sexta-feira, fevereiro 02, 2007

A democracia de aluguel

Um bom texto para refletirmos sobre os problemas atuais que o mundo e o Brasil vêm enfrentando para a construção da Democracia com D maiúsculo. Moisés Basílio

Fonte: O Estado de São Paulo - 26/01/2007 - caderno Aliás

Organização que aluga manifestantes para diferentes causas joga água gelada no devaneio de um protesto social puro

José de Souza Martins*

Já foi o tempo em que o protesto social era praticado direta e exclusivamente pelos interessados na defesa de uma causa, de um direito ou no questionamento de uma violação de direitos. No mundo inteiro, a luta operária era de operários; a luta estudantil era de estudantes; a luta camponesa era de camponeses; a luta feminina era das mulheres. A notícia difundida pela BBC e pelos jornais, nesta semana, do surgimento, na Alemanha, de uma organização que aluga manifestantes para diferentes causas joga água gelada no devaneio de um protesto social puro e legítimo. Por cerca do equivalente a R$ 300,00, um manifestante de aluguel pode participar da multidão, carregar cartazes, gritar palavras de ordem e defender uma causa que não é a sua e que não o afeta diretamente.

De outro modo e com outro formato, já havíamos inventado isso aqui na América Latina e no Brasil em particular. É até antigo o empréstimo de manifestantes, de um grupo social por outro, em favor de causas que nada têm a ver com a condição social daquele em cujo nome a manifestação se faz. Durante muito tempo se pensou que isso representava a generosa e comovente solidariedade de um grupo social em relação a outro. Com o tempo foram surgindo indicações de que esse deslocamento de sujeitos de uma causa para outra era em boa parte oportunismo de grupos de manipulação. Os nossos coronéis sertanejos fizeram isso durante os longos anos da República Velha, rurícolas miseráveis arrebanhados como gado manso para fazer-se representar por delegados cujos interesses eram opostos aos seus em troca de uma dentadura ou de favor futuro.

O pagamento a cabos eleitorais para fazer boca de urna em favor de candidatos e partidos, forma de pressão política que só recentemente começou a ser combatida, foi a nossa maneira de criar um mercado de serviços políticos de ocasião não muito diferente do que começa a acontecer na Alemanha. A diferença é a de que lá as demandas dos manifestantes alugados são principalmente de causas restritas, como melhor assistência hospitalar aos velhos ou melhores serviços públicos para determinadas categorias que se sentem prejudicadas. Aqui, tudo tende ao partidário, como temos visto com freqüência.

Aqui, o nosso manifestante de aluguel ainda se esconde no rebuço dos empregos públicos de recompensa por sua militância e, portanto, se esconde no pagamento indireto de uma causa que vai além da causa de seu próprio bolso. Não raro racionaliza e fantasia para atenuar a culpa que decorre da invasão de sua vida e da sua consciência pelas premissas e pelos critérios da economia de mercado e do próprio neoliberalismo que denuncia e combate até com barulhenta convicção. É evidente que há nesse quadro as muitas exceções dos profissionais competentes motivados pelo afã de prestar competente serviço ao Estado e à sociedade.

A mais difundida racionalização dessas formas de empréstimo e aluguel de manifestantes e de militâncias é a de que as diferenças se combinam em nome de causas que são componentes de um sistema político de demandas que convergiriam no ápice de um regime político que resolveria todas as nossas misérias e todas as nossas contradições. Aqui há no manifestante de empréstimo uma certa personificação de um eu coletivo que age em nome da sociedade, sobretudo a sociedade do futuro e nova, a sociedade 'alternativa' da terra sem males, a terra que mana leite e mel, o beatífico socialismo tropical. Mas há também os muitos que são recompensados com os empregos públicos de livre provimento, mais do que aluguel de manifestante, verdadeiro arrendamento da militância política.

Não tem sido menos importante, a pretexto da solidariedade, a ocupação consentida da manifestação de um grupo por outro, nos casos daqueles que são politicamente débeis ou conjunturalmente enfraquecidos, cuja demonstração solitária indicaria antes fraqueza do que força política.

Foi o que aconteceu com a classe operária e seus sindicatos nas caronas que pegou nas demonstrações dos sem-terra na Praça dos Três Poderes, em Brasília, mais de uma vez.

A diferença entre o que se evidenciou agora na Alemanha e o que acontece no Brasil há mais tempo é que lá, sociedade moderna e desenvolvida que é, a decisão de alugar-se para protestar é decisão individual, de cidadão que abre mão da sua cidadania em favor da dos outros. Aqui, a decisão dos manifestantes fora de seu lugar social tem ainda forte carga de manipulação coletiva, de grupos organizados de interesse político (e, quem sabe, outros mais), mediante formas indiretas de compensação material.

O que separa essas distintas manifestações de abastardamento da consciência e da ação política é a forma da venda e da compra, do aluguel e do arrendamento, perdidos que estamos num passado que insiste em permanecer. A cidadania precária ainda é uma cidadania de manipulação. Mudou apenas o dono do curral, que de eleitoral passou a ser curral de demandas sociais, nem por isso menos legítimas, ainda que em forma antidemocrática.

Essas transfigurações do processo democrático e a diluição dos sujeitos sociais e políticos em práticas teatrais, nas quais o cidadão se propõe como ator e não como agente, substituem as categorias sociais e políticas em nome das quais a sociedade contemporânea passou a pensar-se desde a Revolução Francesa. Essa é uma das razões pelas quais as pregações políticas em nome de visões de mundo que estavam referidas às práticas e aos sistemas conceituais que as grandes revoluções sociais e políticas nos legaram, tornam-se inconsistentes e caricaturais na nova realidade de uma militância teatral e remunerada.

A imensa questão que se abre diante de nós, em face da emergência e disseminação dessas modalidades de manifestação das demandas sociais, é a questão da democracia. Que democracia é essa da cidadania de aluguel, do sujeito político sem um rosto próprio e de demandas sociais que tem preço de mercado antes de terem conseqüências políticas?

*José de Souza Martins é professor de sociologia da Faculdade de Filosofia da USP

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