segunda-feira, dezembro 20, 2010

Entrevista com o Professor Kabengele Munanga - 2008

Comentários Moisés Basílio: Nesse semestre tive o privilégio de ter cursado a disciplina Antropologia da Sociedade Multi-racial Brasileira: O Segmento Negro, com o Professor Kabengele no Departamento de Antropologia da USP. Embora aqueles que são racistas, ou que vivem sobre a influência do "mito da democracia racial" não admitam que exista racismo no Brasil, ele está aí, e bem presente, como analisa o Professor Kabengele nessa entrevista de dois anos atrás que eu ainda não conhecia. Axé!


RACISMO: ORIGENS E CONQUÊNCIAS

Fonte: Revista Claudia 2008 . Entrevista com o antropólogo Kabengele Munanga, professor titular da FFLCH/USP e autor de "Origens Africanas do Brasil Contemporâneo: Histórias, Línguas, Culturas e Civilizações" (ed. Global) 

CLAUDIA - Qual é a origem do racismo no mundo?
Prof. Kabengele Munanga - Não existe unanimidade entre os estudiosos sobre a origem do racismo. Sociólogos e antropólogos pensam que o racismo foi construído na modernidade ocidental pelos filósofos iluministas e naturalistas. A partir do século 18, esses filósofos iniciaram a obra de classificação científica da diversidade humana em raças distintas, decretadas por eles de inferiores e superiores com base nas diferenças somáticas. Já trabalhos mais recentes, como o de Isaac Benjamin (The Invention Of Racism in Classical Antiquity. Princeton and Oxford, Princiton University Press, 2004), encontram as raízes do racismo na antiguidade clássica, entre os gregos e os romanos.
Apesar da controvérsia sobre as origens do racismo, sua essência é única. É a idéia de que a diversidade humana é composta de grupos biologicamente contrastados (cor da pele, traços morfológicos e marcadores genéticos). Esses grupos são hierarquizados com bases nessas diferenças em raças superiores e inferiores, numa  pirâmide encabeçado pelo grupo branco, tendo os negros na base inferior e os chamados amarelos na parte intermediária. Essa classificação é usada para justificar e legitimar a dominação de um sobre os outros.

CLAUDIA - Quais as consequências do racismo no mundo?
Prof. Kabengele Munanga - O racismo causou grandes problemas na história da humanidade a partir do momento em que as teorias racialistas  se transformaram em ideologias dos Estados colonialistas para legitimar a dominação e a ocupação dos territórios africanos, em ideologias oficiais dos Estados nazistas e fascistas que originaram o genocídio de milhões de judeus e ciganos durante a 2ª guerra mundial. Os sistemas segregacionistas do sul dos Estados Unidos (sistema Jim e Crow) e da África do Sul (apartheid), os racismos de fato em todos os países da América do Sul encabeçados pelo Brasil se fundamentarem no racismo explícito e/ou implícito que está na origem das desigualdades raciais e da exclusão dos negros nos postos de comando e responsabilidade. A Constituição Brasileira de 1988, que considera as práticas racistas como crime inafiançável e sujeito a reclusão, é prova do reconhecimento da existência do racismo de fato pelo legislador brasileiro. A polêmica sobre as políticas de ação afirmativa e cotas que hoje divide os intelectuais, políticos, ativistas e midiáticos é também prova da existência desse racismo de fato que, dentro de suas peculiaridades, causa grandes problemas para a construção da democracia brasileira.

CLAUDIA No Brasil, quais foram as principais lutas contra o racismo?
Prof. Kabengele Munanga - O Brasil, como sociedade genuinamente racista, nunca teve leis racistas institucionalizadas como nos Estados Unidos e na África do Sul. Também levou muitos anos para ter leis protecionistas contra o racismo para não contradizer seu mito de democracia racial. Mas em 1951, alguns episódios de discriminação levaram o então deputado Affonso Arino a propor um projeto de Lei, que foi votado e se transformou em Lei Affonso Arino, que considerava prática de racismo como uma contravenção penal sujeita a uma multa derrisória. Lei que não funcionava por falta de provas testemunhais. Com a nova Constituição de 1988, um grande salto foi realizado, ao tornar prática racista crime inafiançável e sujeito à reclusão. Apesar de funcionar muito pouco por causa de faltas de provas testemunhais, essa lei representa um grande avanço no combate repressivo às práticas racistas no país, embora não se substitua às políticas públicas afirmativas e macro-sociais.
A Fundação Cultural Palmares que veio pelo raio de ação da nova Constituição é certamente significativa como reconhecimento da contribuição cultural do negro no Brasil. De fato, Palmares era uma comunidade quilombola hoje considerada como ícone da resistência contra a escravatura e, conseqüentemente, o ponto de partida das outras resistências coletivas negras passadas, presentes e futuras. Depois do episódio de Palmares, nota-se a fundação da Imprensa Negra Brasileira, seguida  pela fundação da Frente Negra Brasileira, transformada em partido político nos anos 30. A luta da Frente Negra era justamente contra o racismo e em favor da integração do negro na sociedade brasileira. Nos anos 40 surgiram também outras organizações negras contra o racismo como o Teatro Experimental Negro e o movimento quilombismo liderados por Abdias do Nascimento.
Mas creio que os episódios mais marcantes  contra o racismo nos últimos 30 anos se iniciam com a fundação do Movimento Negro Unificado contra o racismo (1978), cuja marcha em Brasília, em novembro de 1995, tinha em sua pauta de reivindicação a exigência das políticas afirmativas e das cotas já como formas concretas de luta contra as desigualdades raciais.
Seis anos depois, veio a Conferência Mundial contra o racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata, organizada pela ONU em agosto/setembro de 2001 em Durban, na África do Sul. A pressão das organizações do Movimento Negro sobre a representação oficial do Estado Brasileiro nessa conferência resultou nas propostas de implementação das políticas de ação afirmativa, inclusivas as cotas em benefício das populações negras, indígenas e outras minorias como homossexuais, judeus, ciganos, etc.  Voltando para casa depois da conferência, o governo brasileiro como membro signatário da Declaração de Durban começou sua lição de casa. Foi assim que a partir de 2002, desencadeou-se um processo de implementação de ação afirmativa cujo debate gerou as controvérsias que permanecem até hoje. Os projetos da Lei das cotas e do Estatuto da Igualdade racial, que tramitam ainda na esfera legislativa, são conseqüência desse processo que começou efetivamente em 2001, mas com antecedências na marcha de Brasília de 1995 pelo Movimento Negro. Apesar da lentidão do legislativo na votação dessas propostas de leis, cerca de 70 a 80 universidades públicas estaduais e federais se adiantaram  por entender que era urgente e inadiável as propostas de mudanças na educação superior e universitária e implementaram cotas em favor de negros, índios e brancos oriundos da escola pública. Portanto, sem minimizar as ações anteriores, eu creio que o momento mais marcante na luta concreta contra o racismo no Brasil é esse que estamos vivendo e que começou efetivamente por volta de 2001. A criação pelo atual governo da Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), a promulgação das leis 10.639/03 e 11.645/08 que tornam obrigatório o ensino da história do negro e das populações indígenas na escola brasileira, entre outros, fazem parte do pacote de ações afirmativas no âmbito do governo.

CLAUDIA Como avaliar o preconceito racial atualmente no mundo e no Brasil?
Prof. Kabengele Munanga - O preconceito racial no mundo não cedeu, apesar dos progressos da ciência que ensina que a raça não existe biologicamente. Podemos continuar a afirmar que as raças superiores e inferiores não existem, no entanto, os preconceitos e as práticas racistas no mundo se mantêm. Se as raças não existem biologicamente, no imaginário coletivo das pessoas e sobretudo das pessoas racistas, elas existem com toda a carga simbólica de inferioridade e superioridade. Daí a afirmação de que a raça é social, política e ideológica e não biológica. Essas raças fictícias e imaginárias, acrescentando-se a fenotipia das pessoas (brancos, negros, índios, mestiços), explicam todas as manifestações de preconceito e práticas de discriminação racial que estamos vivendo ainda no século XXI.
No Brasil estamos vivendo um momento único e crucial que o país não pode perder para não retroceder no passado consolidado pelo ideal de democracia racial que considerava o Brasil como um paraíso racial. Os avanços ilustrados entre outros por cerca de 70 a 80 universidades públicas que aderiram às cotas sem esperar a votação das leis em tramitação na esfera legislativa são provas irrefutáveis de que alguns segmentos da sociedade querem mudanças.

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