terça-feira, junho 19, 2012

O MISERÁVEL VERSUS MISERENTO


Comentários Moisés Basílio: Um conto que lembra a linguagem teatral épica, escrito em três atos. O tempo é a segunda década do século XXI. O território é a periferia da cidade de São Paulo. O miserável filho da classe trabalhadora vive imerso nas contradições da luta de classes onde a consciência de classe se torna difusa pelos barulhos das dinâmicas do mundo globalizado. O miserento, que poderíamos definir como uma união das palavras – miserável e lazarento – é o filho das classes populares cooptado pelos valores das classes dominantes. Um filho de operários e o outro filho de um agente do aparelho repressor do Estado burguês.
Primeiro ato, a vida e as contradições do miserável do século XXI nas periferias de SP. Brunão o filho de um operário vive no fio da navalha entre o trabalho produtivo e o crime organizado, a fábrica e o tráfico. O segundo ato, Tizinho filho de um agente da força da repressão da ditadura militar brasileira segue sua sina na cena atual, continuando a tradição paterna da violência e tortura. Ato final, um senhor aposentado faz uma síntese poética das contradições.
Um conto que dialoga com uma vasta biografia contemporânea, que em parte vem citada ao final em linguagens diversas: cinema, literatura, música, teatro, produção acadêmica etc. E com rara sensibilidade o autor encerra o seu conto com a verve lancinante da música e do poema de Edvaldo Santana, filho dessa periferia e Glauco Matoso, olhos do nosso tempo. 

O MISERÁVEL VERSUS MISERENTO
Por Pedro Carignato Basilio Leal
1 - Rap Chinelo
 “Vão invadir o seu barraco: – É a polícia!/ Vieram pra arregaçar, cheio de ódio e malícia/ (filhos da puta comedores de carniça)/ Já deram minha sentença e eu nem tava na treta/ Não são poucos e já vieram muito loucos[1]…”
   E assim que Bruno da Silva desperta pra ir à escola. São meio dia e ele entra uma hora da tarde. Irá comer o resto da janta do dia anterior e partir pra mais um dia na escola estadual Valdir Fernandes Pinto localizada na favela da Juta, periferia de São Paulo. Hoje irá mais cedo, pois quer mostrar um rap que escreveu pela noite para uns truta da área. Brunão, como é conhecido, pouco lembra o menino pacato filho de Dona Elisabete. Talvez porque Brunão descobriu ou foi obrigado a aprender que “ser um preto tipo “A” custa caro” na quebrada e que a vida-de-todo-dia por lá trafega entre as fronteiras incertas entre o ilegal, o informal e o ilícito. 

“A favela é sinistra e na madrugada/ Filho da puta assassino de farda/ Se ele te vê, tenta correr, se ele sacar o finado é você[2]…”.

  Desde pequeno Brunão frequenta toda a quebrada. Apesar de viver em uma moradia de padrão bom tem muitos amigos na favela e tais diferenças nunca foi motivo para o distanciamento. Na verdade Bruno gosta mais de estar nos barracões do que em sua própria casa. Ele adora o feijão da Dona Nenê que vende marmita sem autorização da vigilância sanitária. Gosta também de consertar os rolamentos de seu skate na bicicletaria do Sr. Osvaldo. 

“Cadê o meu presente, o meu abraço?/ A bicicleta que eu sonhei não vem com o laço… Quem brinca com revólver não conhece a alegria/ Não tem dia das crianças na periferia[3]…”.
   Tal senhor chegou ao bairro na década de 1970 junto com o pai do Bruno e começou a criar gado, mas com a grande urbanização da periferia logo mudou para o ramo de concerto de bicicletas e tudo mais que aparecer na frente. Já Ademir (pai de Bruno) ingressou em uma montadora de veículos na região do ABC, fez curso do SENAI e alcançou o posto de chefe de sessão. A cinco anos de se aposentar a empresa mudou-se para o interior e Ademir se viu obrigado a vender produtos importados vindos do Paraguai para complementar a renda da aposentadoria por velhice. Ainda assim conserva na garagem a Brasília cor de abacate que comprou da empresa e que Bruno aprendeu a dirigir. Sempre que toca no assunto da montadora Ademir diz: “- Deu tudo que eu tenho!”.
“O nego não para no tempo não/ Suas origens vêm de Angola a um bom tempo… E faço o que faço bom tempo chegado/ Tô com carro parado uma preta do lado[4]…”. 
   Bruno iniciou um Curso de Elétrica no SENAI na década de 1990, porém não o concluiu. O garoto ajuda a fazer alguns “gatos” para a comunidade local. Como todos moradores, Bruno “tá ligado” nas fronteiras entre o lícito e ilícito, inclusive o “lado certo da coisa errada”.  Sobrevive no inferno ou na adversidade e “sabe transitar entre fronteiras diversas, se deter quando é preciso, avançar quando é possível, fazer o bom uso da palavra no momento certo, se calar quando é o caso[5]” para não ser surpreendido de repente.
“Demorou, curte aí/ De Pirituba ao Mangui/ Da Conde ao Moraes/ Jardim Peri, Itapevi/ Jardim Repu, Jacqueli/ Baiana, diz assim/ Soube entrar e sair/ Respeitei, soube agir/ Não tirei, zé povim/ Quis por fim/ Ao estopim/ Perdoei/ Fiz a mim/ Que é de lei por aqui, mas só quem é foi ouvir/ Olha lá, o que fiz/ Promessa fiz pra Vivi/ Pra onde vou, fui e vim[6]…”
   Os pais de Bruno não gostam muito dessas relações, mas pouco podem falar, pois são pessoas  próximas, amigos de infância, vizinhos de rua, colegas de escola. É difícil para Ademir e Bete entender a vida do filho no cotidiano da periferia no início do século XXI, pois em épocas remotas haviam mutirões nos bairros, movimentos populares por moradia, saúde e educação em qual todos moradores participavam em plena  comunhão. Tal comunidade de opiniões parece não mais existir.
“Como velhos tempos tempos velhos velhos quais/ Tempos velhos meus amigos pretos velhos/ Que não voltam mais/ Ancestrais seguidos de bravos guerreiros/ Fazem o brasil inteiro se curvar/ Diante de tal bravura/ Que loucura/ Só pra todo custo defender aquele lugar/ Que alias se chamava palmares[7]…”
   “São apenas dez e meia, tem a noite inteira. Dormir é embaçado, numa sexta-feira. TV é uma merda, prefiro ver a lua…” É nesse ritmo que Brunão vai visitar um amigo nessa sexta à noite pelas quebradas do Sapopemba. Vai de Brasília abacate e, como não pretende voltar tarde calçou chinelos.
2 - Bota Copom[8]
“- Vamos lá, gente, vamos pra cima dos bandidos, a sociedade precisa do nosso trabalho. Conosco é o seguinte: para o cidadão tudo, para o marginal nada. Cidadão deve ser tratado como cidadão e marginal como marginal.”
   E assim inicia-se mais um dia na vida de Sebastião Pereira Rocha Farias. Tião Pistola Rocha como é mais conhecido atualmente está na Tropa de Elite da Polícia Militar e prestes a se tornar comandante de destaque (promoção por bravura) por seus préstimos exemplares dentro da instituição. Pistola Rocha nem de perto lembra aquele menino dócil e alegre filho de Dona Justina.
“Atenção, todas as viaturas, é a Comando, Viaduto Vila Esperança, perseguindo um Volks marrom.”
   Tizinho, como era conhecido quando criança, sempre gostou de assistir e jogar bola no Batalhão da Polícia Militar onde seu Pai trabalhava. O menino, apesar da educação rígida em casa, se divertia muito em dias de festa da corporação e na escola onde estudava. Tinha um sonho fixo na cabeça: “Ser Capitão da Polícia Miltar!”
 
“Aqui na Vila Guilherme perseguimos um auto Corcel com quatro indivíduos. Eles tentaram se evadir. Eu fiz um disparo no pneu do veículo e ele parou.”

   Seu Pai, Capitão Farias, era grande incentivador e motivador para o sonho do filho se tornar realidade. Tizinho sempre escutava histórias de heroísmos nas rodas de conversa dos amigos de trabalho do seu Pai. Nas brincadeiras com os amigos sempre estava atrás de justiça. Em seu time sempre jogava o café-com-leite e sempre defendia os mais fracos de apanharem dos fortões. Por vezes, seu time perdia e algumas outras apanhava, porém para ele não restava dúvida, é a luta do bem contra o mal.
“… Civis que roubam, estupram e matam. E quem, afinal, deve ir em busca de tais elementos senão a polícia? Tendo meu salário pago pelo povo, eu tinha por obrigação dar-lhe segurança.”
   Não era só da segurança que Capitão Farias se orgulhava. Na década de 1960 e 1970 os militares guiavam o Brasil rumo ao milagre econômico. Eram os militares na política junto às suas reputações ilibadas, eram 90 milhões em ação, eram revoluções… Tião sempre escutava de seu Pai: “- Brasil, ame ou deixe-o”.
“- Atenção a rede, prioridade para Rota 66. Rota Comando, é Rota 66/ – Prossiga/ – Tiroteio aqui em Jandira. O PM Croda foi baleado./ – Informe o estado dele/ – É grave, Comando. Estamos a caminho do pronto-socorro de Osasco.”
   Sebastião cresceu e com muito orgulho de seu Pai virou Tenente Sebastião Rocha. Ainda na Academia Militar estudava muito as leis e persistia em sua mente a lembrança de infância de lutar por justiça. Foi incorporado ao esquadrão de elite da Polícia Militar já quando saiu da Academia.
“- Rota Comando, é rota 66/ – Em QAP, prossiga (na escuta)/ – É, Comando, infelizmente o Croda acaba de falecer/ – Atenção, todas as viaturas, destino a Jandira, ninguém sai de serviço enquanto o matador do Croda não for capturado. Anotado?”
   O agora Capitão Tião Pistola Rocha comanda todos os dias dezenas de viaturas policiais que fazem policiamento de rua. Ao longo dos seus quinze anos de comando dentro da corporação, continua com a mesma certeza: é a luta do bem contra o mau, é matar ou morrer!
“Homens de preto o que é que você faz/ Eu faço coisas que assusta o Satanás/ Homens de preto qual é sua lição/ Entrar pela favela e deixar corpo no chão[9]…”.
   O Capitão Tião está de serviço nessa sexta-feira e por isso calça suas botas.  Antes de sair para o patrulhamento alerta seus comandados: “gente, vamos ficar atentos ao serviço, pois vocês sabem bem que, no policiamento, saímos e não sabemos se voltamos. Boa Sorte para todos!”.
3 - Sonetos Bélicos
   Um senhor lê seu jornal enquanto escuta a rádio evangélica do bairro, porque hoje é sábado. Sentado tranquilamente e com os óculos na ponta do nariz, porque hoje é sábado. Benedito ou Sr. Dito é um aposentado que depois de se desligar do trabalho com carteira assinada resolveu montar uma bomboniere no Bairro do Jardim Planalto em São Paulo. Foi um jeito de se ocupar e não ficar vinte e quatro horas por dia dentro de casa com sua esposa Dona Irene e seus vinte filhos. A manchete do dia é:
AÇÃO POLICIAL TERMINA EM MORTE DE BANDIDO NA PERIFERIA!
   Na noite dessa sexta-feira o menor B. da S. foi morto por policiais da tropa de elite da polícia militar. Não se sabe ainda o motivo que levou tal garoto a ser baleado. Suspeita-se em influência no tráfico de drogas ou acerto de contas. O Comandante da operação Capitão Sebastião Rocha comentou …
   Sr. Zé é velho amigo do Sr. Dito e está passando na rua com seu neto, porque hoje é sábado, e diz:
- Lendo jornal Sr. Dito? Perguntou Sr. Zé pra puxar assunto.
- Oh Sr. Zé… Bom dia! Como anda a vida? E o meninão? – Respondeu Sr. Dito com a vista ainda embaralhada por conta da notícia.
- A vida é vivida a cada dia – deu uma risada amarela e completou:

- E o menino tá com preguiça de estudar…
   Sr. Dito fechou o jornal, se dirigiu ao baleiro rotatório de vidro bem antigo, pegou umas quantas balas, deu ao garoto e concluiu com o amigo:
- O mundo seria mais doce se nossos jovens recebessem mais balas…
Ao fundo uma interferência na rádio da bomboniere, faz tocar a seguinte canção:
“As armas, munições, armazenadas
são muitas vezes mais suficientes
para extinguir da Terra seus viventes,
e continuam sendo fabricadas.
Revólveres, canhões, fuzis, granadas,
torpedos, mísseis mis, bombas potentes,
festim, balas Dum Dum, cartuchos, pentes,
martelos, foices, paus, facões, enxadas.
Romanos, que eram bons de guerra e paz,
disseram: “Si vis pacem, para bellum.”:
Parece que os modernos vão atrás.
Não quero exagerar no paralelo,
mas quanto menos ronda a bota faz,
mais folga ostentará o pé de chinelo[10]”.



[1] Rap: Homem na Estrada. Racionais Mc’s.
[2] Rap: Favela Sinistra. Facção Central.
[3] Rap: 12 de Outubro. Facção Central.
[4] Rap: Rap: Cabeça de Nego. Sabotage.
[5] (KOWARICK, L. e MARQUES, E. São Paulo: novos percursos e atores (sociedade, cultura e política). In:  TELLES & HIRATA, Cidade e práticas urbanas: nas fronteiras incertas entre o ilegal, o informal e o ilícito 2011, p.391)
[6] Rap: Dona Tereza. Sabotage.
[7] Rap: Afrobrasileiro. Thaíde & DJ Hum.
[8] Os fragmentos de textos sublinhados são trechos retirados do livro Matar ou Morrer de Conte Lopes.
[9] Retirado do filme Tropa de Elite.
[10] Música Soneto Bélico de Edvaldo Santana e Glauco Mattoso.