domingo, junho 13, 2010

Educação e Liberdade e a Paideia


Autor: Moisés Basílio Leal
 
Resenha da palestra do Prof. Dr. José Sérgio Fonseca de Carvalho (FEUSP) – “Educação, liberdade e as pedagogias da autonomia. Uma crítica a partir do pensamento de Hannah Arendt.”  
(Palestra proferida na VIII Semana de Estudos Clássicos da FEUSP, dia 7 de maio de 2010.)

            O Prof. José Sérgio deu inicio à sua exposição destacando a polissemia das palavras “liberdade” e “educação”, pois ambas são eivadas de disputas ideológicas. Alertou-nos também para evitarmos a falácia socrática de só discutir os conceitos se os mesmos estiverem perfeitamente definidos.
            A ambigüidade do conceito de liberdade depende do contexto lingüístico. Em tom de chiste o Professor José Sérgio afirmou que não há ambigüidade quanto ao conceito de liberdade, quando nos referimos à situação de um preso ou da estação do metrô da cidade de São Paulo do bairro da Liberdade. Mas, quando na esfera do discurso político sempre há a ambigüidade, seja na ideia de liberdade de mercado ou na de liberdade de religião.
            Do mesmo modo a palavra educação traz consigo essa ambigüidade. O Professor José Sérgio nos lembra a ideia do Professor José Mario Pires Azanha (FEUSP), de que no geral todos concordavam com a educação democrática, mas que na prática essa concordância se desfazia. Por quê? Por conta das disputas latentes e conflitantes no interior da sociedade. Outra questão é o que entendemos por educação de qualidade. Do campo da direita ao campo da esquerda, todos concordam com o a expressão geral educação de qualidade. As dificuldades aparecem, quando começamos a construir nossas práticas educativas. A prática de um colégio como Bandeirantes, por exemplo, é a de privilegiar o mérito e questionar a heterogeneidade, como parâmetro de educação de qualidade. Já para Platão, em seus diálogos Górgias, a competência se mede pelo resultado obtido, pois para Platão a ação política é da esfera da ética e política e não da esfera da competência e eficácia. 
            Para precisar essa ambigüidade da liberdade, o Prof. José Sérgio explicita o contraste entre os pensamentos de Benjamin Constant (o francês) e de Hannah Arendt, diante da questão: Sócrates era um homem livre?
            Para Arendt, no mundo antigo a liberdade se constituiu enquanto designo da ação política. O espaço da liberdade se dá num mundo livre, na interação com outros homens livres, num espaço publico organizado. A liberdade está ontologicamente radicada no homem, que ao romper com o passado gera o novo.
            Já no mundo moderno, Benjamin Constant, pensando a liberdade, provavelmente formularia que Sócrates não era um homem livre, pois aqui temos formada a ideia de liberdade negativa do pensamento liberal, que é a liberdade dos indivíduos em relação ao outro.
            Esse contraste entre Arendt e Constant no concerne ao conceito de liberdade vai dar bases para duas grandes vertentes do pensamento pedagógico.
            A visão liberal negativa da liberdade da modernidade vai fundamentar as propostas das chamadas pedagogias da autonomia, que une de Dewey a Paulo Freire, e a visão de escola não diretiva, que vai desde a experiência da escola democrática de Summerhill até a atual escola da Ponte de Jose Pacheco. Os alunos protagonistas, as assembléias deliberativas, enfim a democracia no ambiente escolar.
            É um modelo de escola com ampla adesão retórica no mundo contemporâneo, mas também com grandes críticas, tais como: Uma escola que atende ao perfil dos alunos das classes médias; Uma escola que valoriza os conhecimentos não escolares, fato que prejudica o acesso dos alunos das classes populares a esses conhecimentos. Uma escola que preza a liberdade como um valor individual. No Brasil esse modelo de pedagogia se identifica com conjunturas de enfraquecimento da ação política, como no período da ditadura militar de 1964, e o atual momento onde predomina um discurso de naturalização da política, mediante um discurso técnico, que sobrepõe e desqualifica o discurso persuasivo própria da esfera da política, tal qual concebiam os gregos da antiguidade.
            Na outra vertente, nomes como Hannah Arendt e José Mário Pires Azanha, articulam educação e liberdade a partir da distinção de que a escola não é um espaço político igual o da sociedade. A liberdade para Arendt é um atributo da vida política do homem. Para Arendt o espaço escolar (professores/alunos) não é um espaço de igualdade, como o espaço da polis (cidadão), pois professores e alunos possuem responsabilidades distintas e são submetidos a uma hierarquia. O que fundamenta o espaço escolar são as relações pedagógicas e não as relações política. Assim sendo, uma escola não é democrática porque traz as relações políticas para dentro da escola, mas é democrática na medida em que prepara os alunos – acesso aos conhecimentos socialmente necessários – para exercia a sua cidadania na vida política em sociedade. A escola democrática é aquela onde o aluno aprende e não aquela onde reina a cordialidade. 
            Aristóteles justifica a Paideia ao afirmar que o papel da educação pública deve estar a serviço da pólis, e não de interesses individuais/particulares. Cabe a educação escolar preparar os novos para entrarem no mundo dos velhos.

Índio de mentira da revista Veja e a resposta do Antropólogo

Comentários Moisés Basílio: O que é o mau jornalismo? Para responder essa pergunta poderia gastar muitos parágrafos. Mas, como diz o ditado: "A prova do pudim está em comê-lo". Ler a reportagem da revista Veja com olhar crítico é uma experiência que nos faz compreender o que é o mau jornalismo. Ele deforma a realidade de tal forma, que se levarmos a sério essa reportagem da revista, podemos concluir que os Índios e Quilombolas são as novas classes dominantes no Brasil. Axé!

Fonte: Jornal O Tempo - Minas Gerais - 13 de maio de 2010 - http://migre.me/OsZG
O índio de mentira
Beto Vianna
Antropólogo; linguista
Uma versão do famoso ato do apóstolo são Tomé (ver e então crer) tem sido praticada com entusiasmo cada vez maior pela grande mídia e seus espectadores. Nessa versão, o ato de ver (ou ler) exige a imediata crença no visto ou no lido. O curioso é que, se reprovamos em são Tomé a falta de fé, o pecado da nova versão é o excesso. Ou a falta de visão crítica. Mire-se no exemplo da revista semanal que atende pelo apropriado nome de "Veja". A revista atingiu o cúmulo do neo-sãotomeísmo em sua matéria especial "A farra da antropologia oportunista" (edição 2.163, de 5.5.2010). Não custa ver com os próprios olhos um trecho no início da matéria que, creia, diz assim: "Áreas de preservação ecológica, reservas indígenas e supostos antigos quilombos abarcam, hoje, 77,6% da extensão do Brasil. Se a conta incluir também os assentamentos de reforma agrária, as cidades, os portos, as estradas e outras obras de infraestrutura, o total alcança 90,6% do território nacional".
O texto é indubitável. Apresenta o fato assombroso, embrulhado em precisos percentuais, de que índios, quilombolas e camponeses (que pensávamos ser a porção marginalizada do Brasil), somados à cobertura de mata virgem cada vez mais reduzida (não me pergunte como obras de infraestrutura entram na conta), tomaram conta do país, numa épica revolução silenciosa. O que sabemos sobre 500 anos de massacres, subjugações e humilhações dos índios no Brasil é pura ilusão. Devemos crer que os verdadeiros brasileiros estão acuados e quase expulsos pela indiada ressurgida das cinzas.
A matéria segue dando asas a uma imaginação fértil e perversa, denunciando a "indústria da demarcação" que enche de dinheiro o bolso de antropólogos e índios. Numa redação, digamos, ousada, o texto desfila subtítulos que, na minha terra, seriam considerados maximamente preconceituosos: "Os novos canibais", "Macumbeiros de cocar", "Teatrinho na praia" (índios fantasiando-se de índios!), "Made in Paraguai", "Os carambolas" (os supostos quilombolas!). Não há o que comentar. O visto fala por si.
Há questões graves aí: a matéria desrespeita a boa prática jornalística (o trato com os fatos e pessoas reportados); desrespeita toda uma classe profissional (os antropólogos), e assume a defesa clara (e invisível) dos interesses mais predatórios, que avançam insaciavelmente sobre índios e terras desde que somos Brasil. Tudo isso é muito sério, mas quero frisar uma quarta questão. Crer à primeira vista só é possível quando a mídia mostra o que queremos ver. Por mais miserável e desarmado de suas culturas pelas frentes de civilização, o índio sempre continuou sendo índio. E isso nós não aceitamos! Como os demais povos que fizeram o Brasil e, bem ou mal, se abrasileiraram, queremos que o índio faça o mesmo. Nos roemos de raiva com a insistência do índio em ser índio, e, ao ridicularizá-lo, a "Veja" nos dá o meio de revidarmos. Acredite quem quiser. _____________________________________________________________________________
Fonte: Revista Veja - nº 2163 - 05 de maio de 2010 - http://migre.me/OsXm

A farra da antropologia oportunista

Critérios frouxos para a delimitação de reservas indígenas
e quilombos ajudam a engordar as contas de organizações
não governamentais e diminuem ainda mais o território destinado
aos brasileiros que querem produzir


Leonardo Coutinho, Igor Paulin e Júlia de Medeiros
Manoel Marques
LEI DA SELVA
Lula na comemoração da demarcação da Raposa Serra do Sol, que feriu o estado de Roraima

VEJA TAMBÉM
As dimensões continentais do Brasil costumam ser apontadas como um dos alicerces da prosperidade presente e futura do país. As vastidões férteis e inexploradas garantiriam a ampliação do agronegócio e do peso da nação no comércio mundial. Mas essas avaliações nunca levam em conta a parcela do território que não é nem será explorada, porque já foi demarcada para proteção ambiental ou de grupos específicos da população. Áreas de preservação ecológica, reservas indígenas e supostos antigos quilombos abarcam, hoje, 77,6% da extensão do Brasil. Se a conta incluir também os assentamentos de reforma agrária, as cidades, os portos, as estradas e outras obras de infraestrutura, o total alcança 90,6% do território nacional. Ou seja, as próximas gerações terão de se contentar em ocupar uma porção do tamanho de São Paulo e Minas Gerais. E esse naco poderá ficar ainda menor. O governo pretende criar outras 1 514 reservas e destinar mais 50 000 lotes para a reforma agrária. Juntos, eles consumirão uma área equivalente à de Pernambuco. A maior parte será entregue a índios e comunidades de remanescentes de quilombos. Com a intenção de proteger e preservar a cultura de povos nativos e expiar os pecados da escravatura, a legislação brasileira instaurou um rito sumário no processo de delimitação dessas áreas.
Os motivos, pretensamente nobres, abriram espaço para que surgisse uma verdadeira indústria de demarcação. Pelas leis atuQais, uma comunidade depende apenas de duas coisas para ser considerada indígena ou quilombola: uma declaração de seus integrantes e um laudo antropológico. A maioria desses laudos é elaborada sem nenhum rigor científico e com claro teor ideológico de uma esquerda que ainda insiste em extinguir o capitalismo, imobilizando terras para a produção. Alguns relatórios ressuscitaram povos extintos há mais de 300 anos. Outros encontraram etnias em estados da federação nos quais não há registro histórico de que elas tenham vivido lá. Ou acharam quilombos em regiões que só vieram a abrigar negros depois que a escravatura havia sido abolida. Nesta reportagem, VEJA apresenta casos nos quais antropólogos, ativistas políticos e religiosos se associaram a agentes públicos para montar processos e criar reservas. Parte delas destrói perspectivas econômicas de toda uma região, como ocorreu em Peruíbe, no Litoral Sul de São Paulo. Outras levam as tintas do teatro do absurdo. Exemplo disso é o Parque Nacional do Jaú, no Amazonas, que englobou uma vila criada em 1907 e pôs seus moradores em situação de despejo. A solução para mantê-los lá foi declarar a área um quilombo do qual não há registro histórico. Certas iniciativas são motivadas pela ideia maluca de que o território brasileiro deveria pertencer apenas aos índios, tese refutada pelo Supremo Tribunal Federal. Há, ainda, os que advogam a criação de reservas indígenas como meio de preservar o ambiente. E há também – ou principalmente – aqueles que, a pretexto de proteger este ou aquele aspecto, querem tão somente faturar. "Diante desse quadro, é preciso dar um basta imediato nos processos de demarcação", como já advertiu há quatro anos o antropólogo Mércio Pereira Gomes, ex-presidente da Funai e professor da Universidade Federal Fluminense.
Os laudos antropológicos são encomendados e pagos pela Fundação Nacional do Índio (Funai). Mas muitos dos antropólogos que os elaboram são arregimentados em organizações não governamentais (ONGs) que sobrevivem do sucesso nas demarcações. A quantidade de dinheiro que elas recebem está diretamente relacionada ao número de índios ou quilombolas que alegam defender. Para várias dessas entidades, portanto, criar uma reserva indígena ou um quilombo é uma forma de angariar recursos de outras organizações estrangeiras e mesmo do governo brasileiro. Não é por outro motivo que apenas a causa indígena já tenha arregimentado 242 ONGs. Em dez anos, a União repassou para essas entidades 700 milhões de reais. A terceira maior beneficiária foi o Conselho Indígena de Roraima (CIR). A instituição foi criada por padres católicos de Roraima com o objetivo de promover a demarcação da reserva Raposa Serra do Sol, um escândalo de proporções literalmente amazônicas. Instituída em 2005, ela abrange 7,5% do território do estado e significou a destruição de cidades, de lavouras e um ponto final no desenvolvimento do norte de Roraima – que, no total, passou a ter 46% de sua área constituída por reservas indígenas. Em dez anos, o CIR recebeu nada menos que 88 milhões de reais da União, mais do que a quantia repassada à delegacia da Funai de Roraima no mesmo período. Não é preciso dizer que a organização nem sequer prestou contas de como gastou esse dinheiro.
A ganância e a falta de controle propiciaram o surgimento de uma aberração científica. Antropólogos e indigenistas brasileiros inventaram o conceito de "índios ressurgidos". Eles seriam herdeiros de tribos extintas há 200 ou 300 anos. Os laudos que atestam sua legitimidade não se preocupam em certificar se esses grupos mantêm vínculos históricos ou culturais com suas pretensas raízes. Apresentam somente reivindicações de seus integrantes e argumentos estapafúrdios para justificá-las. A leniência com que a Funai analisa tais processos permitiu que comunidades espalhadas pelo país passassem a se apresentar como tribos desaparecidas. As regiões Nordeste e Norte lideram os pedidos de reconhecimento apresentados à Funai. Em dez anos, a população que se declara indígena triplicou. Em 2000, o Ceará contava com seis povos indígenas. Hoje, tem doze. Na Bahia, catorze populações reivindicam reservas. Na Amazônia, quarenta grupos de ribeirinhos de repente se descobriram índios. Em vários desses grupos, ninguém é capaz de apontar um ancestral indígena nem de citar costumes tribais. VEJA deparou com comunidades usando cocares comprados em lojas de artesanato. Em uma delas, há pessoas que aderiram à macumba, um culto africano, pensando que se tratasse da religião do extinto povo anacé. No Pará, um padre ensina aos ribeirinhos católicos como dançar em honra aos deuses daqueles que seriam seus antepassados.
Casos assim escandalizam até estudiosos benevolentes, que aceitam a tese dos "índios ressurgidos". "Não basta dizer que é índio para se transformar em um deles. Só é índio quem nasce, cresce e vive num ambiente de cultura indígena original", diz o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, do Museu Nacional, no Rio de Janeiro. Declarar-se índio, no entanto, além de fácil, é uma farra. No governo do PT, basta ser reconhecido como índio para ganhar Bolsa Família e cesta básica. O governo gasta 250% mais com a saúde de um índio – verdadeiro ou das Organizações Tabajara – do que com a de um cidadão que (ainda) não decidiu virar índio. O paradoxo é que, em certas regiões, é preciso ser visto como índio para ter acesso a benesses da civilização. As "tribos" têm direito a escolas próprias, o que pode ser considerado um luxo no interior do Norte e do Nordeste, onde milhões de crianças têm de andar quilômetros até a sala de aula mais próxima. "Aqui, só tinha escola até a 8ª série e a duas horas de distância. Depois que a gente se tornou índio, tudo ficou diferente, mais perto", diz Magnólia da Silva, neotupinambá baiana. Isso para não falar da segurança fornecida pela Polícia Federal, que protege as terras de invasões e conflitos agrários. "Essas vantagens fizeram as pessoas assumir artificialmente uma condição étnica, a fim de obter serviços que deveriam ser universais", constata o sociólogo Demétrio Magnoli.
A indústria da demarcação enxergou nas pequenas comunidades negras mais uma maneira de sair do vermelho e ficar no azul. Para se ter uma ideia, em 1995, na localidade de Oriximiná, no Pará, o governo federal reconheceu oficialmente a existência de uma comunidade remanescente de um quilombo – e, assim, concedeu um pedaço de terra aos supostos herdeiros dos supostos escravos que supostamente viviam ali. Desde então, foram instituídas outras 171 áreas semelhantes em diversas regiões. Em boa parte delas, os critérios usados foram tão arbitrários quanto os que permitiram a explosão de reservas indígenas. Também no caso dos remanescentes de quilombolas, a principal prova exigida para a demarcação é a autodeclaração. Como era de esperar, passou a ser mais negócio se dizer negro do que mulato. "Desde que o governo começou a financiar esse tipo de segregação racial, os mestiços que moram perto de quilombos passaram a se declarar negros para não perder dinheiro", diz a presidente do Movimento Pardo-Mestiço Brasileiro, Helderli Alves. Índio que não é índio, negro que não é negro, reservas que abrangem quase 80% do território nacional e podem alcançar uma área ainda maior: o Brasil é mesmo um país único. Para espertinhos e espertalhões.

Os novos canibais

Manoel Marques


A foto acima parece estranha – e é. O baiano José Aílson da Silva é negro e professa o candomblé. Seu cocar é de penas de galinha, como os que se usam no Carnaval. Silva se declarou pataxó, mas os pataxós disseram que era mentira. Reapareceu tupinambá, povo antropófago extinto no século XVII. Ele é irmão do também autodeclarado cacique Babau, que vive em uma área que nunca foi habitada pelos tupinambás. Sua "tribo" é composta de uma maioria de negros e mulatos, mas também tem brancos de cabelos louros. Há seis anos, o grupo invade e saqueia fazendas do sul da Bahia, crimes que levaram Babau à prisão. Seu irmão motorista também esteve na cadeia, por jogar o ônibus sobre agricultores. As contradições e os delitos não impediram a Funai de reconhecê-los como índios legítimos e de oferecer-lhes uma reserva gigantesca, que englobaria até a histórica Olivença, um das primeiras vilas do país.



Teatrinho na praia

Manoel Marques


Os boraris viviam em Alter do Chão, a praia mais badalada do Pará. Com pouco mais 200 pessoas, a etnia assimilou a cultura dos brancos de tal forma que desapareceu no século XVIII. Em 2005, Florêncio Vaz, frade fundador do Grupo Consciência Indígena, persuadiu 47 famílias caboclas a proclamar sua ascendência borari. Frei Florêncio ensinou-lhes costumes e coreografias indígenas. O "cacique" Odair José, de 28 anos, reclamou do fato de VEJA tê-lo visitado sem anúncio prévio. "A gente se prepara para receber a imprensa", disse. Seu vizinho Graciano Souza Filho afirma que "ele se pinta e se fantasia de índio para enganar os visitantes". Basílio dos Santos, tio do "cacique", corrobora essa versão: "Não tem índio aqui. Os bisavôs do Odair nasceram em Belém".



Macumbeiros de cocar

Leonardo Coutinho


Os cearenses de São Gonçalo do Amarante vivem um tormento. Sede do Porto de Pecém, o município espera abrigar uma refinaria, uma siderúrgica e um complexo industrial. Um padre, no entanto, convenceu seus fiéis de que esses investimentos os expulsarão do local. Sua única saída para ficar lá seria declararem-se indígenas. "Querem nos tirar terras que nossos pais e avós compraram com muito suor", reverbera o agente de saúde Francisco Moraes. Eles, então, compraram cocares, maracas e passaram a se pintar. "A gente sempre foi índio, só não sabia", diz Moraes, que agora se apresenta como "Cacique Júnior" e cultiva supostos hábitos dos índios anacés, extintos há 200 anos. "Faço macumba e a dança de São Gonçalo." A questão é que a origem da macumba é africana e a da dança, portuguesa.


Made in Paraguai

Leonardo Coutinho


Há dezoito anos, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) importou índios paraguaios e argentinos para o Morro dos Cavalos, em Santa Catarina. Hoje, vivem lá dezessete famílias. A maioria dos imigrantes só se expressa em espanhol, mas todos foram orientados a se declarar brasileiros. "A Funai e o Cimi falam para a gente dizer que é carijó", diz o guarani Milton Moreira, de 49 anos. Paraguaio, ele chegou a Santa Catarina quando tinha 6 anos, mas foi sua presença no local que embasou o pedido de criação da reserva. Curiosamente, Moreira se opõe à demarcação. "Cresci aqui porque meu pai não tinha mais onde me criar. Se esses antropólogos querem botar índio em qualquer lugar, por que não põem a gente para morar no apartamento deles?", pergunta Moreira.


Índio bom é índio pobre

Claudio Gatti


Em 2000, cinquenta famílias de guaranis se mudaram para uma praia em Peruíbe, no Litoral Sul de São Paulo. A terra que eles ocuparam é infértil, mas ainda assim poderiam ter feito um ótimo negócio. O empresário Eike Batista queria construir um porto no local e ofereceu aos índios uma fazenda produtiva, com infraestrutura, dois rios, um pesque-pague e até caça. Mais: daria 1 milhão de reais a cada família. A tribo tirou a sorte grande – ou quase. A Funai barrou o acordo em 2007. Alegou que os sete anos de ocupação irregular da área converteram os índios em moradores tradicionais do local. A chefe Lílian Gomes (em pé, ao fundo) lamentou. Moradora da região desde 2002, ela é casada com um caminhoneiro (branco), tem carro, TV, computador, faz compras no supermercado e não conseguiu impedir a Funai de enterrar a melhor oportunidade de ascensão social que seus liderados tiveram.


Problema dos brancos



Trezentos pequenos agricultores das gaúchas Erechim, Erebango e Getúlio Vargas estão prestes a perder suas terras. Em 2006, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) transferiu para a região um grupo de 63 guaranis de outros locais do Rio Grande do Sul. Os índios ergueram uma favela em volta de fazendas constituídas por italianos, alemães e poloneses há mais de 150 anos. Estão vivendo em condições subumanas. "A gente veio para cá porque o Cimi prometeu mais terras, mas estamos na miséria", diz um dos líderes guarani Severino Moreira (o primeiro à esquerda). Seu sofrimento é passageiro. A Funai declarou que a terra é uma área tradicional dos índios, sugeriu a criação de uma reserva no local e a expulsão dos colonos. São esses últimos, agora, que terão problemas.


Os "carambolas"

Manoel Marques


Nunca se soube da existência de quilombos no Amazonas. Mas há quatro anos apareceu um em Novo Airão, a noroeste de Manaus. Lá, 22 famílias se declararam herdeiras de escravos fugidos. Até então, elas contavam outra história: descenderiam de sergipanos que, há 100 anos, teriam imigrado para trabalhar na coleta do látex. Em 1980, a comunidade entrou em um limbo jurídico. Naquele ano, o governo incluiu sua vila no Parque Nacional do Jaú. As famílias passaram a viver ilegalmente na área. O Ministério do Desenvolvimento Agrário resolveu o problema convertendo-os em quilombolas – ou "carambolas", como eles se autodenominam. "A gente virou ‘carambola’ para não perder a terra", diz Edneu Mendes.


Não basta ser negro

Fotos Liane Neves



O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) dividiu uma comunidade negra que vive na região central do Rio Grande do Sul desde o início do século XIX. O Incra demarcou na área um quilombo chamado São Miguel. Parte dos negros se opôs ao processo. José Adriano Carvalho explica por quê: "O Incra veio com papo de regularizar minhas terras, mas, quando mostrei que a documentação estava em ordem, eles disseram que a intenção era tirar os brancos daqui", afirma. Carvalho se recusou a declarar que era descendente de quilombolas e, por isso, pode ser expulso da terra onde nasceu, há 68 anos.