sábado, julho 13, 2013

A COMPOSIÇÃO SUPREMA - SOBRE A PEÇA "AH, A HUMANIDADE! E OUTRAS BOAS INTENÇÕES

Por Moisés Basílio 
Provavelmente Buffalo Soldiers, Acampamento Wikoff de 1898 - durante a guerra hispano-americana, National Archives and Records Administration Guerra



Dois atores, interpretando uma dupla de fotógrafos, entram em cena com suas máquinas fotográficas em punho. Enquanto um ajeita os equipamentos, o outro prepara a iluminação. Em seguida os dois se dirigem para o público e convida para participar de uma sessão nada comum de foto, uma composição suprema. 

A proposta feita ao pública é a reprodução teatral de uma antiga foto de um batalhão durante a guerra Hispano-Americana-Cubana em 1898, que levou à Independência Cubana. Um dos fotógrafos diz que tem a referida imagem e mostra ao público. Mas, ao reparar melhor percebe que não é imagem de que está falando e vai revirar suas pastas para encontrar a bendita foto de que se quer fazer uma reprodução nessa noite. 

Não encontra e o remédio é narrar em detalhes a referida foto e procurar contextualizá-la com o intuito de criar as condições adequadas para que o público possa representá-la diante das câmeras novamente. 

Uma primeira indagação: Em que momento do dia a foto foi tirada? Pela luminosidade será que foi pela manhã ou pela final da tarde? Preparando-se para um combate, ou vindo de um combate? Vejam os olhares, as posições dos corpos, as reações possíveis. Pois o objetivo é fazer um foto para entrar na história. 

Esse é o contexto inicial de uma das cincos curtas peças de "Ah, A Humanidade! E Outras Boas Intenções", do norte-americano Will Eno. O texto nos leva a interagir com os personagens de um forma crescente. Fui cada vez mais me sentindo dentro do contexto daquele momento terrível da guerra e dentro dele encontrando por um instante um gesto humano, registrar numa imagem essa composição suprema. Confesso que entrei no clima e fiz a minha pose para o retrato imaginário. 

Depois do teatro, já em casa, fui em busca de uma foto que se assemelhasse com o narração do texto do Eno. E não é que encontrei algo surpreendente. Não sei se é a mesma que inspirou o autor, mais cheguei nessa que reproduzo acima do batalhão de soldados negros norte-americanos, que num contexto de segregação racial, deixaram suas marcas na história do povo norte-americano. 

Quem quiser saber mais sobre os Buffalo Sodiers veja em:  http://www.history.army.mil/documents/spanam/BSSJH/Shbrt-BSSJH.htm 
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PEÇA: Ah, A Humanidade! E Outras Boas Intenções
Composto por cinco peças curtas, o espetáculo revela um micro-universo de personagens comuns em circunstâncias extraordinárias. Expostos em suas condições frágeis, cômicas e humanas, estes personagens enfrentam uma coletiva de imprensa, uma gravação de vídeos para uma agência de encontros, o pronunciamento de uma companhia aérea após um trágico acidente e a reconstituição de uma fotografia de Guerra.
 Texto: Will Eno. Tradução e Direção: Murilo Hauser. Concepção do projeto: Guilherme Weber e Murilo Hauser. Com Celso Frateschi, Érica Migon, Guilherme Weber e Renata Hardy.

Teatro Anchieta - Até o Final de Julho 2013. 


quarta-feira, julho 10, 2013

HANNAH ARENDT, O FILME

Por Moisés Basílio

O filme da diretora alemã Margarete Von Trotta é um convite a mergulhar no tempo durante seus cento e treze minutos de exibição.  Um mergulho num tempo denso do pensamento, onde as ideias que fluem das ações de Arendt na velocidade média de vinte e quatro quadros por segundo, interagem com nossos olhos, ouvidos, coração e mente.

Não é um filme só para assistir, mas um filme que nos convida a interagir. Quase ao final do filme a atriz Barbara Sukowa, também alemã, com uma bela interpretação no papel de Arendt, ao sintetizar sua opinião sobre o nazista Adolf Eichmann, o pacato personagem que por ironia do destino entra para a história, diz de forma reflexiva: "O maior mal do mundo é o mal cometido por ninguém. O mal cometido pelos homens sem motivo ou convicção, sem um coração perverso ou palavras demoníacas é o que eu chamo de banalidade do mal". 

Ao ouvir essas palavras lembrei-me dos versos do moço Geraldo Vandré: "Há soldados armados, amados ou não. Quase todos perdidos de armas na mão. Nos quartéis lhes ensinam uma antiga lição: De morrer pela pátria e viver sem razão." Nesse versos de 1968 Vandré traça a metáfora do homem burocrata, que não pensa e segue stricto sensu uma ideologia dominante qualquer e nela justifica sua prática. 

Arendt viveu a experiência que é o enredo desse filme no ano de 1961 quando se aventurou a cobrir como repórter e pensadora da revista New Yorker o julgamento do nazista Eichamann, capturado pela policia secreta do Estado de Israel na Argentina e levado a julgamento em Jerusalém. O problema é que durante o julgamento o grande vilão vai se revelando um Eichmann pequeno, pacato, longe da figura de um Menfistófeles, apenas um ordinário burocrata a serviço da lei, um sujeito que não pensa, só age a mando do sistema nazista que hegemonizava ideologicamente o Estado Alemão. 

Aqui reside o ponto alto da questão proposta por Arendt. O vilão que é levado a execração pública promovida pelo Estado sionista é uma farsa. Mas é preciso julgar alguém, por a culpa e lavar a honra do povo judeu. Como não dá para julgar num tribunal sionista o Estado alemão nazista e sua ideologia, em seu lugar é condenado injustamente o burocrata Eichamann ao enforcamento. 

Ao retornar de Jerusalém Arendt vai escrever o seu texto reflexivo sobre o julgamento Eichaman, mostrando os equívocos desse processo e buscando destacar o que realmente estava em jogo. Arendt não está querendo vingança ou espetáculo político, mas justiça e aponta as falhas do tribunal sionista. A questão é maior que uma vingança do povo judeu, o ponto central é se fazer uma crítica radical, e não sectária, ao Estado nazista alemão e sua ideologia e situar essa mesma crítica na história como um movimento que praticou de forma sistemática crimes contra a humanidade. E mais, que o sistema totalitário nazista recebeu apoio de muito mais gente do que se possa imaginar, inclusive da passividade e da complacência de muitos líderes judaicos. Fazer essa crítica, com essa profundidade, poderia evitar a possibilidade de se repetir as atrocidades nazistas no futuro. 

O texto de Arendt é mau compreendido pelas posições sectárias sionista, cego pelo exacerbado nacionalismo, ou pela ignorância, ou ainda, má fé política de quem ataca sem mesmo ler o que a reflexão de Arendt propõe. E o filme mostra de forma dramática a violência que Arendt tem que enfrentar. Um toque poético é a postura de seu companheiro, Heinrich, interpretado com doçura pelo ator Axel Milberg, fiel a amada nos duros momentos.

O tema central do filme bate com o momento que vivemos no Brasil desde a instalação da Comissão Nacional da Verdade para apurar e condenar os crimes praticados pelo Estado brasileiro da ditadura civil/militar e por sua ideologia da "Segurança Nacional", parafraseando Arendt, contra a humanidade, e não somente contra o povo brasileiro. 

Muitas vezes em nome da governança, dos interesses corporativos, dos interesses políticos escusos e da falta de memória, muitos são complacentes com as maldades praticadas pelo regime da ditadura civil/militar. Interagir com o filme Hannah Arendt nos leva a ter coragem de por o dedo na nossa própria ferida.