domingo, abril 06, 2008

Literatura em Moçambique - Mia Couto

Comentário Moisés Basílio: O escrito moçambicano Mia Couto esteve essa semana em São Paulo. Momento raro e importante para trocarmos experiência com o país irmão. Axé!
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O escritor Antonio Emílio Leite Couto, Mia Couto, nascido em 1955 na cidade de Beira, em Moçambique, é poeta, contista, cronista e romancista, autor de livros como Terra Sonâmbula, O Último Vôo do Flamingo e O Outro Pé da Sereia, entre outros

Fonte: Jornal O Estado de São Paulo, Caderno 2, Domingo 06 de abril de 2008

Encontro com o Estadão


Ler um livro de Mia Couto é como embarcar em uma viagem pelo imaginário africano. São árvores que falam, que mudam de lugar. É a natureza que participa de cada ação, escondendo um fugitivo aqui, denunciando um inimigo ali, em histórias que trazem à luz a dura realidade de um povo que viveu mais de 20 anos em guerra e ainda luta para se firmar como nação.

Mas o encantamento, nesse escritor moçambicano nascido em Beira, em 1955, e que por trás de sua tez branca esconde uma alma essencialmente africana, vem sobretudo da palavra. Como Guimarães Rosa - influência confessa, ao lado de João Cabral de Melo Neto, Carlos Drummond de Andrade, Chico Buarque e Caetano Veloso -, Mia Couto cria e recria palavras: “Mas o vendedor se confortava, em sonolentidão”. “... um forasteiro. Era homem sem retrato nem versões... Todos receavam o medonhável intruso, o irreputado intromissionário.” As histórias, diz que ouviu pelo interior de seu país. Primeiro, como militante da Frente de Libertação de Moçambique, a Frelimo, quando conviveu com o líder Samora Machel e ajudou a escrever o hino moçambicano. Editado no Brasil pela Cia. das Letras, sua fala tranqüila, há duas semanas, em São Paulo, fez Caetano Veloso chorar ao ouvir seu texto em homenagem a Jorge Amado - que ele conheceu, lá pelos anos 70, nas páginas de O Cruzeiro.

Como está Moçambique hoje?

Acho que ninguém sabe exatamente. O fato importante é que, recém-saídos de uma guerra, fomos capazes de construir a paz, construir um sistema estável, democrático, multipartidário, com liberdade de informação. E isso já é uma grande conquista.

Economicamente, como o país sobrevive?

O principal recurso do país são os serviços prestados aos vizinhos. Temos portos, ferrovias e corredores de transportes usados pela África do Sul, Zimbábue, Zâmbia. Temos um setor de mineração importante e a Vale tem ali um projeto enorme.

O português sobreviverá na África como língua?

Não tenho dúvida. Nos cinco países africanos onde se fala português a língua está tão ligada à criação dessas nações. É curioso dizer isso, que a língua que herdamos do colonizador acabou se convertendo no que construiu nossa identidade. Mas isso aconteceu também no Brasil, não é?

E as línguas nativas, que papel têm nesse processo?

Em Moçambique há umas 20 línguas regionais, e são elas que fazem a nação que se chama Moçambique. Elas tornam o português que falamos diferente do que se fala no Brasil, em Cabo Verde ou Angola. Cada uma contribui com diferenças léxicas, com nuances culturais. As línguas são vivas, gostam de namorar, têm essa qualidade bonita de uma aceitar a outra.

Mas não há preconceito do moçambicano por ser o português a língua do colonizador?

Não. A decisão de manter o português foi tomada em 1962, muito antes da independência, em 1975. Decidiu-se que esse seria uma espécie de troféu de guerra. O curioso é que, num país de língua portuguesa, cercado de outros, de língua inglesa, o que poderia ser uma fragilidade acabou definindo fronteiras.

As novelas estão “exportando” os modismos e o vocabulário do Brasil para os países lusófonos?

Sim, e isso é fácil de se notar. Acho bom, embora novelas não sejam o veículo de que eu mais goste. Mas é o que temos e elas têm uma penetração enorme. O problema é que não há troca. O Brasil recebe muito pouco dos demais.

Essa influência, em Moçambique, é recente?

Não. É curioso que nos anos 70, apesar da repressão imposta pela ditadura portuguesa, as coisas do Brasil circulavam mais pelos países africanos do que agora. Eu me lembro de ler a revista O Cruzeiro. Foi aí que tive o primeiro contato com Rachel de Queiroz, Jorge Amado. Chegavam discos do Roberto Carlos, Erasmo Carlos, Nelson Ned, Vanderlei Cardoso, tudo muito romântico, mas importante numa época em que a música anglo-saxônica dominava tudo. Meu pai adorava Dorival Caymmi e eu acho que as primeiras músicas que aprendi a cantar foram as dele. Chico Buarque e Caetano Veloso viveram sempre em minha casa. Por isso foi engraçado conhecê-los pessoalmente, há dias, e dividir o palco com eles na homenagem a Jorge Amado.

Então há influência brasileira em sua literatura?

Sim. Muitos me perguntam de onde veio minha principal influência literária. Ela veio justamente da música de Chico, de Caetano. Muitos músicos moçambicanos tinham tentado cantar em português, mas o português duro, rápido, de Portugal, não tinha musicalidade. Aí ouvimos Chico, Caetano, Gil e descobrimos que o português poderia ser outra coisa. Foi uma descoberta.

Em Moçambique, como no Brasil, o jovem lê pouco?

A situação é a mesma. Mas para mim, mais grave do que não ler é não saber contar histórias. E os meninos de hoje têm uma espécie de secura no seu imaginário. Passaram a ser consumidores de uma coisa que já vem pronta, empacotada. Deixaram de ser produtores de si mesmos.

Em que pé está hoje a literatura de Moçambique?

É boa, mas é pouca. Comparando com teatro, pintura, escultura, a literatura não passa por um bom momento. Mas há uma explicação. É que só 10% dos moçambicanos têm o português como língua materna. E para escrever é preciso ter familiaridade com a língua, o que depende da escola, que esteve morta durante os 20 anos de guerra. Por isso, acho que nossa literatura ainda vai deslanchar.

Fonte: Jornal O Estado de São Paulo - Caderno 2 - Sábado 05 de abril de 2008

...e fazer do nosso sonho uma casa

Leia a íntegra da palestra do moçambicano Mia Couto em homenagem a Jorge Amado, lida em São Paulo no dia 25

Mia Couto

Eu venho de muito longe e trago aquilo que eu acredito ser uma mensagem partilhada pelos meus colegas escritores de Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné Bissau e São Tomé e Príncipe. A mensagem é a seguinte: Jorge Amado foi o escritor que maior influência teve na gênese da literatura dos países africanos que falam português.

A nossa dívida literária com o Brasil começa há séculos, quando Gregório de Mattos e Tomaz Gonzaga ajudaram a criar os primeiros núcleos literários em Angola e Moçambique. Mas esses níveis de influência foram restritos e não se podem comparar com as marcas profundas e duradouras deixadas pelo baiano.

Deve ser dito (como uma confissão à margem) que Jorge Amado fez pela projeção da nação brasileira mais do que todas as instituições governamentais juntas. Não se trata de ajuizar o trabalho dessas instituições, mas apenas de reconhecer o imenso poder da literatura. Nesta sala, estão outros que igualmente engrandeceram o Brasil e criaram pontes com o resto do mundo. Falo, é claro, de Chico Buarque e Caetano Veloso. Para Chico e Caetano, vai a imensa gratidão dos nossos países que encontraram luz e inspiração na vossa música, na vossa poesia. Para Alberto Costa e Silva vai o nosso agradecimento pelo empenho sério no estudo da realidade histórica do nosso continente.

Nas décadas de 50, 60 e 70, os livros de Jorge cruzaram o Atlântico e causaram um impacto extraordinário no nosso imaginário coletivo. É preciso dizer que o escritor baiano não viajava sozinho: com ele chegavam Manuel Bandeira, Lins do Rego, Jorge de Lima, Erico Veríssimo, Rachel de Queiroz, Drummond de Andrade, João Cabral Melo e Neto e tantos, tantos outros.

Em minha casa, meu pai - que era e é poeta - deu o nome de Jorge a um filho e de Amado a um outro. Apenas eu escapei dessa nomeação referencial. Recordo que, na minha família, a paixão brasileira se repartia entre Graciliano Ramos e Jorge Amado. Mas não havia disputa: Graciliano revelava o osso e a pedra da nação brasileira. Amado exaltava a carne e a festa desse mesmo Brasil.

Neste breve depoimento, eu gostaria de viajar em redor da seguinte interrogação: por que este absoluto fascínio por Jorge Amado, por que esta adesão imediata e duradoura?

É sobre algumas dessas razões do amor por Amado que eu gostaria de falar aqui. É evidente que a primeira razão é literária, e reside inteiramente na qualidade do texto do baiano. Eu acho que o maior inimigo do escritor pode ser a própria literatura. Pior que não escrever um livro, é escrevê-lo demasiadamente. Jorge Amado soube tratar a literatura na dose certa, e soube permanecer, para além do texto, um exímio contador de histórias e um notável criador de personagens. Recordo o espanto de Adélia Prado que, após a edição dos seus primeiros versos confessou: “Eu fiz um livro e, meu Deus, não perdi a poesia...” Também Jorge escreveu sem deixar nunca de ser um poeta do romance. Este era um dos segredos do seu fascínio: a sua artificiosa naturalidade, a sua elaborada espontaneidade.

Hoje, ao reler os seus livros, ressalta esse tom de conversa intíma, uma conversa à sombra de uma varanda que começa em Salvador da Bahia e se estende para além do Atlântico. Nesse narrar fluído e espreguiçado, Jorge vai desfiando prosa e os seus personagens saltam da página para a nossa vida cotidiana.

O escritor Gabriel Mariano de Cabo Verde escreveu o seguinte: “Para mim, a descoberta de Amado foi um alumbramento porque eu lia os seus livros e via a minha terra. E quando encontrei Quincas Berro d’Água eu o via na Ilha de São Vicente, na minha rua de Passá Sabe.”

Essa familiaridade exisitencial foi, certamente, um dos motivos do fascínio nos nossos países. Seus personagens eram vizinhos não de um lugar, mas da nossa própria vida. Gente pobre, gente com os nossos nomes, gente com as nossas raças passeavam pelas páginas do autor brasileiro. Ali estavam os nossos malandros, ali estavam os terreiros onde falamos com os deuses, ali estava o cheiro da nossa comida, ali estava a sensualidade e o perfume das nossas mulheres. No fundo, Jorge Amado nos fazia regressar a nós mesmos.

Em Angola, o poeta Mario António e o cantor Ruy Mingas compuseram uma canção que dizia: Quando li Jubiabá/me acreditei Antônio Balduíno./Meu Primo, que nunca o leu/ficou Zeca Camarão. E era esse o sentimento: António Balduino já morava em Maputo e em Luanda antes de viver como personagem literário. O mesmo sucedia com Vadinho, com Guma, com Pedro Bala, com Tieta, com Dona Flor e Gabriela e com tantos os outros fantásticos personagens.

Jorge não escrevia livros, ele escrevia um país. E não era apenas um autor que nos chegava. Era um Brasil todo inteiro que regressava à África. Havia pois uma outra nação que era longínqua mas não nos era exterior. E nós precisávamos desse Brasil como quem carece de um sonho que nunca antes soubéramos ter. Podia ser um Brasil tipificado e mistificado, mas era um espaço mágico onde nos renasciam os criadores de histórias e produtores de felicidade.

Descobríamos essa nação num momento histórico em que nos faltava ser nação. O Brasil - tão cheio de África, tão cheio da nossa língua e da nossa religiosidade - nos entregava essa margem que nos faltava para sermos rio.

Falei de razões literárias e outras quase ontológicas que ajudam a explicar por que Jorge é tão Amado nos países africanos. Mas existem outros motivos, talvez mais circunstanciais.

Nós vivíamos sob um regime de ditadura colonial. As obras de Jorge Amado eram objeto de interdição. Livrarias foram fechadas e editores foram perseguidos por divulgarem essas obras. O encontro com o nosso irmão brasileiro surgia, pois, com épico sabor da afronta e da clandestinidade.

A circunstância de partilharmos os mesmos subterrâneos da liberdade também contribuiu para a mística da escrita e do escritor. O angolano Luandino Vieira, que foi condenado a 14 anos de prisão no Campo de Concentração do Tarrafal, em 1964, fez passar para além das grades uma carta em que pedia o seguinte: “Enviem meu manuscrito ao Jorge Amado para ver se ele consegue publicar lá no Brasil...”

Na realidade, os poetas nacionalistas moçambicanos e angolanos ergueram Amado como uma bandeira. Há um poema da nossa Noêmia de Sousa que se chama Poema de João, escrito em 1949 e que começa assim:

João era jovem como nós/João tinha os olhos despertos,/As mãos estendidas para a frente,/A cabeça projetada para amanhã,/João amava os livros que tinham alma e carne/João amava a poesia de Jorge Amado

E há, ainda, outra razão que poderíamos chamar de linguística. No outro lado do mundo, se revelava a possibilidade de um outro lado da nossa língua.

Na altura, nós carecíamos de um português sem Portugal, de um idioma que, sendo do Outro, nos ajudasse a encontrar uma identidade própria. Até se dar o encontro com o português brasileiro, nós falávamos uma língua que não nos falava. E ter uma língua assim, apenas por metade, é um outro modo de viver calado. Jorge Amado e os brasileiros nos devolviam a fala, num outro português, mais açucarado, mais dançável, mais a jeito de ser nosso.

O poeta maior de Moçambique, chamado José Craveirinha, disse o seguinte numa entrevista: “Eu devia ter nascido no Brasil. Porque o Brasil teve uma influência tão grande que, em menino eu cheguei a jogar futebol com o Fausto, o Leônidas da Silva, o Pelé. Mas nós éramos obrigados a passar pelos autores clássicos de Portugal. Numa dada altura, porém, nós nos libertamos com a ajuda dos brasileiros. E toda a nossa literatura passou a ser um reflexo da Literatura Brasileira. Quando chegou o Jorge Amado, então, nós tínhamos chegado à nossa própria casa.”

Craveirinha falava dessa grande dádiva que é podermos sonhar em casa e fazer do sonho uma casa. Foi isso que Jorge Amado nos deu. E foi isso que fez Amado ser nosso, africano, e nos fez, a nós, sermos brasileiros. Por ter convertido o Brasil numa casa feita para sonhar, por ter convertido a sua vida em infinitas vidas, nós te agradecemos companheiro Jorge. Muito obrigado.”

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