domingo, abril 27, 2008

Apostila na rede pública de educação de São Paulo

Comentário Moisés Basílio: Recebi o texto, que reproduzo a seguir, da minha amiga Regina da Apeoesp-Tatuapé. As recentes mudanças ocorridas no início do ano letivo de 2008, na rede pública do estado de São Paulo, tem múltiplos aspectos a serem analisados e debatidos.

Educação em São Paulo: um Saviani correto faz falta Paulo Ghiraldelli Jr - 22 02 2008 - http://ghiraldelli.wordpress.com/2008/02/22/369/

A violentaEm educação, a direita não fascista adora acusar a esquerda ainda estalinista de “massificação”. Diz que a esquerda quer tirar da população, sob o nome de democratização, as opções da “liberdade de ensino”. Por isso, esse tipo de direita sempre evoca o direito à liberdade de ensino como um direito à existência do ensino privado ao lado do ensino público. Perfeito. É sempre assim? Ah! Em São Paulo as coisas são diferentes! Aqui, a direita não fascista, através de Maria Helena de Castro, secretária de Educação, acusou Carlos Ramiro de Castro, da APEOESP, de “baboseira ideológica” quando este criticou que o sistema apostilado introduzido nas escolas paulistas pode “fazer tudo ficar igual”. Ramiro reclama em favor da liberdade de ensino, em favor da criatividade do professor. A resposta de Maria Helena foi infeliz, apenas se limitou a tentar desqualificar o interlocutor. Para ela, tudo que é discordante dela é ideologia, e tudo que sai da sua própria boca é ciência. Velho Augusto Comte.

Mas e nós, os democratas de esquerda, que não temos nada a ver com APEOESP e nada a ver com Maria Helena? O que podemos opinar no caso? Aqui, é necessário lembrar um conceito do filósofo e educador Dermeval Saviani que é pouco entendido e, não raro, reiterado em manuais de modo errado. Trata-se da noção de “pedagogia tecnicista”.

“Tecnicismo em educação”, na acepção de Saviani, não é transformar o ensino em “técnico-profissionalizante”. Muito menos é tirar da grade curricular as disciplinas humanísticas. Quando Saviani elaborou a noção, nos idos da primeira metade da década de 80, ele tinha em mente a leitura do Capítulo Sexto “Inédito” de O’Capital. A idéia básica era observar como que Marx havia tratado coisas como “a aula”, ou seja, aquele tipo de atividade humana que, não sendo”produto material”, resistiria à sua transformação em mercadoria e, então, criaria uma certa dificuldade ao capitalismo. Saviani ponderou, então, que uma forma de tornar a aula, ainda que só em parte, mercadoria e produto em série, para fazer o capitalismo entrar também nesse campo, seria a objetificação da aula em “meios didáticos materiais”. E a apostila seria o meio mais barato e mais condizente para tal. Nesse sentido a pedagogia tecnicista iria contra a pedagogia nova, que centrava o processo de ensino no aluno, e contra a pedagogia tradicional, que focalizava o ensino no professor. A pedagogia tecnicista deveria fazer dos meios didáticos materiais o centro irradiador do que é e do que não é para se fazer em educação.

Qual o objetivo da “pedagogia tecnicista”? Simples: na prática cotidiana o saber do professor seria expropriado, incorporado aos meios, e então a aula poderia ser ministrada por qualquer um, bom professor ou não. Do mesmo modo que a máquina substituiu o homem no processo produtivo, os meios didáticos substituiriam o professor no processo de ensino. A rotatividade do professor no emprego (na escola) seria possível, e assim isso traria ganhos financeiros para a escola particular, e ganhos em termos de “racionalização administrativa” na escola pública.

Bem, até aí, Saviani; agora venho eu novamente. O que Saviani fez ao caracterizar a “pedagogia tecnicista” foi um bom passo. Não concordo com ele que a pedagogia nova tenha dado origem à pedagogia tecnicista. Acho que Saviani fala assim apenas para ligar uma pedagogia liberal (a pedagogia nova) a uma pedagogia que nem mesmo os liberais suportam (a pedagogia tecnicista). É próprio do marxismo de Saviani fazer isso (como quando dizem que o liberalismo origina o fascismo etc). Outros marxistas da velha guarda pensam assim também. Todavia, isso não quer dizer que não vejo como uma boa formulação o que ele fez ao delinear a pedagogia tecnicista. Avalio que é uma das melhores elaborações dele, embora muito mal compreendida. Todavia, ela não pode ser aplicada mecanicamente à realidade. É claro que nem sempre um sistema apostilado possibilita uma real rotatividade do professor. Também não é correto dizer que, posto este sistema, o ensino vá decair de qualidade de imediato. Ao contrário, talvez ele melhore. Pois o sistema de apostila só é introduzido quando o saber do professor já foi deteriorado ao máximo, então, tal coisa aparece como uma tábua de salvação que até dá benefícios em casos extremos. Aliás, foi assim que os cursinhos pré-vestibulares salvaram os colégios, diante dos vestibulares, nos anos 70 e 80. Todavia, o que é preciso notar é a não aceitação desse sistema por parte dos grandes colégios particulares das elites. Isso é significativo.

Um colégio de classe média, particular, é apostilado. A classe média acredita na apostila. Então, agora, os pais que tem filhos na escola pública, também acreditam. Mas os grandes colégios das elites mais ricas, ao menos em São Paulo e Rio, não são apostilados. Esses colégios são indevassáveis. São poucos, e a população não sabe o que ocorre lá dentro. Lá dentro ocorre um milagre para os que não sabem o que é o aprendizado: os alunos pagam muito caro mesmo, mas saem de lá para o comando real da sociedade. Ali não há apostila, ali o professor tem mestrado e ele trabalha com livros – bibliografia universitária. O livro não é meio didático. O livro é a ampliação da discussão que só pode ser feita a partir de um bom professor.

Assim, a questão de Ramiro e de Maria Helena não deveria ser discutida no âmbito sindical. Deveria ser discutida no âmbito teórico. Teríamos de começar a colocar na mesa uma análise mais ampla sobre o que é e o que não é introduzir apostila na escola pública. Será que estamos fazendo um bem? Ou estamos no caminho da reiteração da expropriação do saber do professor, feita por uma má formação anterior? Em que medida poderíamos apoiar a atitude de Maria Helena – que então teria de ser vista com uma ação emergencial somente – e, a partir daí, preparar ações a médio prazo para voltar a ter uma escola pública afinada com o livro? Essas questões deveriam estar na pauta dos cursos de pedagogia e de pós-graduação em educação. Mas duvido que estão e estarão. Pois nesses lugares é onde a leitura de certas peças de Saviani se faz de modo errado, em geral voltadas para debate político partidário com viés comunista e pouco inteligente. Então, talvez Maria Helena fique sozinha nisso e, com a patada “é tudo baboseira ideológica”, possa mandar e desmandar, sem muita reflexão, na educação paulista.

Paulo Ghiraldelli Jr, O filósofo da cidade de São Paulo

segunda-feira, abril 14, 2008

A PALAVRA INCOMPLETA - Carlúrcio Castanha

Comentários Moisés Basílio: Mensagem que o Carlúcio nos deixou ao completar 60 anos em 2007. Em que pese a pequena diferença de idade, o Carlúcio era 13 anos mais velhos do que eu, vivemos praticamente o mesmo período histórico, ele como mestre e eu como aprendiz. Boa leitura! Axé.


Autor: Carlúcio Castanha

AGRADECIMENTOS
Antes, quero agradecer sinceramente a presença de cada um que prestigiou nossa festa. À minha família: meus queridos filhos, meu futuro genro, minha mãe, minhas tias, irmãs, meus sobrinhos e sobrinhas, meus primos e primas.
À família de Clara: sua mãe (minha sogra), suas tias, minhas cunhadas e cunhados com seus respectivos maridos e esposas, meus “sobrinhos tortos”. Quero registrar aqui o meu agradecimento público ao meu cunhado Wilson, que carregou literalmente a infra-estrutura dessa festa nas costas.
Quero agradecer o empenho de Tereza Neves e a generosidade de Anna Góis que cedeu a casa de eventos, sem a qual não teríamos condições de receber nossos amigos. Com certeza todos os convidados ficaram gratos pela animação da banda de pau e corda e do coral de frevo de bloco.
Quero agradecer, ainda, a presença dos companheiros e companheiras da Prefeitura: as minhas companheiras de diretoria e todos e todas da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Desenvolvimento Econômico que nos honraram com sua presença. Ao prefeito João Paulo e sua esposa Jeane, ao vice-prefeito Luciano Siqueira e sua esposa Lucy, aos secretários(as), diretores, assessores e especialmente aos motoristas da Prefeitura.
Quero agradecer também a presença dos companheiros e companheiras, dos amigos e amigas, dos meus compadres, comadres e dos afilhados que têm um padrinho desatento. Quero agradecer a todos e todas do fundo do meu coração, em meu nome e em nome de Clara, e quero fazê-lo em especial na pessoa do companheiro Marcelo Santa Cruz, pelo esforço que fez para prestigiar nossa festa.

A MOTIVAÇÃO

A motivação para escrever esse texto vem da necessidade de corrigir injustiças pela ausência de referências importantes na minha fala, para completar e precisar melhor os fatos citados. Para resgatar a palavra e, a partir do seu registro, propiciar o aprofundamento e ampliação de um diálogo que espera e suscita respostas frente o cenário político/ideológico nacional.
Para mim particularmente é mais uma oportunidade do “último discurso”. Há muito tempo carrego entalado entre o coração e a garganta o meu “último discurso”. Não se assustem! A referência aqui é ao filme O Grande Ditador. Uma sátira ao nazismo, onde Charles Chaplin, representando um barbeiro, é colocado por engano no lugar de Hitler. Para quem não teve a oportunidade de ver o filme, o discurso do barbeiro é a palavra simples, aparentemente ingênua... mas, ao contrário, é a palavra densa, profunda, cheia de paixão, de uma oportunidade política ímpar e plena de conteúdo ideológico.
Este filme é um dos marcos na minha formação. O “último discurso” de Chaplin volta e meia toma nova forma, ou melhor, nova motivação, para dizer talvez essencialmente as mesmas palavras, com certeza de mesmo conteúdo ideológico representado por novos fatos e realidades completamente diferentes.
Só para que vocês tenham idéia mais clara dessa agonia, a primeira vez que senti uma necessidade enorme de fazer o último discurso foi logo após o ato institucional Nº5, em dezembro de 1968. A vontade era subir em um dos bancos da Praça do Diário, encher o pulmão e dizer tudo, como no “último discurso”.
Tive algumas outras oportunidades, mas nunca consegui fazê-lo por completo. Mesmo quando a oportunidade é mais planejada – como agora na comemoração dos meus 60 anos – a palavra fica incompleta, um arremedo do “último discurso”.
Em outras situações – por impulso de indignação ou grito por justiça –, como em outubro de 1973, quando me soltei das mãos dos agentes do DOI-CODI, em frente à casa dos meus pais, no Pina. Reagi à prisão (aos gritos de “querem me seqüestrar!”), pulei o portão do jardim e me enfiei por uma pequena janela (postigo) da porta. Ao perceber que conseguira frustrar a tentativa de seqüestro (sabia que ia ser preso, mas não podia permitir que fosse seqüestrado), ganhei força de um Espártaco. Voltei ao portão, subi no muro e desafiei os meus algozes (claro que minha força vinha também da presença de Seu Castanha e Dona Erival). Daí, eles fugiram.

Eu tinha público. Na frente da casa era um ponto de ônibus. Aquele reboliço e gritaria conseguiram juntar algumas dezenas de pessoas. Precisava dizer àquelas pessoas o que estava acontecendo, enchi o pulmão e soltei a palavra. A intenção, a referência ideológica era o último discurso, falei durante longos 5 minutos (que pareceram uma eternidade). Falei do particular (fome, salário, trabalho escravo) ao geral (liberdade, democracia, socialismo). Só parei quando percebi que minha mãe suplicava em lágrimas, agarrada a minha cintura, para que eu entrasse em casa. Seu Castanha, sem palavras, inerte segurava pelo meu braço para o meu equilíbrio sobre o muro. A palavra, como agora, ficou incompleta.
Claro que durante esses 43 anos de militância muitas outras oportunidades surgiram. Os discursos nas greves, nas defesas de teses dos CONCUT, na resistência à demissão na GD do Brasil. E sempre a palavra ficou incompleta. Não tenho conseguido engravidar minhas palavras com a dimensão do último discurso.
Não se trata de vulgarizar esse discurso. Ele só tem sentido se for uma exigência do momento histórico. E hoje eu tinha muitas razões para fazê-lo. Sessenta anos é um marco emblemático. O infarto, a cirurgia, a possibilidade do transplante. Tudo isso junto nos coloca obrigatoriamente com outra postura frente à vida. Toma força o caráter de urgência de cada ato seu. O Carpe Diem é quem comanda.
O mais importante: a História nos convoca! Sinto-me convocado como em 1968 a contribuir com o processo de acumulação do nosso povo para viver plenamente sua emancipação. Sem o infortúnio da miséria da indignidade, do analfabetismo, da violência. Com uma grande diferença: em 68 nós lutávamos contra a ditadura. Hoje, nós estamos no Governo, a luta é a favor. A favor de quê? Com que aliados estratégicos? Com que instrumentos? Com quais formas de organização? A História nos convoca outra vez para assumirmos a vanguarda desse processo.
A experiência nos ensinou. Não temos mais o direito de errar, a espada de Drácon paira sobre nossas cabeças. Se não formos capazes de construirmos o novo tempo, seremos varridos da história. E junto também deverão sucumbir os movimentos sociais com direitos conquistados e tudo.
Nesse ambiente, o militante de esquerda não tem o direito de se amiudar, não pode se restringir a discussões táticas, eleitorais. Não pode se limitar aos interesses imediatos e às vezes mesquinhos. Os militantes de esquerda estão definitivamente convocados a construir a história do nosso país. E contribuir com a emancipação de toda a América Latina. É assim que me sinto aos 60 anos.

AMORES E PAIXÕES

Quero começar fazendo uma correção da minha fala, quando justifiquei a minha paixão pelo Timão com a identidade de “classe” da torcida corinthiana. Essa identidade é só mais um ponto a favor, mas paixão é paixão e não precisa ser explicada por nenhum teorema. Ser corinthiano é viver uma paixão. Somos homens e mulheres que valorizamos a emoção, vivemos intensamente a alegria da vitória ou a tristeza da derrota. Nós não somos torcedor de resultado. É impossível entender isso se não for corinthiano. Jamais um ser humano vai conseguir descrever a dor de um tigre ferido porque não é um tigre. Corinthians... Corinthians minha vida... Corinthians minha história... Corinthians meu amor ô ô...
Vou começar a homenagem à minha mãe com uma declaração. Vou resolver hoje uma contradição que me acompanha há 40 anos. Por uma questão ideológica, o preconceito racial e a representação social da torcida alvirrubra, fiquei dividido entre o Náutico e o Santa esse tempo todo. Mas hoje, aos 60, resolvi: Mamãe, eu quero lhe dizer que sou torcedor do NÁUTICO. Eva minha irmã, acrescenta que quando eu saí da maternidade em um domingo de carnaval, meu pai contratou um carro para acompanhar o Maracatu Timbú Coroado. Fez meu batismo, ao me tomar dos braços de minha mãe e dançar no meio do Timbú Coroado.
Mamãe é a eterna namorada de Seu Castanha. Esse amor que nem a morte conseguiu separar, ela manifesta em cartas e poesias. Meu Pai morreu em abril de 1989, ele tinha um pacto com minha mãe que o primeiro que morresse levaria como travesseiro todas as cartas de amor que foram escritas durante os oito anos de namoro (ele no Recife e ela em Barreiros e Garanhuns), e mais outras tantas cartas e poesias após o casamento.
No meio daquele enorme vazio, de dor, tristeza e saudade para todos nós – e principalmente para ela, que perdera o grande amor de sua vida –, mamãe nos procurou para que fôssemos buscar o baú de cartas, que deveria descer a sepultura com o corpo de Seu Castanha.
Nos reunimos num canto com esse impasse: é justo sepultar toda memória desse amor? Foi aí que Eva sugeriu tirar xerox de todo aquele monte de cartas, para colocar sob a cabeça do nosso querido velho. Essa solução era a cara dele, por isso não tivemos nenhum problema de consciência e foi fácil convencer nossa mãe.
A memória do amor foi preservada. Minha mãe abriu esse baú, leu e releu tudo, transcreveu aquelas que estavam mais corroídas pelo tempo e passou a expressar o seu amor através da poesia.

Um amigo comentou com Juliana, minha filha, que “a família era o túmulo do revolucionário”. De que família e de que revolucionário estamos falando? Da família “tradicional”, onde impera o conservadorismo, tipo TFP? E que revolucionário é esse que não é capaz de criar relações de tipo novo com a família, principalmente com os filhos? Minha experiência de vida contradiz esse velho jargão.
E para ser coerente, confesso que também falei uma bobagem dessas quando Lucy e Luciano anunciaram seu casamento. O mesmo jargão; “o casamento é o túmulo do revolucionário”. Logo na minha chegada aqui, hoje, a Lucy ao lado de Luciano me cobrou: e agora Carlúcio? Estais casando pela 2º vez? Nem hoje, e também em 1969, essa afirmação se justifica. Para um revolucionário é imprescindível a dimensão de humanidade. O processo de “integração na produção” desenvolvido na AP (Ação Popular) tinha o objetivo de dar aos seus militantes a plena identidade de classe. Morar, trabalhar, viver nas mesmas condições do povo: explorado e oprimido. E a prole? Não foi pela prole que Marx identificou a classe operária? “Proletários do mundo uni-vos” esse é o recado do Manifesto Comunista de 1848.
Filhos... Filhos?
Melhor não tê-los!
Mas se não os temos
Como sabê-lo?

Amo os meus filhos. Esse amor é declarado, é verbalizado a cada momento e é plenamente correspondido. Por e-mail, por telefone, recebo doses diárias do amor de Juliana e Vito. Com Cesar, é ao vivo e a cores, sempre acompanhado de muito carinho. Os três também se amam muito. Na verdade Cesar foi desejado pelos irmãos. A minha separação com Isa (mãe de Juliana e Vito) não deixou nenhum rastilho de amargura que influenciasse negativamente essa relação. Por Isa tenho gratidão e muito respeito, somos amigos e ela também aprendeu a amar o “Cesinha”.
Meus filhos têm um senso de humanidade e justiça muito apurado. Cesar, aos 4 anos de idade, nos questionava sobre a pobreza, sensibilizado com os moradores de rua que viviam embaixo do Minhocão, em São Paulo. Nos enchia de perguntas: “Eram tantos por quê?” Um dia ele propôs para Clara que se acabasse o dinheiro não existiria mais pobres. Juliana com 12 anos escrevia crônicas com forte conteúdo social. De Vito, guardo uma imagem que pode parecer insignificante. Vito tinha apenas 8 anos, estávamos no Morumbi e o Corinthians perdia de 2 X 0 para o Palmeiras quando ele perdeu o interesse pelo jogo e passou a me consolar. Abraçava, alisava meus cabelos, falava para eu não ficar triste que no próximo jogo o Timão venceria... Esse é meu filho, estava repetindo ali a minha relação com seu Castanha nas arquibancadas dos Aflitos, estádio do Náutico.
Com esses filhos eu não posso cometer nenhum deslize. São minha consciência crítica de prontidão. Qualquer expressão ou posicionamento vacilante sou imediatamente cobrado. Foi assim que fizemos o pacto de luta pela vida. Depois de várias idas e vindas à UTI do hospital Português, pautei a minha morte. Precisava de alguma forma preveni-los. Passei a emitir pequenos sinais. Logo recebo uma ligação de Vito (que conectou Juliana por meio de uma teleconferência) e tem começo a conversa mais difícil de se fazer com quem a gente gosta, principalmente com os filhos: discutir a própria morte. Longa conversa...
Assumi uma postura racional com muita explicação médica. O caráter progressivo e irreversível da minha cardiopatia. Tinha que ser realista, a vida é assim, tem começo e fim. Do outro lado da linha meus filhos perguntaram: e onde está o guerreiro? Onde está o lutador? “Pois fique sabendo que você não tem o direito de se entregar. Pelo seu compromisso com o povo, pelo PT, pelos seus amigos, e por nós meu pai, pelo nosso amor. Você não tem o direito de se furtar da convivência com os seus futuros netos”...
Minha cabeça girou, voltei no tempo e revivi a estória de Guillaumet contada por Antoine Saint-Exupéry em “Terra dos Homens”:Guillaumet pilotava sobre os Andes, quando despencou numa tempestade de neve, após a queda Guillaumet começou a andar, andou cinco dias e quatro noites. Exaurido pouco a pouco de seu sangue, de suas forças, de sua razão, avançava com uma teimosia de formiga, erguendo-se depois das quedas, sem permitir nenhum repouso, porque não poderia se erguer, depois, de seu leito de neve. Quando escorregava, precisava se levantar depressa para não ser transformado em pedra.Era preciso resistir as tentações: “Na neve(dizia Guillaumet) a gente perde todo instinto de conservação. Depois de dois,três, quatro dias de marcha tudo o que desejava é o sono.Eu o desejava. Mas ao mesmo tempo pensava: Minha mulher... Se ela crê que estou vivo, ela crê que estou andando. Os companheiros crêem que estou andando. Serei um covarde se não continuar andando. O que salva é dar um passo. Mais um passo. É sempre o mesmo passo que se recomeça...
Por que voltei à “Terra dos Homens”? Quando estava no limite de minhas forças durante a tortura no DOI-CODI, foi essa referência em Guillaumet que me permitiu resistir. Pensava: se meu Pai acredita que estou vivo, sabe que não estou falando. Se meus Camaradas acreditam que estou vivo sabe que não estou falando. Estou vivo e íntegro. Este foi o pacto que fiz com meus filhos. Viver! E viver com integridade.

A fala de Juliana

Meu nome é Juliana em homenagem a uma história de amor de um pai pela filha. Durante o tempo que passou preso, Francisco Julião escreveu às escondidas, em papel de embrulho, o livro “Até quarta, Isabela”. Izabela Juliana de Castro (na verdade com “z”) é filha de Julião com Regina Castro e nasceu em 1964. Plena Ditadura Militar. Quarta-feira era o dia de visitas, quando o líder das Ligas Camponesas podia rever a filha. O livro foi escrito como um testemunho de amor daquele pai, que talvez não tivesse a chance de ver Izabela crescer.
A história de amor de um revolucionário pela filha é também a minha história. Ontem mesmo, numa citação, um velho amigo de meu pai dizia que “a família é a morte do revolucionário”. Pode ser verdade. Mas muitos que partiram para a luta armada foram pegos de surpresa por uma verdade muito mais antiga, eu diria milenar: o amor. Foi assim com Olga Benário e Luís Carlos Prestes. Foi assim com minha mãe e meu pai.
A própria Izabela disse uma vez, em entrevista recente, que o pai sempre foi muito carinhoso, mas que lamentava não ter convivido mais ao lado dele. O fato de ser um político conhecido tomava muito o seu tempo. E quantos filhos de pais revolucionários se ressentem da mesma coisa! Durante minha infância e parte da adolescência, tive contato com muitos deles. Eram crianças como eu, que se encontravam em reuniões, congressos, eleições de chapa, plenárias etc. E que trocariam tudo aquilo por mais almoços em família, fins de semana com passeio de bicicleta ou sorvete no parque.
Talvez poucos militantes (afastados ou na ativa) tenham parado para pensar nisso. A luta em primeiro lugar em muitos casos gerou relacionamentos com pouco convívio. Conseqüentemente, pouco diálogo. Conseqüentemente, pouca manifestação verbal e gratuita de amor. [Aqui vale só registrar a força que minha mãe, mulher de fibra e rara inteligência emocional, sempre teve de segurar as pontas, compreender e preencher essa falta de um modo que até hoje não sei explicar]. Em muitos casos, esse sentimento existe, mas de forma velada e silenciosa.
Mas a vida apronta das suas ironias. Um divórcio e um infarto tornaram minha relação de amor com o meu pai mais explícita e freqüente. Uma separação que aproxima! Já pensou?! Longe de casa, meu pai passou a fazer mais parte das nossas vidas. Foi quando ele apresentou (a mim e ao meu irmão) charutinho de uva, kafta e coalhada seca. Quando assistimos Sociedade dos Poetas Mortos morrendo de chorar. Quando fomos ao parque de diversões e o Vito passou mal de tanto rodar num dos brinquedos. Quando eu, que dizia ser sãopaulina só pra contrariar, assumi minha condição de corinthiana.
Quando senti a força das arquibancadas do Pacaembu pela primeira vez e o Sousa marcou o gol que garantiu a vitória do Timão e (mais que isso!) a minha condição de pé quente, Graças a Deus! Quando meu pai descobriu suas aptidões culinárias e passou a fazer filé com alho e muita manteiga, espaguete ao pesto e outras delícias. Quando ele se empenhou na dura tarefa de me fazer gostar de Pitágoras. Quando começaram nossas idas ao Filé do Morais pra falar de sexo com camisinha e outros assuntos importantes. Feminista convicto, ele me dizia o quanto era importante lutar pela minha emancipação, nunca depender de marido. Falava sobre a importância de investir na carreira. Eu entendi e fiz o meu melhor. Por mim, mas também pra que ele tivesse orgulho da filhota. Depois veio o Cesinha pra unir ainda mais a gente. Veio a escolha da profissão, depois a faculdade, as primeiras conquistas profissionais. E meu pai estava sempre lá, participando de tudo. Mas ainda assim, faltava olhar nos olhos e dizer: “Eu te amo, meu pai”! E ouvir: “Também te amo, meus filhos”.
Fevereiro de 2005. Meu pai sofre um infarto que compromete boa parte do coração... Vazio.
A possibilidade de perder uma pessoa que a gente ama muito tem um poder transformador. De repente, como um tapa na cara, me dei conta do tempo perdido, da palavra incompleta, de tanto amor abafado por ressentimentos estúpidos. Meu pai, meu herói de voz grave e olhos grandes, que sobreviveu às torturas mais cruéis, capaz de nadar grandes distâncias sem tomar fôlego... de repente mostrava sua condição de humano, sua fragilidade.
Mas Deus caprichosamente nos deu uma segunda chance. E eu agarrei essa chance com todas as forças. Todos nós. Fizemos um pacto pela vida e também pelo amor. Porque amor precisa, sim, ser declarado. Superlativamente declarado.
Eu te amo, meu pai, por sua trajetória de vida, pela opção de luta que fez, pelas relações que construiu nessa caminhada, pela sua humanidade, pelos seus ensinamentos, por ter nos feito pessoas de bem, pelo homem que você é. E por tanto mais, que vou precisar de muito mais tempo para agradecer. Entendo que lá atrás (e hoje, inclusive) havia um mundo melhor a construir, uma sociedade mais justa e igualitária. Era e ainda é a herança que você nobremente escolheu deixar para os seus filhos. Para todos os homens e mulheres.
Ainda tem muito da sua experiência de vida que eu e meus irmãos precisamos absorver. E tem muito que queremos lhe oferecer também. Os netos, por exemplo! Quero que eles tenham um avô Castanha, tal qual eu tive a honra de ter. E eles terão um tio César também! É o ciclo da vida. Vida, meu pai. Vida que a gente às vezes demora pra perceber o quanto é preciosa. Mas quando descobre, é como encontrar um tesouro.
Te amo profundamente.

A fala do meu filhote Vito
Minha história, praticamente desde a gestação, sempre foi marcada pela palavra Saudade. Aos três meses de idade tive que mudar para São Paulo com minha família, por conta das difíceis circunstâncias do final dos anos 70.
Cada ano que passava me deixava mais graduado nessa “Escola da Saudade”. Hoje posso dizer que sou Doutor nessa matéria.
Minha infância foi marcada pelas longas férias de final de ano, sempre com a presença muito forte do velho Castanha e de Cesar – pessoas que tinham douçura, amor e alegria ímpares.
A vida nos tirou o velho Castanha e o tio Cesar de uma forma muito rápida e sofrida. Sempre que olhava para o passado pra relembrar o avô e o tio me vinham dois sentimentos: a conhecida Saudade e a Tristeza. A primeira delas sei conviver bem e nem preciso explicar por quê... mas a segunda sempre me incomodou bastante.
Fico triste por não ter tido quem sabe a oportunidade de fazê-los saber de cada milímetro do meu Amor... triste por eles não terem tido a oportunidade de me ver como Homem e se orgulharem de mim... ficava triste por pensar que talvez não pudesse encontrar em outra pessoa tanto amor, tanta douçura e alegria como tinha com eles. Era neles que eu espelhava tudo o que eu esperava de um Pai – ossos do “ofício” de ter um Pai revolucionário e muito ocupado.
O divórcio incrivelmente me aproximou deste Carlúcio Castanha; e com isso quantas foram as longas conversas sobre a vida, quantos abraços intermináveis a cada gol do Timão, quantos finais de semana com macarrão de primeira qualidade, carteado, filmes (você sempre dormia nos primeiros 5 minutos), quantas horas com o Cesinha ainda bem pequeno dormindo na rede comigo, quanto estudo para o vestibulinho, escola técnica e vestibular na mesa da sua sala... quanta relação verdadeira de Pai e Filho que tivemos sem nem perceber? Mas isso ainda era pouco para o tamanho do nosso Amor – a palavra ainda estava incompleta...
O tempo passou e há dois anos, quando me passou pela cabeça a possibilidade de perder você, meu Pai, meu mundo girou. Tive novamente a sensação de, quem sabe, não ter a chance de te mostrar o meu Amor e mais uma vez carregar essa tristeza para o resto dos meus dias. Tudo isso me fez ter uma mudança de atitude e de postura diante da vida; e busquei por auto-conhecimento – com isso a nossa relação mudou.
Nesses dois anos quantas foram as oportunidades em que declaramos todo o Amor que temos um pelo outro? Quantos e-mails, quantos telefonemas, quanto olho-no-olho, meu Pai? É a palavra que faltava que finalmente apareceu!... Isso não fez com que a gente se amasse mais, porém trouxe toda a diferença e acabou com qualquer pendência que ainda tínhamos.
Hoje, e cada dia mais, fico muito feliz em ter te escolhido, meu Pai... pois descobri em você novamente a douçura, o Amor e a alegria que pensava ter perdido junto com Cesar e o velho Castanha.
Temos uma missão muito bonita nesse mundo, Pai, e te prometo que ainda vou te fazer orgulhar muito mais de mim... quero te dar um neto e, ao seu exemplo, quero abraçar essa criança e fazê-la sentir a mesma energia de quando nos abraçamos.
Te amo por toda a eternidade.

***

Meu irmão Cesar
Nós éramos cinco irmãos: Emília, eu, Eriluce, Eva e Cesar, o caçula. A vida vai nos levando para caminhos distantes, mas a nossa relação preserva os valores que aprendemos desde a infância, com Seu Castanha e Dona Erival. Esses valores estão consolidados porque foram transmitidos pelo verbo: Não roubar! E principalmente pelo exemplo, porque foram praticados diariamente, com uma retidão de coerência exemplar.
Quero homenagear as minhas irmãs em memória ao nosso irmão caçula César, que nos deixou em 1990. E como disse Vito, ficou uma enorme saudade.
Cesar era o tio que todo sobrinho gostaria de ter. Cheio de amor pra dar, disponibilidade total. E cada sobrinho guardava com ele uma cumplicidade particular. Generoso, hospitaleiro, com um coração enorme no limite da ingenuidade.
Cesar, meu querido irmão, o nosso diálogo foi cortado bruscamente, justo quando nós começamos a falar mais profundamente um do outro, nas dunas de areia da praia do Pina. E agora a palavra que faltou não pode ser mais dita. É terrível meu irmão. É imperdoável...

Clara Mulher, Amante, Companheira

Vou falar da paixão, mas, antes me permitam falar da Mulher...
Nós os homens, temos uma dívida histórica com as mulheres. Elas não nos devem nada do seu doloroso processo de emancipação. E ainda contabilizam um alarmante número de violência, estupro e morte. Minha consciência não permite me colocar como inocente diante desse quadro. Quero me desculpar de todas as indiferenças, as distrações, as insensibilidades e as desatenções durante esses 18 anos de convivência com você Clara. Chico Buarque já alertava:

E qualquer desatenção, faça não
Pode ser a gota d’água
E como militante de esquerda tenho que responder por séculos de opressão sobre todas as mulheres.
Em 1969 aprendi uma lição com as tecelãs da fábrica da Macaxeira. Meu trabalho militante de aproximação, conscientização e nucleação, por várias razões era restrito basicamente aos companheiros. A fábrica estava de gerente novo e, como sempre, para se afirmar, o gerente novo baixa um conjunto de regras disciplinares. As tecelãs só tinham meia hora de almoço. Quando apitava, a porta já devia estar aberta e alguém da família já estava esperando com a marmita quentinha.Foi quando o gerente novo resolveu enfiar um cadeado naquela enorme porta de duas folhas, com ordem de só abrir após o apito.
Deparei-me com uma cena impressionante: aproximadamente 80 mulheres tecelãs enfrentando o temível déspota, dedo em riste, enfiado no nariz daquele gerente, que por sua vez, recuou até a parede. Sua fragilidade estava expressa nos lábios trêmulos e olhos de pavor, frente à fúria das tecelãs. Elas gritavam todas ao mesmo tempo. Mas o caráter de classe daquele discurso coletivo, com frases completadas, com o cotidiano de mãe, estou certo que nenhum companheiro militante era capaz de fazer.
Em um minuto o cadeado daquela porta rebentou. Essas companheiras tecelãs erguem a cabeça, tinham um brilho nos olhos, áurea e passos fortes da classe operária vitoriosa.
Dessa data em diante mudei radicalmente minha concepção. Compreendi que não existe revolução que não passe pelas mulheres.

Para falar de nossa paixão, recorri ao baú (nós também temos um). Escolhi uma poesia que se refere ao carnaval de 89 na Praça Castro Alves em Salvador e um pedaço da carta que escrevi em julho de 91.
Lua Nascendo,
Lua Clareando,
Lua Clara...
A opressão milenar explode em violência
Se mistura a liberdade, que é dona da hora, do corpo e da rua
Resgatando Zumbi...
A magia do ritmo toma conta de homens e mulheres que loucamente dançam.
No centro da praça uma “LUA NASCENDO”, cheia de viço, úmida de amor.
Morde, roça e dança até a explosão que encharca seu sexo.
Numa platéia de Deuses de Ébano e a cumplicidade do poeta que é o dono da praça,
Ardemos na paixão desse carnaval...
A carta completa a dimensão dessa relação vivida intensamente nesses 18 anos:
...sou partidário da opinião de que o amor, a relação pessoal, a paixão entre um homem e uma mulher não se coloca em divórcio com o compromisso com a humanidade, com a emancipação dos povos, com a revolução. Pelo contrário! O revolucionário é tanto mais revolucionário quanto mais inteiro, mais feliz se colocar na causa da revolução.
E sem dúvida será cada vez melhor amante quanto mais profunda for sua compreensão da revolução, na perspectiva da emancipação da humanidade toda, na busca da construção do homem novo...
...só um processo libertário, na construção incessante do nosso sonho da nossa utopia, é possível realizar relações entre um homem e uma mulher, que rompam com a falsa moral burguesa (hipócrita), que rompam com todos os preconceitos, que se libertem da relação possessiva, que sejam realmente emancipadoras.
Clara vive o prazer sem nenhum sentimento de culpa. É Reichiana, movida à “energia orgone cósmica” e, por acréscimo, ainda tem Rosa Luxemburg como referência de mulher.


Como presente de casamento, quero lhe dar o que toda mulher gostaria de ter no seu amante: a sensibilidade da alma feminina de Chico Buarque de Holanda (Eu sou sua menina, viu? Ele é o meu rapaz...) e a paixão de Vinicius de Morais.
Soneto da Fidelidade
De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento
 
Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento
 
E assim quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama
 
Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama 
Mas que seja infinito enquanto dure
 
 
 
***
A MILITÂNCIA
Li o Manifesto Comunista com 15 anos. Foi Zeca (José de Calazans) que me passou. Nós estávamos reerguendo o grêmio da escola. Tarcísio era o presidente, Zeca o secretário geral e eu o tesoureiro. Quando terminei a leitura, conclui que a mensagem do manifesto não era muito própria para Zeca, e sim para mim. Ele andava de camisa de helanca e tinha bicicleta. As atividades do grêmio se restringiam a eventos esportivos e culturais. Dois anos depois veio o golpe e a nossa juventude vai se transformando numa velocidade enorme. Os jovens iam se organizando nos grupos de juventude, os “grupões”, com o apoio da igreja progressista.
O Grupo de Juventude de Brasília e Pina
Com o apoio dos Padres Oblatos da Igreja de Brasília Teimosa, fundamos o JUBRAPI (Juventude Unida de Brasília e Pina). Que turma boa! Hélcio, Heber, Jair, Gonzaga, Graça, Cristina, Zezé, Mirian, Mirtes, Valdete, Dinorá, Odir, Milton Banana, Valmir, Eva, Conceição, Osnir Edmilda, Berto, Nelson, Jerônimo, Marcos Pompeia e outros tantos nomes que me fogem da memória. Brasília Teimosa era terra fértil para plantarmos as sementes de nossa utopia. A paróquia era dirigida por padre Jaime (um bom americano do Norte), um lutador incansável com grande liderança no bairro. Padre Jaime nos deu total autonomia e as atividades do grupo tomavam conta de todo nosso tempo livre. Fazíamos reunião no galpão atrás da Igreja, tínhamos a nossa disposição um mimeógrafo a tinta, onde imprimíamos o nosso jornal. Líamos e discutíamos tudo (Lebret, Teilhard Chardin, Sócrates, Platão, Leo Huberman). E declamávamos os poetas Castro Alves, Vinícius de Moraes, Fernando Pessoa e João Cabral de Melo Neto, Brecht, Neruda. O grupo de teatro Evolução, dirigido por Hélcio de Matos, fez um grande sucesso, com a peça “operário em construção”, com a honra de se apresentar no congresso Nacional da JOC.
No JUBRAPI o crescimento das pessoas – de cada um, na superação de limites e dificuldades, sua emancipação – era o valor que unia o grupo. A palavra era instrumento desse crescimento e nós tínhamos ouvidos para ouvi-la. Ficamos definitivamente entrelaçados pelas esperanças e frustrações, alegrias e tristezas, vitórias e derrotas, pelas dúvidas e certezas e principalmente pelos sonhos daqueles jovens. Assim amadureceu minha concepção de Homem e de Mundo.


A ditadura recrudescia. Rápido me deparei com a questão da Revolução Brasileira. Fiz um giro de 180º. Meu velho (era assim que o chamava) alimentava o sonho que de ter um filho engenheiro e eu decidi ser operário de fábrica. Pobre do meu velho ficou inconformado, fizera tanto sacrifício para me educar e não entendia, não podia entender a minha opção. Para completar a perplexidade do meu pai, saí de casa e fui morar com um grupo de companheiros num barraco em Santo Amaro. Conciliava meu engajamento político na tarefa da Revolução Brasileira com a opção de ser um profeta. Com a missão de interpretar os sinais do seu tempo e realizar os desígnios de Deus na construção do novo Céu e da nova Terra. Juntei-me a um grupo de ex-seminaristas (Ribamar, Célio, João Francisco e Ivair) acompanhados por Dom Marcelo Cavalheira.
Através do meu querido e saudoso irmão e companheiro Ivair Gabriel Barreto, entrei na AP (Ação Popular). A primeira tarefa: eu, Ivair, Socorro Abreu, Nascimento, Antônio Vieira, Custódio, Arnaldo “O Gordo” recebemos uma incumbência da direção: distribuir um panfleto na troca de turno das 22 horas na fábrica da Macaxeira. O objetivo do panfleto era o de apoiar a luta de resistência dos tecelões e tecelãs que não abriam mão da sua estabilidade (após dez anos de contrato de trabalho) para aderir ao FGTS. Como represália, a direção da empresa confinou esses companheiros num salão batizado de “museu”, em referência a depósito de velhos.
A tarefa era completa: escrever o texto, imprimir os panfletos, organizar a distribuição, cuidar do esquema de segurança e organizar a retirada. Só após a confirmação de que todos estavam bem e que não houve nenhum problema de segurança, podíamos comemorar nossa vitória. Dependia da avaliação do momento, feita pelos dirigentes que estavam cobrindo nossa ação, se haveria discurso ou não. Ivair me comunicou: você foi escolhido para falar três minutos para aquele grupo de operários que se aglomeravam no portão de entrada. Me dirigi ao grupo, enchi o pulmão e soltei a palavra (...). Ao final se aproximou um camarada magricela (parecia um caniço meio torto) para me cumprimentar. Era o camarada Zé.
Assim se tecia o nosso crescimento, na medida em que assumíamos responsabilidade, íamos consolidando a nossa formação política. O Camarada Zé assumiu diretamente o acompanhamento da minha formação. Estudava com ele dialética, materialismo histórico, textos de Lênin e não faltava o livro vermelho Citações do Presidente Mao Tsé-tung. Ele me aguardava na parada de ônibus em frente ao portão de saída da fábrica da Torre, empresa de 3.500 operários, onde eu trabalhava de serralheiro na oficina mecânica. Daí, batíamos pernas pelas ruas e becos da cidade discutindo esses textos, com o objetivo de encontrar neles as justificativas para definição do caráter da sociedade brasileira e, conseqüentemente, o caráter da Revolução.

O TRABALHO

A minha primeira experiência de trabalho foi na fábrica. Vivi profundamente, em cada fábrica que trabalhei, a essência do trabalho em todas as suas dimensões: ● a relação direta com a transformação da natureza (matéria-prima em produto), agregando valor, produzindo riqueza; as relações de trabalho, com suas duas faces ou seus dois extremos: a face determinada pelo modo de produção capitalista com base na exploração e opressão, através do despotismo asfixiante conduzido pela mão de ferro do capataz. E a face das relações construídas a partir da solidariedade e a consciência de uma identidade de classe que ia se tecendo diariamente na fábrica. O trabalho me enchia de dignidade.
Sem o seu trabalho o homem não tem honra
Sem a sua honra, se morre, se mata
Saudoso Gonzaguinha.
Cada peça que produzia, cada máquina que consertava, tinha que fazê-lo bem feito. A minha relação com o trabalho é antes de tudo a relação do homem frente à necessidade de transformar a natureza para sua sobrevivência. Está acima do percalço da exploração capitalista. Além do que ser um bom profissional era condição para ganhar o respeito dos companheiros. E conseqüentemente ganhava autoridade para fazer a luta coletiva de resistência à exploração capitalista, organizando os melhores da classe no engajamento da luta revolucionária.

AS PRISÕES
Aprendi que a revolução era o último estágio da luta de classes. Assim como um revolucionário preso diante do seu torturador está vivendo o último estágio da luta ideológica. Esta compreensão foi a armadura com que enfrentei minhas prisões. A consciência de que estava lutando a mais ferrenha das lutas ideológicas me dava uma força enorme.
Para os torturadores, a meta, o objetivo final, não se tratava apenas de obter meia dúzia de informações que levasse a outras prisões e conseqüentemente fossem desmantelandas as organizações de esquerda que combatiam a ditadura. O objetivo maior dos capitães, coronéis e generais formados na escola superior de guerra – que comandaram a tortura em nome da “segurança nacional” – era o de se apoderar da nossa alma: aprisioná-la, escravizá-la, confundi-la, atormentá-la. O objetivo era o de destruir o nosso sonho, a nossa utopia. Quebrar nossa convicção socialista e destruir todos os valores que alicerçavam nossa ideologia. É isso que justifica o martírio de Frei Tito, mesmo depois da morte de Carlos Maringuela. Era isso que estava em jogo em cada pergunta, seguida do choque elétrico ou de outras formas de tortura. Por isso o silêncio era a nossa resposta.
Esta era a luta!
E para muitos de nós foi a luta final.

Quero prestar minha homenagem a todos os companheiros e companheiras que deram a sua vida na luta pela emancipação do povo. Esses homens e mulheres venceram a luta final! Mantiveram livre a sua alma revolucionária, preservaram os sonhos, a utopia, a convicção socialista que acalentou suas juventudes.
Tive o privilégio de conviver com alguns desses companheiros. Com Eduardo Collier e Fernando Santa Cruz nos encontros dos grupos de juventude (grupões). Com padre Antônio Henrique nas celebrações de sábado na Rua do Giriquiti. Na “liturgia da palavra”, padre Henrique fazia questão de mostrar o radicalismo contido nas palavras duras dos Profetas quando denunciava a opressão sobre os pobres. Com Raimundo Gonçalves Figueiredo (companheiro “Marcos”), que fez o meu treinamento de tiro nas matas de Paulista.

Sou testemunha da morte de Gildo Macedo e Zé Carlos da Mata Machado, quando estive preso no DOI-CODI de Recife, em outubro de 1973. Mata Machado chegou ao DOI-CODI na quarta-feira, 25 de outubro. Foi levado direto para sala de interrogatório, onde foi sacrificado com Gildo Macedo. A sala de tortura cheirava mal. É comum o torturado evacuar quando está pendurado no pau-de-arara, além do cheiro forte de sangue e vômito. Eles lavavam tudo com creolina e o resultado era um cheiro horrível. Os gritos dos companheiros vararam a madrugada do dia 26 até mudar de tom.
Na madrugada do dia 27, fui levado para interrogatório, como sempre, com os olhos vendados por uma borracha preta de câmera de ar. Ao passar em frente de uma das salas, senti aquele cheiro horrível de sangue e vômito. O carcereiro me guiava pelos ombros e com sarcasmo falou: “cuidado para não pisar no teu companheiro”. Pressenti que alguém agonizava, deitado ao chão, gemia fraco junto com a respiração. No outro dia a noticia da morte de Gildo Machado e Mata Machado se espalhou pelos corredores do DOI-CODI.
Quero saudar todos esses heróis do povo na memória de João Batista Franco Drummond, morto na chacina de 16 de dezembro de 1976, no alto da Lapa em São Paulo, quando participava da reunião do comitê central do PCdoB.
Camarada “Zé”! Meu irmão magricela, você não morreu em vão! A luta do povo avança! Guardo como tesouro os seus ensinamentos: “servir ao povo de todo coração”, como ensinou Mao Tsé-tung, será sempre o guia de minha prática militante.

A REAFIRMAÇÃO DA OPÇÃO PELO SOCIALISMO

O alicerce ideológico
Minha concepção de homem e de mundo está na raiz da minha opção pelo Socialismo. Este texto tentou mostrar momentos, situações, experiências vividas e principalmente as pessoas responsáveis pelos valores que foram sedimentando esta opção, que se embrenhou na minha alma e é o meu compromisso de vida.
Seu Castanha está bem no começo dessa história. Sua capacidade de amar, seu senso de justiça, sua generosidade, sua honestidade, sua solidariedade e principalmente sua coragem foram o exemplo permanentemente presente em cada momento da minha formação.
São muitas estórias pra contar do meu querido velho, que marcam seu exemplo de coragem e dignidade.
Em novembro de 73, logo depois que fui solto, fomos intimados a comparecer ao quartel da polícia do exército em Olinda. Lá estavam os pais (dos presos solteiros) e os respectivos esposos ou esposas (dos presos casados). A reunião oficializava o ato de soltura, porém os responsáveis tinham que assinar uma declaração que o filho fora entregue com todos os seus pertencentes e em pleno gozo de saúde física e mental. Numa sala grande, o coronel Cúrcio Neto (temido comandante do DOI-CODI) dava as ordens a meia dúzia de capitães que faziam o papel de escrivães, datilografando os dados dos presos e a tal declaração para assinatura dos responsáveis. Meu velho recebera do capitão aquele documento acompanhado de uma caneta, respirou fundo e falou alto e grave:
NÃO ASSINO! Meu filho foi barbaramente torturado!”
Fez-se silêncio no salão. Este silêncio percorreu os corredores e ocupou todo o quartel. Alguém ousou desafiar o chefe da tortura em Pernambuco, aquele que ainda tinha nas mãos as marcas do sangue de Gildo e Mata Machado. O coronel, um homem de baixa estatura e gestos rápidos, atravessou o salão quase correndo e ordenou ao capitão:
– Muda os termos, muda os termos...
O gesto de coragem do meu pai foi acompanhado pelos outros responsáveis que também repetiam: “– Não posso assinar!”. E mesmo aqueles que já tinham assinado pediram de volta o documento para que fosse corrigido.
É impossível descrever o que senti diante daquele homem, meu herói. Quanto orgulho. Naquele instante você reluzia vitorioso, meu pai. Me veio a imagem de um gladiador que recolhera na arena seu filho ferido. Na arena, outras vítimas protegidas por seus entes queridos, ainda temiam a fúria sanguinária dos seus algozes, que tinham poder para dizer: “– Voltem todos para jaula!”.
Você também tinha consciência desse perigo e mesmo assim ergue a adaga da justiça diante de “Nero”. Outros guerreiros lhe acompanham no gesto. Aquele gesto transborda a sala do quartel. Como águia, voa sobre as ruas e cidades se somando a outros gestos de resistência. Chegam a Minas Gerais para aplacar a dor de Edgar e Yedda, pais de Mata Machado.
E o coronel derrotado toma ciência que não conseguiu destruir nosso sonho, não conseguiu aprisionar nossa alma.

Qual a perspectiva do capitalismo?
Não é necessário reescrever O Capital ou desenvolver um tratado de análise econômica para identificar o caráter da crise do capitalismo no Brasil e no mundo. E os desdobramentos dessa crise para a vida do povo e das nações. Particularmente para aquelas que estão fora do “G-8”.
Minha abordagem é política. Quero expor sobretudo o caldo ideológico que orienta hoje a política neoliberal ou garante sustentação à sua reprodução.
Para mim, quando se pauta a questão de ser ou não ser Socialista, tem que se perguntar antes: qual a perspectiva de humanidade, de bem estar social, de eqüidade que o capitalismo pode oferecer aos povos? E onde está este projeto? Qual o Partido ou grupo social o defende? Se não respondermos a essas questões, vamos limitar a nossa discussão aos jargões e clichês de sempre. E isso não dá caldo.
A esquerda de um modo geral, o PT e o grande contingente de homens e mulheres socialmente sensíveis – sem comprometimento com os interesses insaciáveis do capital – estão desafiados a enfrentar a discussão do projeto estratégico para o Brasil e a América Latina frente o drama do esgarçamento do tecido social e as oportunidades que o cenário político oferece.
E para que esta discussão produza frutos, se transforme em política e se apóie em base social consistente, organizada, capaz de disputar hegemonia na sociedade, ela tem que aprofundar, nos colocar frente ao espelho. E sem revanchismo, sem caça às bruxas ou sectarismo, temos que ser capazes de chegar ao fundo do poço da crise da esquerda e do PT.

Dois elementos vitais se combinam e se complementam no ápice da exploração e opressão capitalista hoje, de forma concreta e perversa:
  • O modo de produção capitalista – que antes se apropriava da nossa força de trabalho para gerar “mais valia” – hoje se apropria também da nossa capacidade de pensar. E para submeter a nossa força e o nosso cérebro à sanha da corrida incessante pelo lucro, o capitalismo introduziu novas formas de gerenciamento do tipo “toyotismo”, que incorpora os trabalhadores na competição pelos interesses do capital. Conceitos como “competitividade”, “empregabilidade”, “capital humano” foram introduzidos nas relações de trabalho e logo foram adotados como consensuais na sociedade.
  • A outra novidade da exploração capitalista é que todos os valores – inclusive aqueles desfraldados pelo liberalismo republicano, no capitalismo nascente – cederam lugar a um único valor medido pela posição de cada um frente ao mercado. O caminho para o “sucesso” através do individualismo exacerbado é o de “levar vantagem em tudo” em detrimento de qualquer outra coisa, valor ou pessoas.
Assim a relação entre as pessoas corre nos trilhos de uma ideologia de tal forma massificada, que quem pensar diferente entra no rol dos ingênuos ou otários, desprovidos da ambição pelo sucesso...
Neste vazio de valores, tudo se justifica. Da corrupção ao crime organizado. Que outro motivo explicaria as razões que levaram aquela moça de São Paulo a encomendar a morte da colega para ocupar o seu lugar no trabalho? A sociedade está contaminada. Este é o drama! O que mais o capitalismo, na sua forma neoliberal, tem para oferecer à humanidade?
A violência se espraia...
Cresce a xenofobia, o preconceito, a intolerância, o fanatismo religioso e as diferenças étnicas se transformam em guerras fratricidas...
Aumenta em progressão geométrica o fosso entre ricos e pobres e cresce a fome e a miséria, furtando a dignidade de pessoas e Nações.
Cresce a associação do capital com o crime organizado, como retorno mais rápido e muito mais robusto dos seus investimentos.
A agressão ao meio ambiente, na corrida pelo lucro, já ameaça o futuro da humanidade...
Os Estados, subordinados ao “Deus Mercado”, estão tolhidos à condição de Estado mínimo. Impedidos de exercer o papel de indutores do Desenvolvimento Econômico.
A volatilidade e liberdade com que o capital financeiro (especulativo) transita, devorando economias no mundo inteiro, ou quando impõe subordinação e entrava o crescimento em vários países.
Por último, o mundo assiste impotente a insana política belicista do Pentágono, que transgride a autodeterminação dos Povos e Nações, justificada por falsificações grotescas para satisfazer os interesses políticos e econômicos do império capitalista.

***
Ser socialista hoje
Ser Socialista é, antes, adotar um modo de vida. A história nos desafia para resgatarmos os valores fundastes da esquerda: a solidariedade, o companheirismo, a lealdade, a justiça, a indignação com a iniqüidade e miséria humana. Propagandear esses valores, tê-los como referência e critério de nossa ação política e sobretudo vivenciá-los na nossa prática diária é pressuposto político/ideológico imprescindível ao militante socialista. Esta é a tarefa que o momento atual coloca para homens e mulheres que continuam lutando pela emancipação do nosso Povo, embalados pelo sonho de uma sociedade socialista.
Não se trata de nenhum voto religioso ou atitude monacal. E sim de uma opção ideológica estratégica para construção do Socialismo. No cenário pós “consenso de Washington”, o resgate desses valores são essencialmente políticos, de combate frontal ao neoliberalismo.

Servir ao povo de todo coração
A palavra de ordem do presidente Mao Tsé-tung é o motor do ideário Socialista. Sem amor ao povo não existe firmeza ideológica que se sustente frente aos “encantos da burguesia”. As expectativas de riqueza e poder, a ostentação do luxo, a corrupção como instrumento de acumulação e realização de projetos pessoais são apelos cotidianos, respaldados pela idéia de “levar vantagem em tudo” a caminho do sucesso.
Identidade de classe não se compra no mercado. Ou você tem ou não tem. Ou a miséria humana lhe enche de indignação ou você é indiferente. E aqui não basta a sensibilidade do sociólogo. Não para o Socialista! Para nós, a razão de ser da nossa existência está visceralmente comprometida com a luta pela emancipação do nosso povo, pelo fim de toda forma de exploração e opressão, pela realização da nossa utopia, por um mundo de homens e mulheres livres.

A prática é o critério da verdade
O Socialismo não pode ser concebido como algo longínquo, na linha do horizonte, a ser conquistado um dia a partir da tomada de poder pelo proletariado. Ou você vive o socialismo hoje, a partir das relações construídas, da coerência de sua prática política com o projeto e ideário Socialista ou não existe Socialismo. Não com a sua contribuição!
“A prática como critério da verdade” é outro ensinamento de Mao Tsé-tung que permanece atual (principalmente quando estamos ocupando o lugar de gestor público). A coerência é o principal indicador da justeza de nossa ação. Declarar-se Socialista sem coerência na prática soa como jargão. E sequer serve como elemento de propaganda do Socialismo. Pelo contrário! Vulgariza-o frente ao povo e à sociedade. Transforma-se em instrumento de antipropaganda do Socialismo.

Sou Socialista:
Não dá para enfrentar a ameaça que paira sobre o futuro da humanidade, a crise de valores e a desgraça que avança com o esgarçamento do tecido social, desconsiderando o forte caráter de classe que esses problemas carregam.
Por isso, inconformado com a miséria humana, solidário a todos os explorados e oprimidos do Brasil e do mundo, reafirmo o meu compromisso com o Socialismo hoje. É o presente que eu quero dividir com meus camaradas e amigos na comemoração dos meus 60 anos.

Carlúcio Castanha – verão de 2007
O último discurso
(O Grande Ditador)
Sinto muito, mas não pretendo ser um imperador. Não é esse o meu ofício. Não pretendo governar ou conquistar quem quer que seja. Gostaria de ajudar – se possível – judeus, o gentio... negros... brancos.
Todos nós desejamos ajudar uns aos outros. Os seres humanos são assim. Desejamos viver para a felicidade do próximo – não para o seu infortúnio. Por que havemos de odiar e desprezar uns aos outros? Neste mundo há espaço para todos. A terra, que é boa e rica, pode prover a todas as nossas necessidades.
O caminho da vida pode ser o da liberdade e da beleza, porém nos extraviamos. A cobiça envenenou a alma dos homens... Levantou no mundo as muralhas do ódio... e tem-nos feito marchar a passo de ganso para a miséria e os morticínios. Criamos a época da velocidade, mas nos sentimos enclausurados dentro dela. A máquina, que produz abundância, tem-nos deixado em penúria. Nossos conhecimentos fizeram-nos céticos; nossa inteligência, empedernidos e cruéis. Pensamos em demasia e sentimos bem pouco. Mais do que de máquinas, precisamos de humanidade. Mais do que de inteligência, precisamos de afeição e doçura. Sem essas virtudes, a vida será de violência e tudo será perdido.
A aviação e o rádio aproximaram-nos muito mais. A própria natureza dessas coisas é um apelo eloqüente à bondade do homem... Um apelo à fraternidade universal... À união de todos nós. Neste mesmo instante a minha voz chega a milhares de pessoas pelo mundo afora... Milhões de desesperados, homens, mulheres, criancinhas... Vítimas de um sistema que tortura seres humanos e encarcera inocentes. Aos que me podem ouvir eu digo: “Não desespereis! A desgraça que tem caído sobre nós não é mais do que o produto da cobiça em agonia... da amargura de homens que temem o avanço do progresso humano. Os homens que odeiam desaparecerão, os ditadores sucumbem e o poder que do povo arrebataram há de retornar ao povo. E assim, enquanto morrem homens, a liberdade nunca perecerá.
Soldados! Não vos entregueis a esses brutais... Que vos desprezam... Que vos escravizam... Que arregimentam as vossas vidas... Que ditam os vossos atos, as vossas idéias e os vossos sentimentos! Que vos fazem marchar no mesmo passo, que vos submetem a uma alimentação regrada, que vos tratam como gado humano e que vos utilizam como bucha de canhão! Não sois máquina! Homens é que sois! E com o amor da humanidade em vossas almas! Não odieis! Só odeiam os que não se fazem amar... os que não se fazem amar e os inumanos!

Soldados! Não batalheis pela escravidão! Lutai pela liberdade! No décimo sétimo capítulo de São Lucas está escrito que o Reino de Deus está dentro do homem – não de um só homem ou grupo de homens, mas dos homens todos! Está em vós! Vós, o povo, tendes o poder – o poder de criar máquinas. O poder de criar felicidade! Vós, o povo, tendes o poder de tornar esta vida livre e bela... de fazê-la uma aventura maravilhosa. Portanto – em nome da democracia – usemos desse poder, unamo-nos todos nós. Lutemos por um mundo novo... um mundo bom que a todos assegure o ensejo de trabalho, que dê futuro à mocidade e segurança à velhice.
É pela promessa de tais coisas que desalmados têm subido ao poder. Mas, só mistificam! Não cumprem o que prometem. Jamais o cumprirão! Os ditadores liberam-se, porém escravizam o povo. Lutemos agora para libertar o mundo, abater as fronteiras nacionais, dar fim à ganância, ao ódio e à prepotência. Lutemos por um mundo de razão, um mundo em que a ciência e o progresso conduzam à ventura de todos nós. Soldados, em nome da democracia, unamo-nos!
Hannah, estás me ouvindo? Onde te encontrares, levanta os olhos! Vês, Hannah? O sol vai rompendo as nuvens que se dispersam! Estamos saindo da treva para a luz! Vamos entrando num mundo novo – um mundo melhor, em que os homens estarão acima da cobiça, do ódio e da brutalidade. Ergue os olhos, Hannah! A alma do homem ganhou asas e afinal começa a voar. Voa para o arco-íris, para a luz da esperança. Ergue os olhos, Hannah! Ergue os olhos!