

BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto: 1881-1922. 7ed. – Belo Horizonte; Itatiaia; São Paulo; Editora da USP, 1988.

BARRETO, Afonso Henrique de Lima 1881-1922. (1948). Numa e a Ninfa

BARRETO, Afonso Henrique de Lima 1881-1922. Contos completos de Lima Barreto; organização e introdução Lilia Moritz Schwarcz – São Paulo – Companhia das Letras, 2010.

BARRETO, Afonso Henrique de Lima 1881-1922. Toda Crônica: Lima Barreto – (apr. e notas) Beatriz Resende; (org.) Rachel Valença. – Rio de Janeiro: Agir, 2004.

BARRETO, Afonso Henrique de Lima 1881-1922. Um longo sonho do futuro: diários, cartas, entrevistas e confissões dispersas de Lima Barreto – Rio de Janeiro: Graphia Editorial, 1993.

FURTADO, Celso (1963). Formação Econômica do Brasil. São Paulo: Companhia Nacional, 23ª ed. 1989

LUZ, Nícia Vilela. A Luta pela Industrialização do Brasil. São Paulo; Editora Alfa Ômega, 1978

SEVECENKO, Nicolau. (1983). Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República – 2ª ed. – São Paulo; Companhia das Letras, 2003.

SUZIGAN, Wilson. Indústria Brasileira: Origens e Desenvolvimento. São Paulo, Hucitec/Editora da Unicamp, 2000.

Lima Barreto: Um literato negro da sociedade multirracial brasileira

Por Moisés Basilio Leal 


Trabalho final apresentado à disciplina Antropologia da Sociedade Multirracial Brasileira: o segmento negro, ministrada pelo professor doutor Kabengele Munanga, Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo.



1.    Introdução

Esse trabalho é uma reflexão sobre a sociedade multirracial brasileira no período da Primeira República Brasileira tendo como base a vida e a obra do escritor Lima Barreto. O objetivo não é uma analise pontual de seus textos, mas a de contextualizar a sua produção numa conjuntura onde a ideologia do racismo, com base nas pseudociências racialistas, se tornou parte no ideário das classes dominantes brasileiras.

Hoje Lima Barreto é considerado um dos grandes escritores da língua portuguesa, mas no seu tempo, foi sistematicamente rejeitado e estigmatizado pelo mundo literário da época e considerado um escritor maldito, um mulato ressentido, um mau escritor.

A partir dos anos 50 do século passado sua obra foi resgatada e publicada completa o que ensejou uma multiplicidade de estudos acadêmicos, que proliferam até os dias atuais devido a riqueza de sua produção, e a sua consagração póstuma como o grande escritor negro brasileiro. Sua obra prima é o romance “Triste fim de Policarpo Quaresma” que de forma impactante faz uma acida critica ao Brasil da Primeira República. Suas crônicas e contos também são documentos de extrema importância para o estudo das ciências humanas. Pelo conjunto de sua obra literária criativa e original é considerado pela crítica, quase por unanimidade, como um dos grandes pensadores do Brasil.

Lima Barreto é o nome literário do escritor carioca Afonso Henrique de Lima Barreto. Filho de pais mestiços e livres, mãe professora das primeiras letras e o pai tipografo da imprensa imperial. Nasceu numa sexta-feira, 13 de maio de 1881.

Vai viver na pele as contradições da sociedade multirracial brasileira em tempos de profundas transformações decorrentes da sua inserção no mundo da segundo revolução industrial capitalista em sua etapa imperialista.

É   alfabetizado pela mãe, que perde aos 6 anos. Aos 7 anos assiste com o pai os festejos da abolição. Com ajuda financeira do padrinho, um influente político do império, que depois sofre algumas perdas com a República, estuda para alcançar o sonho paterno de torna-lo doutor pela Escola Politécnica.

Após a proclamação da República vários infortúnios marcaram sua vida pessoal. O pai, monarquista assumido é perseguido e perde o emprego. Consegue um emprego precário e fruto das perseguições enlouquece, situação que força Lima Barreto a abandonar o curso de engenharia, e ter que arranjar emprego para o sustento da família.

Então muda por completo os rumos da sua vida. Presta um concurso público e vai trabalhar num cargo burocrático. Devido as dificuldade financeira muda com a família para o subúrbio carioca, a Vila de Todos os Santos, que para ele ganhara o nome de Vila Quilombo.

Ainda estudante inicia sua carreira literária escrevendo nos jornais estudantis. Depois passa a colaborar com outros jornais e inicia sua produção de crônicas, contos e romances.

Torna-se um leitor e um escritor compulsivo. É um colaborador constante de vários periódicos da imprensa alternativa da época. Devido a sua situação social terá grandes dificuldades, durante toda a sua vida, para publicar suas obras. A maioria dos seus livros publicados em vida foi custeada pelo próprio autor, que para isso teve que fazer empréstimos pessoais com agiotas.

            A partir de certo momento da vida Lima Barreto se entrega ao vício da bebida. Esse vício será a causa de várias internações no hospício e da degeneração de sua saúde.

            Morreu no dia 1º de novembro de 1922, na cidade em que viveu e sempre declarou seu amor, o Rio de Janeiro, com 41 anos de idade.

2.    Os discursos científicos raciais no contexto da Primeira República Brasileira

Para se compreender melhor a vida e obra de um autor é mister conhece o conhecer o contexto da sociedade em que ele viveu. No caso de Lima Barreto, como destacam seus biógrafos, essa afirmação é mais do que fundamental, pois que o nosso autor pratica uma literatura de cunho memorialística cuja sua própria biografia se funde com a totalidade social que o cerca e se torna a fonte principal de sua inspiração. Para o bem ou para o mal, essa característica marcante de sua obra sempre foi alvo das críticas.

Embora não seja o intuito desse texto aprofundar a análise dessas críticas, algumas questões por ela levantadas nos ajudarão a contextualizar a nossa discussão e em certa medida balizar qual o grau de importância que tem na vida e na obra de Lima Barreto o assumir uma identidade que o marcou, com afirma Lilia Schwartz (2010, p.22): “Primeiro autor brasileiro a se reconhecer e definir como literato negro”.

Mas, antes de discutir esse aspecto da obra de Lima Barreto é bom situar em que pé estava a questão da raça e do racismo no contexto histórico do que a historiografia costuma chamar de Primeira República Brasileira, que compreende o período das duas décadas finais do século XIX e as três décadas iniciais do século XX.

Em Munanga (2000) há uma digressão histórica sobre a evolução dos conceitos de raça e racismo nas sociedades da modernidade europeia, da qual o Brasil culturalmente irá fazer parte em decorrência da colonização portuguesa.

A palavra raça, em português, vem do italiano razza, que por sua vez tem origem no latim ratio com os significados de sorte, categoria ou espécie. No período medieval o termo tinha sua acepção ligada à ancestralidade ou linhagem. Já durante os séculos XVI e XVII, em França, o termo passa a ser usado pela nobreza, que se consideravam francos de origem germânica e se diferenciavam da plebe, que era taxada como tendo origem gaulesa. Mais do classificar, segundo Munanga (2000) os nobres franceses também hierarquizavam sua classificação ao se considerarem como os de sangue “puro” e, portanto com habilidades superiores aos plebeus, fato que justificava sua dominação de classe. Nota-se que essa distinção era feita sem levar em conta que não havia grandes diferenças morfobiológicas notáveis, como cor da pele, entre nobres e plebeus franceses.

      Já no mundo ibérico, durante o mesmo período marcado pelas grandes descobertas do mundo novo, a questão se pautou pela natureza humana dos diferentes dos europeus – nativos americanos, africanos etc. À luz dos referenciais religiosos, pautado pela interpretação teológica da genealogia dos descendentes de Adão, da bíblia, se classifica e se hierarquiza os diferentes, sendo que no topo, como povo eleito, situa o branco europeu com todos os privilégios e justificativas para a dominação. 

            No século XVIII há uma mudança qualitativa na conceituação de raça. Os filósofos da ilustração se opuseram às visões e interpretações de mundo tanto da nobreza, quanto da igreja. Em seu lugar importou das ciências naturais o conceito de raça para classificar as diferenças humanas. Para classifica há que se terem critérios e nesse momento a cor da pele foi o marcador principal das diferenças humanas e da divisão da humanidade em três raças – branca, negra e amarela. No século XIX com o desenvolvimento da biologia e da antropologia física – as ciências que davam base ao discurso científico racialista –, novos critérios de classificação serão elencados com base em características morfológicas dos corpos distintos.  Já no século XX, com o desenvolvimento da genética, através de processos químicos do sangue também se avançou em novas classificações.

            Para Munanga (2000) o processo de classificação biológica dos grupos humanos em raças em si não teria grande problema para a humanidade. O problema é que a partir dessa classificação se constituiu no século XIX uma pseudociência da raciologia que hierarquizou ideologicamente a diversidade humana em raças, dando origem ao racismo, uma ideologia de dominação, que vai se utilizar da classificação biológica para estabelecer uma relação de superioridade e inferioridade entre os humanos.

            Depois dessa rápida digressão histórica sobre raça e racismo, voltemos ao Brasil da primeira república. A grande questão posta para o País, nesse contexto, era a de como se relacionar com as grandes transformações engendradas pelo capitalismo internacional da segunda revolução industrial e de caráter imperialista, formulando um projeto de Estado nação, numa conjuntura de um país de independência política recente, saído de uma relação de base colonial, com uma economia agroexportadora totalmente dependente dos mercados externos, com uma estrutura social de ordem patriarcal e da recente abolição do trabalho escravo.

            Com o fim da escravidão e a proclamação da república a questão racial pede uma nova equação e a nossa elite políticas e intelectuais, que sempre beberam da cultura europeia, vão se embebedar das teorias racialistas e das práticas racistas da moda. Um belo exemplo é esse discurso sobre a febre amarela, no parlamento, do grande político e intelectual, símbolo da primeira república, o liberal Ruy Barbosa:

            “É um mal, de que só a raça negra logra imunidade, raro desmentida apenas no curso das mais violentas epidemias, e em cujo obituário, nos centros onde avultava a imigração europeia, a contribuição das colônias estrangeiras subia a 92 por centro sobre o total de mortos. Conservadora do elemento africano, exterminadora do elemento europeu, a praga amarela, negreira e xenófoba, atacava a existência da nação na sua medula, na seiva regeneratriz do bom sangue africano, com que a corrente imigratória nos vem depurar as veias da mestiçagem primitiva, e nos dava, aos olhos do mundo civilizado, os ares de um matadouro da raça branca.” (Rui Barbosa. In CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na corte imperial. 2004, p. 57.)

            Na plataforma do Estado nação brasileiro da primeira república, como declina o ilustre intelectual baiano diante da praga da febre amarela que mata mais o elemento branco do que o negro, pode-se com certeza deduzir que o projeto de embranquecimento da população é a matriz da política racial. E é nesse contexto que Lima Barreto vai interagir.

3.    Uma vida e uma obra com identidade racial

Lima Barreto é um personagem emblemático desse período de transição da política racial no Brasil baseado nas ideias racialistas do século XIX.  Antes, no escravismo o racismo estava plenamente incorporado no cotidiano social e depois da primeira república o racismo vai tomar a forma da ideologia da democracia racial.    
Sergio Buarque de Holanda (1948), prefaciando o romance Clara dos Anjos faz uma crítica à Lima Barreto, que em minha opinião faz referência com aquilo que Stuart Hall (2005) em seu estudo sobre a identidade cultural vai conceituar de sujeito do Iluminismo, cuja identidade nasce com o indivíduo e com ele se desenvolve ao largo de sua existência, o que pode ser definido como uma identidade de cunho individualista. Holanda que foi contemporâneo e manteve relações de amizade com o nosso escritor se sente a vontade para tecer suas críticas sobre as fragilidades de Lima Barreto. Para ele:

            “A obra desse escritor é, em grande parte, uma confissão mal escondida, confissão de amarguras intimas de ressentimentos, de malogros pessoais, que nos seus melhores momentos ele soube transfigurar em arte.” (Holanda, 1948, p.4)

            Mas adiante reforça a sua critica quando reafirma as limitações estéticas do nosso autor:

            “O que talvez se possa afirmar em detrimento de parte de sua obra e muito especialmente do romance Clara dos Anjos” “... é que nela a refundição estética não se fez de modo pleno. Em outras palavras, os problemas íntimos que o autor viveu intensamente e procurou muitas vezes resolver através da criação literária não foram integralmente absorvidos e nela ainda perduram em carne e osso como corpo estranho.” (Holanda, 1948, p.4).

            Ora, nessa linha de raciocino Holanda sugere que ao exteriorizar sua crítica ao racismo, de forma escancarada, Lima Barreto acaba por se aproximar em demasia de seu objeto literário, fato que o faz perder a capacidade da elaboração artística, ao fazer uma literatura só de denúncias. O contraponto de sua atuação literária seria o velho Machado de Assis:

            “Enquanto os escritos de Lima Barreto foram, todos eles, uma confissão mal disfarçada...”, “... os de Machado foram antes uma evasão e um refúgio. O mesmo tema que para o primeiro representa obsessivo tormento e tormento que não pode calar, este o dissimula por todos os meios ao seu alcance. E afinal triunfa a realização literária, onde a dissimulação cuidadosamente cultivada irá expandir-se até o ponto de se converter no ingrediente necessário de uma arte feita de vigilância, de reserva e de tato. Machado de Assis aristocratizou-se por esforço próprio e da disciplina que para isso se impôs, ficou em seu temperamento e em sua obra uma vertente inumana, que devia desagradar a espíritos menos capazes de contensão. Desagradaria, com se sabe, a um Patrocínio, e desagradou certamente a Lima Barreto. (Holanda, 1948, p.5)

            Francisco de Assis Barbosa (1988) autor de uma rica biografia do nosso autor e também um dos organizadores das obras completas de Lima Barreto na década dos anos de 1950, também partilha da visão de Holanda.

            “A verdade é que preconceito de cor sempre existiu e ainda existe no Brasil, em maior ou menor escala. O que acontece é que há os que vencem e se acomodam, como há também os que se deixam marcar com cicatrizes mais profundas, quando não sucumbem às restrições e reservas que se lhes impõem. Questão de temperamento. O caso de Lima Barreto é típico, e bem merece um estudo mais profundo, o que somente um especialista poderia fazer.”

            O que será que significa para Barbosa vencer e se acomodar aos preconceitos? Provavelmente será o de se integrar na lógica do embranquecimento e do arrivismo, como fez o grande mestiço Machado de Assis. Seria só questão de temperamento ou questão de identidade? Aqui aparece aquela ideia tão comum no imaginário que é a de quem luta contra o preconceito e a discriminação é um complexado, ou seja, o bom preto ou mestiço é aquele que sabe onde é o seu lugar social.

            Em toda sua vasta obra literária, composta por dezenas de contos e crônicas, e também nos romances, Lima Barreto se coloca como o sujeito sociológico definido por Stuart Hall (2005). Esse sujeito que se funda na complexidade da sociedade moderna e forja a sua consciência nas relações de identidade com outros sujeitos com os quais se identifica culturalmente (valores, símbolos e sentidos). Assim longe do embranquecimento, do arrivismo e da promiscuidade intelectual, Lima Barreto vai construir sua identidade como negro, trabalhador do serviço público concursado, escritor militante da imprensa alternativa da época, anticapitalista (maximalista ou anarquista) e crítico do círculo intelectual do dominante.

4.    Conclusão

A título de conclusão é bom iniciar com uma advertência:

“Não cairemos na armadilha de só ver o lado luminoso da obra de Lima Barreto”. Ele foi, também, segundo o historiador carioca, e apesar de assumir suas origens étnicas, uma vítima da “ambivalência que aflige o negro intelectual num mundo de branco”: embora atacasse aqueles que considerava “negro de alma branca”, como Machado de Assis e José do Patrocínio, confessava sua dificuldade em conviver com os seus negros, em geral intelectualmente inferiores. E apesar de manifestar-se, muitas vezes, em defesa da nacionalidade invadida, esforçou-se , em com certo sucesso, em estudar os clássicos e alinhar-se ao pensamento dos grandes intelectuais europeus de seu tempo.” (SANTOS, JOEL RUFINO DO. Apud LOPES, Nei. 2007, p.92-3)

Embora com suas contradições, a vida e a obra de Lima Barreto dialogam com o racismo brasileiro da Primeira República de forma dramática, ele próprio vai sentir na carne o processo de degradação por que passam os negros na luta pela sobrevivência numa sociedade que tem como projeto o embranquecimento.

Nicolau Sevcenko (1983) descreve bem os infortúnios da vida do nosso autor:

“Durante todo esse mergulho vertiginoso na sombra da miséria, da insegurança, da abominação social, Lima Barreto deixou seus colegas da boemia e academia pelos companheiros de bar ou de desfortuna. Pôde encarar a ciência não como cientista, mas com paciente. Ver o centro da cidade embelezar-se durante suas idas e vindas para o subúrbio. Encarou o crescimento da concorrência da perspectiva do derrotado. Percebeu a vitória do arrivismo como que perde uma situação duramente alcançada. Assistiu ao crescimento do preconceito social e racial como um discriminado. Sentiu a repressão e o isolamento dos insociáveis como vitima. Nas dessa situação geral a inspiração de sua doutrina humanitária de construção de uma solidariedade autêntica entre os homens, que pusesse fim a toda forma de discriminação, competição e conflito, e a todos reconhecesse a dignidade mínima do sofrimento e da imensa dor de serem humanos.” (Sevcenko, 2003, p.234).
           
            Sua obra, no entanto, a despeito de todas as adversidades se constitui num manifesto dissonante do discurso dominante. Nela são denunciadas as promessas da liberdade proposta pela abolição de 1888 e não cumprida e também a promessa de igualdade e cidadania da proclamação da república de 1889 e igualmente não cumprida. Na sensibilidade do artista, um projeto de nação emerge costurado em sua imensa produção literária (crônica, contos e romances), e se esse projeto não foi vitorioso no seu momento histórico, ele acabou por deixar suas marcas para que as novas gerações bebam dele novas esperanças.

Bibliografia

BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto: 1881-1922. 7ed. – Belo Horizonte; Itatiaia; São Paulo; Editora da USP, 1988.

BARRETO, Afonso Henrique de Lima 1881-1922. (1948). Clara dos Anjos. Prefácio de Sérgio Buarque de Holanda – 4ª ed. – São Paulo – Editora Brasiliense, 1974.

BARRETO, Afonso Henrique de Lima 1881-1922. Contos completos de Lima Barreto; organização e introdução Lilia Moritz Schwarcz – São Paulo – Companhia das Letras, 2010.

BARRETO, Afonso Henrique de Lima 1881-1922. Toda Crônica: Lima Barreto – (apr. e notas) Beatriz Resende; (org.) Rachel Valença. – Rio de Janeiro: Agir, 2004.

BARRETO, Afonso Henrique de Lima 1881-1922. Um longo sonho do futuro: diários, cartas, entrevistas e confissões dispersas de Lima Barreto – Rio de Janeiro: Graphia Editorial, 1993.

HALL, Stwart. A identidade em questão. A identidade Cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2005

LOPES, Nei. Dicionário literário afro-brasileiro – Rio de Janeiro: Pallas, 2007.

MUNANGA, Kabengele. Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e etnia. In: BRANDÃO, André Augusto P. (org.) Programa de Educação Sobe o Negro na Sociedade Brasileira. Niterói/RJ: Editora: UFF, 2000.

SEVECENKO, Nicolau. (1983). Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República – 2ª ed. – São Paulo; Companhia das Letras, 2003.