segunda-feira, dezembro 20, 2010

Lima Barreto: Um literato negro da sociedade multirracial brasileira

Por Moisés Basilio Leal 


Trabalho final apresentado à disciplina Antropologia da Sociedade Multirracial Brasileira: o segmento negro, ministrada pelo professor doutor Kabengele Munanga, Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo.



1.    Introdução

Esse trabalho é uma reflexão sobre a sociedade multirracial brasileira no período da Primeira República Brasileira tendo como base a vida e a obra do escritor Lima Barreto. O objetivo não é uma analise pontual de seus textos, mas a de contextualizar a sua produção numa conjuntura onde a ideologia do racismo, com base nas pseudociências racialistas, se tornou parte no ideário das classes dominantes brasileiras.

Hoje Lima Barreto é considerado um dos grandes escritores da língua portuguesa, mas no seu tempo, foi sistematicamente rejeitado e estigmatizado pelo mundo literário da época e considerado um escritor maldito, um mulato ressentido, um mau escritor.

A partir dos anos 50 do século passado sua obra foi resgatada e publicada completa o que ensejou uma multiplicidade de estudos acadêmicos, que proliferam até os dias atuais devido a riqueza de sua produção, e a sua consagração póstuma como o grande escritor negro brasileiro. Sua obra prima é o romance “Triste fim de Policarpo Quaresma” que de forma impactante faz uma acida critica ao Brasil da Primeira República. Suas crônicas e contos também são documentos de extrema importância para o estudo das ciências humanas. Pelo conjunto de sua obra literária criativa e original é considerado pela crítica, quase por unanimidade, como um dos grandes pensadores do Brasil.

Lima Barreto é o nome literário do escritor carioca Afonso Henrique de Lima Barreto. Filho de pais mestiços e livres, mãe professora das primeiras letras e o pai tipografo da imprensa imperial. Nasceu numa sexta-feira, 13 de maio de 1881.

Vai viver na pele as contradições da sociedade multirracial brasileira em tempos de profundas transformações decorrentes da sua inserção no mundo da segundo revolução industrial capitalista em sua etapa imperialista.

É   alfabetizado pela mãe, que perde aos 6 anos. Aos 7 anos assiste com o pai os festejos da abolição. Com ajuda financeira do padrinho, um influente político do império, que depois sofre algumas perdas com a República, estuda para alcançar o sonho paterno de torna-lo doutor pela Escola Politécnica.

Após a proclamação da República vários infortúnios marcaram sua vida pessoal. O pai, monarquista assumido é perseguido e perde o emprego. Consegue um emprego precário e fruto das perseguições enlouquece, situação que força Lima Barreto a abandonar o curso de engenharia, e ter que arranjar emprego para o sustento da família.

Então muda por completo os rumos da sua vida. Presta um concurso público e vai trabalhar num cargo burocrático. Devido as dificuldade financeira muda com a família para o subúrbio carioca, a Vila de Todos os Santos, que para ele ganhara o nome de Vila Quilombo.

Ainda estudante inicia sua carreira literária escrevendo nos jornais estudantis. Depois passa a colaborar com outros jornais e inicia sua produção de crônicas, contos e romances.

Torna-se um leitor e um escritor compulsivo. É um colaborador constante de vários periódicos da imprensa alternativa da época. Devido a sua situação social terá grandes dificuldades, durante toda a sua vida, para publicar suas obras. A maioria dos seus livros publicados em vida foi custeada pelo próprio autor, que para isso teve que fazer empréstimos pessoais com agiotas.

            A partir de certo momento da vida Lima Barreto se entrega ao vício da bebida. Esse vício será a causa de várias internações no hospício e da degeneração de sua saúde.

            Morreu no dia 1º de novembro de 1922, na cidade em que viveu e sempre declarou seu amor, o Rio de Janeiro, com 41 anos de idade.

2.    Os discursos científicos raciais no contexto da Primeira República Brasileira

Para se compreender melhor a vida e obra de um autor é mister conhece o conhecer o contexto da sociedade em que ele viveu. No caso de Lima Barreto, como destacam seus biógrafos, essa afirmação é mais do que fundamental, pois que o nosso autor pratica uma literatura de cunho memorialística cuja sua própria biografia se funde com a totalidade social que o cerca e se torna a fonte principal de sua inspiração. Para o bem ou para o mal, essa característica marcante de sua obra sempre foi alvo das críticas.

Embora não seja o intuito desse texto aprofundar a análise dessas críticas, algumas questões por ela levantadas nos ajudarão a contextualizar a nossa discussão e em certa medida balizar qual o grau de importância que tem na vida e na obra de Lima Barreto o assumir uma identidade que o marcou, com afirma Lilia Schwartz (2010, p.22): “Primeiro autor brasileiro a se reconhecer e definir como literato negro”.

Mas, antes de discutir esse aspecto da obra de Lima Barreto é bom situar em que pé estava a questão da raça e do racismo no contexto histórico do que a historiografia costuma chamar de Primeira República Brasileira, que compreende o período das duas décadas finais do século XIX e as três décadas iniciais do século XX.

Em Munanga (2000) há uma digressão histórica sobre a evolução dos conceitos de raça e racismo nas sociedades da modernidade europeia, da qual o Brasil culturalmente irá fazer parte em decorrência da colonização portuguesa.

A palavra raça, em português, vem do italiano razza, que por sua vez tem origem no latim ratio com os significados de sorte, categoria ou espécie. No período medieval o termo tinha sua acepção ligada à ancestralidade ou linhagem. Já durante os séculos XVI e XVII, em França, o termo passa a ser usado pela nobreza, que se consideravam francos de origem germânica e se diferenciavam da plebe, que era taxada como tendo origem gaulesa. Mais do classificar, segundo Munanga (2000) os nobres franceses também hierarquizavam sua classificação ao se considerarem como os de sangue “puro” e, portanto com habilidades superiores aos plebeus, fato que justificava sua dominação de classe. Nota-se que essa distinção era feita sem levar em conta que não havia grandes diferenças morfobiológicas notáveis, como cor da pele, entre nobres e plebeus franceses.

      Já no mundo ibérico, durante o mesmo período marcado pelas grandes descobertas do mundo novo, a questão se pautou pela natureza humana dos diferentes dos europeus – nativos americanos, africanos etc. À luz dos referenciais religiosos, pautado pela interpretação teológica da genealogia dos descendentes de Adão, da bíblia, se classifica e se hierarquiza os diferentes, sendo que no topo, como povo eleito, situa o branco europeu com todos os privilégios e justificativas para a dominação. 

            No século XVIII há uma mudança qualitativa na conceituação de raça. Os filósofos da ilustração se opuseram às visões e interpretações de mundo tanto da nobreza, quanto da igreja. Em seu lugar importou das ciências naturais o conceito de raça para classificar as diferenças humanas. Para classifica há que se terem critérios e nesse momento a cor da pele foi o marcador principal das diferenças humanas e da divisão da humanidade em três raças – branca, negra e amarela. No século XIX com o desenvolvimento da biologia e da antropologia física – as ciências que davam base ao discurso científico racialista –, novos critérios de classificação serão elencados com base em características morfológicas dos corpos distintos.  Já no século XX, com o desenvolvimento da genética, através de processos químicos do sangue também se avançou em novas classificações.

            Para Munanga (2000) o processo de classificação biológica dos grupos humanos em raças em si não teria grande problema para a humanidade. O problema é que a partir dessa classificação se constituiu no século XIX uma pseudociência da raciologia que hierarquizou ideologicamente a diversidade humana em raças, dando origem ao racismo, uma ideologia de dominação, que vai se utilizar da classificação biológica para estabelecer uma relação de superioridade e inferioridade entre os humanos.

            Depois dessa rápida digressão histórica sobre raça e racismo, voltemos ao Brasil da primeira república. A grande questão posta para o País, nesse contexto, era a de como se relacionar com as grandes transformações engendradas pelo capitalismo internacional da segunda revolução industrial e de caráter imperialista, formulando um projeto de Estado nação, numa conjuntura de um país de independência política recente, saído de uma relação de base colonial, com uma economia agroexportadora totalmente dependente dos mercados externos, com uma estrutura social de ordem patriarcal e da recente abolição do trabalho escravo.

            Com o fim da escravidão e a proclamação da república a questão racial pede uma nova equação e a nossa elite políticas e intelectuais, que sempre beberam da cultura europeia, vão se embebedar das teorias racialistas e das práticas racistas da moda. Um belo exemplo é esse discurso sobre a febre amarela, no parlamento, do grande político e intelectual, símbolo da primeira república, o liberal Ruy Barbosa:

            “É um mal, de que só a raça negra logra imunidade, raro desmentida apenas no curso das mais violentas epidemias, e em cujo obituário, nos centros onde avultava a imigração europeia, a contribuição das colônias estrangeiras subia a 92 por centro sobre o total de mortos. Conservadora do elemento africano, exterminadora do elemento europeu, a praga amarela, negreira e xenófoba, atacava a existência da nação na sua medula, na seiva regeneratriz do bom sangue africano, com que a corrente imigratória nos vem depurar as veias da mestiçagem primitiva, e nos dava, aos olhos do mundo civilizado, os ares de um matadouro da raça branca.” (Rui Barbosa. In CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na corte imperial. 2004, p. 57.)

            Na plataforma do Estado nação brasileiro da primeira república, como declina o ilustre intelectual baiano diante da praga da febre amarela que mata mais o elemento branco do que o negro, pode-se com certeza deduzir que o projeto de embranquecimento da população é a matriz da política racial. E é nesse contexto que Lima Barreto vai interagir.

3.    Uma vida e uma obra com identidade racial

Lima Barreto é um personagem emblemático desse período de transição da política racial no Brasil baseado nas ideias racialistas do século XIX.  Antes, no escravismo o racismo estava plenamente incorporado no cotidiano social e depois da primeira república o racismo vai tomar a forma da ideologia da democracia racial.    
Sergio Buarque de Holanda (1948), prefaciando o romance Clara dos Anjos faz uma crítica à Lima Barreto, que em minha opinião faz referência com aquilo que Stuart Hall (2005) em seu estudo sobre a identidade cultural vai conceituar de sujeito do Iluminismo, cuja identidade nasce com o indivíduo e com ele se desenvolve ao largo de sua existência, o que pode ser definido como uma identidade de cunho individualista. Holanda que foi contemporâneo e manteve relações de amizade com o nosso escritor se sente a vontade para tecer suas críticas sobre as fragilidades de Lima Barreto. Para ele:

            “A obra desse escritor é, em grande parte, uma confissão mal escondida, confissão de amarguras intimas de ressentimentos, de malogros pessoais, que nos seus melhores momentos ele soube transfigurar em arte.” (Holanda, 1948, p.4)

            Mas adiante reforça a sua critica quando reafirma as limitações estéticas do nosso autor:

            “O que talvez se possa afirmar em detrimento de parte de sua obra e muito especialmente do romance Clara dos Anjos” “... é que nela a refundição estética não se fez de modo pleno. Em outras palavras, os problemas íntimos que o autor viveu intensamente e procurou muitas vezes resolver através da criação literária não foram integralmente absorvidos e nela ainda perduram em carne e osso como corpo estranho.” (Holanda, 1948, p.4).

            Ora, nessa linha de raciocino Holanda sugere que ao exteriorizar sua crítica ao racismo, de forma escancarada, Lima Barreto acaba por se aproximar em demasia de seu objeto literário, fato que o faz perder a capacidade da elaboração artística, ao fazer uma literatura só de denúncias. O contraponto de sua atuação literária seria o velho Machado de Assis:

            “Enquanto os escritos de Lima Barreto foram, todos eles, uma confissão mal disfarçada...”, “... os de Machado foram antes uma evasão e um refúgio. O mesmo tema que para o primeiro representa obsessivo tormento e tormento que não pode calar, este o dissimula por todos os meios ao seu alcance. E afinal triunfa a realização literária, onde a dissimulação cuidadosamente cultivada irá expandir-se até o ponto de se converter no ingrediente necessário de uma arte feita de vigilância, de reserva e de tato. Machado de Assis aristocratizou-se por esforço próprio e da disciplina que para isso se impôs, ficou em seu temperamento e em sua obra uma vertente inumana, que devia desagradar a espíritos menos capazes de contensão. Desagradaria, com se sabe, a um Patrocínio, e desagradou certamente a Lima Barreto. (Holanda, 1948, p.5)

            Francisco de Assis Barbosa (1988) autor de uma rica biografia do nosso autor e também um dos organizadores das obras completas de Lima Barreto na década dos anos de 1950, também partilha da visão de Holanda.

            “A verdade é que preconceito de cor sempre existiu e ainda existe no Brasil, em maior ou menor escala. O que acontece é que há os que vencem e se acomodam, como há também os que se deixam marcar com cicatrizes mais profundas, quando não sucumbem às restrições e reservas que se lhes impõem. Questão de temperamento. O caso de Lima Barreto é típico, e bem merece um estudo mais profundo, o que somente um especialista poderia fazer.”

            O que será que significa para Barbosa vencer e se acomodar aos preconceitos? Provavelmente será o de se integrar na lógica do embranquecimento e do arrivismo, como fez o grande mestiço Machado de Assis. Seria só questão de temperamento ou questão de identidade? Aqui aparece aquela ideia tão comum no imaginário que é a de quem luta contra o preconceito e a discriminação é um complexado, ou seja, o bom preto ou mestiço é aquele que sabe onde é o seu lugar social.

            Em toda sua vasta obra literária, composta por dezenas de contos e crônicas, e também nos romances, Lima Barreto se coloca como o sujeito sociológico definido por Stuart Hall (2005). Esse sujeito que se funda na complexidade da sociedade moderna e forja a sua consciência nas relações de identidade com outros sujeitos com os quais se identifica culturalmente (valores, símbolos e sentidos). Assim longe do embranquecimento, do arrivismo e da promiscuidade intelectual, Lima Barreto vai construir sua identidade como negro, trabalhador do serviço público concursado, escritor militante da imprensa alternativa da época, anticapitalista (maximalista ou anarquista) e crítico do círculo intelectual do dominante.

4.    Conclusão

A título de conclusão é bom iniciar com uma advertência:

“Não cairemos na armadilha de só ver o lado luminoso da obra de Lima Barreto”. Ele foi, também, segundo o historiador carioca, e apesar de assumir suas origens étnicas, uma vítima da “ambivalência que aflige o negro intelectual num mundo de branco”: embora atacasse aqueles que considerava “negro de alma branca”, como Machado de Assis e José do Patrocínio, confessava sua dificuldade em conviver com os seus negros, em geral intelectualmente inferiores. E apesar de manifestar-se, muitas vezes, em defesa da nacionalidade invadida, esforçou-se , em com certo sucesso, em estudar os clássicos e alinhar-se ao pensamento dos grandes intelectuais europeus de seu tempo.” (SANTOS, JOEL RUFINO DO. Apud LOPES, Nei. 2007, p.92-3)

Embora com suas contradições, a vida e a obra de Lima Barreto dialogam com o racismo brasileiro da Primeira República de forma dramática, ele próprio vai sentir na carne o processo de degradação por que passam os negros na luta pela sobrevivência numa sociedade que tem como projeto o embranquecimento.

Nicolau Sevcenko (1983) descreve bem os infortúnios da vida do nosso autor:

“Durante todo esse mergulho vertiginoso na sombra da miséria, da insegurança, da abominação social, Lima Barreto deixou seus colegas da boemia e academia pelos companheiros de bar ou de desfortuna. Pôde encarar a ciência não como cientista, mas com paciente. Ver o centro da cidade embelezar-se durante suas idas e vindas para o subúrbio. Encarou o crescimento da concorrência da perspectiva do derrotado. Percebeu a vitória do arrivismo como que perde uma situação duramente alcançada. Assistiu ao crescimento do preconceito social e racial como um discriminado. Sentiu a repressão e o isolamento dos insociáveis como vitima. Nas dessa situação geral a inspiração de sua doutrina humanitária de construção de uma solidariedade autêntica entre os homens, que pusesse fim a toda forma de discriminação, competição e conflito, e a todos reconhecesse a dignidade mínima do sofrimento e da imensa dor de serem humanos.” (Sevcenko, 2003, p.234).
           
            Sua obra, no entanto, a despeito de todas as adversidades se constitui num manifesto dissonante do discurso dominante. Nela são denunciadas as promessas da liberdade proposta pela abolição de 1888 e não cumprida e também a promessa de igualdade e cidadania da proclamação da república de 1889 e igualmente não cumprida. Na sensibilidade do artista, um projeto de nação emerge costurado em sua imensa produção literária (crônica, contos e romances), e se esse projeto não foi vitorioso no seu momento histórico, ele acabou por deixar suas marcas para que as novas gerações bebam dele novas esperanças.

Bibliografia

BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto: 1881-1922. 7ed. – Belo Horizonte; Itatiaia; São Paulo; Editora da USP, 1988.

BARRETO, Afonso Henrique de Lima 1881-1922. (1948). Clara dos Anjos. Prefácio de Sérgio Buarque de Holanda – 4ª ed. – São Paulo – Editora Brasiliense, 1974.

BARRETO, Afonso Henrique de Lima 1881-1922. Contos completos de Lima Barreto; organização e introdução Lilia Moritz Schwarcz – São Paulo – Companhia das Letras, 2010.

BARRETO, Afonso Henrique de Lima 1881-1922. Toda Crônica: Lima Barreto – (apr. e notas) Beatriz Resende; (org.) Rachel Valença. – Rio de Janeiro: Agir, 2004.

BARRETO, Afonso Henrique de Lima 1881-1922. Um longo sonho do futuro: diários, cartas, entrevistas e confissões dispersas de Lima Barreto – Rio de Janeiro: Graphia Editorial, 1993.

HALL, Stwart. A identidade em questão. A identidade Cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2005

LOPES, Nei. Dicionário literário afro-brasileiro – Rio de Janeiro: Pallas, 2007.

MUNANGA, Kabengele. Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e etnia. In: BRANDÃO, André Augusto P. (org.) Programa de Educação Sobe o Negro na Sociedade Brasileira. Niterói/RJ: Editora: UFF, 2000.

SEVECENKO, Nicolau. (1983). Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República – 2ª ed. – São Paulo; Companhia das Letras, 2003.

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