domingo, outubro 28, 2007

Literatura de Angola

Comentário Moisés Basílio: Boas notícias literárias. Chegam às livrarias dois livros de escritores angolanos e também a notícia de que os dois virão ao Brasil no próximo mês. Um deles, o Luandino Vieira, já conheço de outros carnavais. Quando seu livro "Luuanda", foi lançado por aqui, nos anos 80, foi um dos motivos de inspiração para o nome que dei para minha primeira filha. Depois, quando fui trabalhar na livraria do Centro Pastoral Vergueiro, tive a oportunidade de divulgar e vender esse livro e outro da literatura africana. Ainda temos pouco contato com a literatura africana em nossa terra, onde metade da população tem suas origens no continente negro. Vamos conferir. Axé!

Fonte: Jornal "O Estado de São Paulo" - Caderno 2 - domingo 28/10/2007.
Vozes libertárias de Angola

Passado e futuro, infância e formação se misturam em livros de Luandino Vieira e Ondjaki, que vêm ao Brasil revelar mistérios literários de seu país

Ubiratan Brasil

A literatura em Angola nasceu antes do país - Alfredo Troni produziu suas primeiras narrativas no século 19 quando a antiga colônia de Portugal só conseguiu sua independência em 1975. Assim, notadamente nos anos 1930 e 40, a escrita angolana se construiu a partir da negação contra o complexo sistema de contradições da sociedade colonizada. Mas o projeto de uma ficção que conferisse ao homem africano o estatuto de soberania surge nos anos 1950, principalmente com José Luandino Vieira e seu A Cidade e a Infância, publicado em 1957 e que ganha agora edição da Companhia das Letras.

São dez histórias que apresentam um espaço social e humano especificamente angolano, ou seja, a representação do mundo subdesenvolvido dos musseques (bairros pobres), onde o autor, embora nascido em Portugal, foi criado. O impacto vem da ruptura da linguagem, da desestruturação do português colonizador para a estruturação de uma nova língua, a oral. Para isso, a memória tem papel fundamental, o que também marca a literatura de outro talento angolano, Ondjaki, representante da nova geração, pós-independência. É o que se observa em Os da Minha Rua, que a Língua Geral lança nesta semana.

Aqui, o autor-personagem revela as descobertas da adolescência somadas às despedidas de tudo o que remete à infância. Fazem parte desse universo assuntos e imagens tão diversas como o primeiro beijo, a parada de 1º de maio, uma piscina de coca-cola e a novela brasileira Roque Santeiro. Luandino Vieira e Ondjaki vêm ao Rio em novembro, quando participam de eventos sobre a literatura de seu jovem e rico país. Sobre essa vinda e o novo lançamento de A Cidade e a Infância, Luandino conversou, por e-mail, com o Estado.

Como insere os contos de A Cidade e a Infância em sua obra? Já estava traçada ali sua intenção literária?

Como aquela pequena semente a partir da qual todo o trabalho literário se iria desenvolver. Os sítios, cenários, locais e as gentes que iriam povoar meu imaginário aí aparecem esboçados. Na verdade, sem grande justeza ou profundidade mas a escolha impôs-se-me: a cidade, a nossa terra de Luanda, sobretudo o espaço dos musseques e suas gentes. Também o que do fundo da infância e da adolescência sempre emergia e continua a emergir. É comum saber que para quase todas as pessoas, e quiçá mais para os que se fazem escritores, a infância é um manancial sem-fim e por toda a vida. Intenção literária não haveria muita. Ou era limitada a conformar minhas intenções de ser escritor como forma de participar no movimento cultural angolano que, naqueles idos de 1950, renascia com pujança político-cultural.

E o que dizer do engajamento e a importância de sua linguagem literária?

Esse engajamento eu o tive como o modo de desnichar e propor a importância da linguagem popular dos musseques de Luanda para a construção de uma linguagem literária. Também como modo de afirmação da nossa diferença cultural, o que me dava legitimidade para exigir o reconhecimento da nossa especificidade cultural com vista à autonomia e autodeterminação políticas. Quanto à sua importância, não me cabe ser juiz dos meus atos e intenções. Penso que, sendo Angola nação relativamente jovem e Estado recente e sem tradição e prática de estudos literários, é cedo para avaliar. Sei, sim, que atuei de consciência e responsabilidade plenas nesse meu trabalho literário, e até como participação na luta por nossa emancipação política do Portugal colonial.

Sua proposta seria apostar na transformação da realidade vivida pelas personagens a partir de sua conscientização e de sua atitude revolucionária?

Creio, ainda hoje, que sim. Procurei na realidade sociopolítica de então aqueles momentos e personagens que pudessem indiciar um grau, por mínimo que fosse, de atitude consciente no sentido da mudança; ou na luta pela mudança; ou nos comportamentos que, aparentemente inócuos, à vista desarmada, tinham já inscritos sinais da rebeldia, da revolta, ou da necessidade da revolução. Se isso serve para transformar a realidade... Ao tempo eu quase acreditava que sim. Minha “crença”, com a experiência, se atenuou. Mas continuo consciente, em última instância, do alto e insubstituível poder da palavra. Por vezes é a esse último grão de resistência que fica preso o destino do homem: o grito, articulação mínima da palavra.

A idéia da tradição ainda é decisiva ou se busca fazer uma recriação contemporânea da tradição?

A idéia da tradição como elemento, suporte ou quadro de nossa identidade cultural coletiva e pessoal, é permanente. Mesmo que inconsciente. O que o escritor pode fazer - é impossível o regresso dos rios às nascentes, e, se regressam, é sob outra forma - é recriar a tradição em novas circunstâncias para novos desafios que, por sua dinâmica, uma cultura coloca cotidianamente. Sobretudo agora que começam a ser mais visíveis os desafios da desenfreada e comercializada globalização cultural...

Qual sua expectativa em relação à vinda ao Brasil? Acompanha a atual literatura brasileira?

Minha expectativa é grande. Não visito o Brasil desde a década de 1980. Leio, ouço, tomo conhecimento das transformações ocorridas nos últimos anos. Quero ver com meus olhos esse país que sempre povoa o imaginário do angolanos em sua presente expressão. Porque, infelizmente, pouco ou nada acompanho da literatura que hoje se faz no Brasil. Mesmo os livros editados em Portugal não estão ao meu alcance. Mas isso é um dos traços comuns na situação do conhecimento e interconhecimento das literaturas em língua portuguesa. E não é da responsabilidade dos escritores. Os escritores escrevem...


Os Escritores

LUANDINO VIEIRA: Pseudônimo de José Vieira Mateus da Graça, nasceu em 1935, em Portugal. Tornou-se cidadão angolano por combater ao lado do MPLA contra o domínio português e por ter contribuído para a criação da República Popular de Angola. Por conta disso, ficou preso entre 1961 e 1972. A reclusão, porém, foi inspiradora - em 1963, lançou o livro de contos Luuanda, narrativas que retratam a dura realidade dos bairros pobres de Luanda, editado no Brasil pela Companhia das Letras. Em 2006, recusou o Prêmio Camões por não se julgar um escritor em atividade.

ONDJAKI: Pseudônimo de Ndalu de Almeida, nasceu em Luanda, em 1977, dois anos depois da independência de Angola. Palavra umbundu, Ondjaki significa “aquele que enfrenta desafios”. Poeta, contista e artista plástico, ele defende um maior contato entre as culturas de língua portuguesa. É autor, entre outras obras, de Bom Dia Camaradas, lançada no Brasil pela Agir, em que recria Luanda a partir de suas memórias afetivas. Dirigiu, ao lado de Kiluanje Liberdade, o filme Oxalá Cresçam Pitangas, dez formas diferentes de viver e interpretar a cidade de Luanda.

'A infância é um abismo sempre delicioso e delicado'

Em Os da Minha Rua, Ondjaki promove um diálogo com Bom Dia Camaradas, livros repletos de saudade de lugares e cheiros

Ubiratan Brasil

Com Os da Minha Rua, Ondjaki confirma que a infância tem a vantagem literária de já vir repleta de carga emotiva. O livro remete aos mesmos temas de Bom Dia Camaradas (Agir), romance lançado em 2003. Sobre tradição e o momento atual da literatura angolana, Ondjaki respondeu, por e-mail, às seguintes questões.

Qual diálogo existente entre Os da Minha Rua e Bom Dia Camaradas?

Existe um diálogo intencional e até intertextual, n’alguns casos. É a mesma voz, a mesma criança, que quer contar estórias mais rápidas mas talvez de uma emoção mais intensa, ou mais profunda. Foram experiências semelhantes, uma vez que ambos livros se baseiam em experiências verídicas, tanto sociais quanto emocionais. Algumas estórias levaram-me a pequenos abismos internos que eu trabalho para aceitar. É também um livro, este, cheio de saudades, de pessoas, de lugares e cheiros. A infância é um abismo sempre delicioso e delicado.

Qual a diferença de realidade entre as crianças da Luanda de hoje e aquelas que viveram na cidade na sua época juvenil?

Eu julgo que as diferenças são gritantes... Toda a ambiência social e política é distinta, a cidade tem milhares de habitantes, e tudo o que foi ternura e cumplicidade, já desapareceu. Luanda é, hoje, uma cidade agreste do ponto de vista das emoções. Vive uma lógica coletiva de índole econômica, onde o dinheiro é a voz mais alta que grita para abafar toda as outras. Luanda é uma guerreira triste que perdeu, talvez, a capacidade até de se emocionar. E as crianças, agora inocentes, vão sentir isso no seu futuro muito próximo. Mas não há razão para dramatizar: é outra cidade, como todas as capitais do mundo evoluíram, a nossa também seguiu o curso que lhe estava destinado.

A influência da cultura exterior (especialmente a brasileira) ainda é muito forte no cotidiano angolano atual?

Sim, sem dúvida. É até mais forte hoje em dia, com a força da televisão, os canais brasileiros que chegam através das parabólicas, a roupa brasileira vinda semanalmente que obedece à lógica e às modas das telenovelas, e a música, esse canal sempre aberto entre os nossos países. Depois também nos chegam outras influências, obviamente. Mas sim, os luandenses são cidadãos atentos às tendências internacionais, não sei se isso é bom ou não.

Ainda no terreno das comparações, que diferenças você vê entre a literatura angolana atual, da qual você faz parte, e a do passado recente, especialmente na prosa de José Luandino Vieira?

São sobretudo diferenças de estilo e de conteúdo. Penso que estas diferenças advêm, naturalmente, de distintos contextos políticos, mundiais e nacionais. Mas também, é preciso não esquecer, deriva da especificidade do estilo de cada um, das suas influências e da apreensão que cada escritor faz tanto das suas vivências quanto das suas leituras. A literatura é, acima do mais, terreno do pessoal, do subjetivo e do interpretativo. A imaginação ou os objetivos literários de cada um. Mas literatura é sensibilidade, é força, é coerência estática. Vamos ver e ouvir o que têm para dizer as novas gerações. É um trabalho árduo, pois nos antecedem escritores de calibre incalculável.

Qual a relação entre política e literatura atualmente em Angola?

Penso que é mais leve. Há muita gente que faz literatura sem se preocupar em fazer política. O “escritor engajado” já não faz tanto sentido, ou está engajado de modo mais discreto ou menos óbvio. E há os outros.

O final da história insinua um certo desencanto. É correto isso?

Não é desencanto, é saudade mesmo. E aí, é preciso não confundir: não é saudade de um espaço social. É saudade da infância, no que esse conceito tem de universal e de emocional. Saudade da pureza, da aventura, também da naturalidade com que fazíamos as coisas, com que atravessávamos os dias, as tardes e os sentimentos. Os cheiros das árvores e dos pescoços suados ao dançar. Saudades das festas mais simples, e do tempo em que a vida das crianças era feita de “dias seguintes”. Agora, há, também, uma despedida interna, pessoalíssima, de uma certa Luanda. As pessoas que partiram, e a minha partida de Luanda, é descrita como um processo doloroso. As despedidas são isso mesmo: algo que se desprende dentro de nós e que leva consigo materiais que haveríamos de precisar para o resto da vida.

Resistência como norte e essência de sua obra

José Luandino Vieira se nutre na tradição oral e em Guimarães Rosa

Rita Chaves

A Cidade e a Infância é o livro de estréia de José Luandino Vieira, cuja primeira edição remonta a 1960, ou seja, 15 anos antes do nascimento do país. Na verdade, esse é um traço constitutivo da Literatura Angolana: ela precede em muitas décadas o Estado, que, de muitos modos, ajudou a fundar. O nascimento do Estado tem uma data, 11 de novembro de 1975, mas a atividade literária inicia-se no século 19, e a, partir de meados dos 40 do século 20, se fortalece a preocupação com a formação da identidade nacional. Na passagem para os anos 60, sacudida também pela vitória sobre o nazismo e o fascismo, a sociedade colonial que insistia em sobreviver, conheceria a contestação de que a literatura trazia fortes sinais.

Essa coletânea de contos é emblemática desse momento, mas não só. Nela Luandino trabalha alguns elementos que, determinantes em sua obra, viriam a integrar as linhas de força da literatura angolana. E, como não é raro na história das literaturas africanas de língua portuguesa, no quadro dessa primeira edição, autor e livro seriam convertidos em peças de um enredo que exprime o clima conturbado que envolvia Angola no fim da ocupação colonial.

Mobilizados pelo desejo de mudança, muitos angolanos viam na agitação cultural uma via de consolidação do sentimento nacional que conduziria à luta de libertação. Na segunda metade da década de 50, Luandino fazia parte de um grupo de jovens que se reunia à noite para conversar; segundo suas palavras: “Geralmente numa mesa de canto da esplanada de um café atrás do Liceu, Café Monte Carlo. E discutíamos tudo, virávamos o mundo do avesso.” Numa dessas sessões, eles decidem investir num programa de edições como ação política. A opção era começar por um livro de poemas do escritor António Cardoso, mas, por razões conjunturais, decidiram abrir a coleção com um caderno de contos de sua autoria. Da gráfica a que foi entregue, entretanto, para as mãos do autor sairiam apenas três exemplares. Quando foi buscar os outros, foi informado que funcionários administrativos e policiais haviam recolhido o livro, as provas e a composição. Inaugurava-se um longo roteiro de tensões entre o escritor e as autoridades coloniais, que culminaria nos oito anos de recolhimento ao Campo de Concentração do Tarrafal, em Cabo Verde. Parte considerável de sua obra foi escrita aí.

Embora A Cidade e a Infância não revele ainda o escritor extraordinário que José Luandino Vieira viria a ser, os dez contos permitem entrever algumas das qualidades que se reforçariam em sua trajetória intelectual e artística. O livro pode ser visto como um momento inaugural da relação que o escritor estabelece com a tradição literária a que se filia, do mesmo modo que traz sinais da proposta de revitalização dessa mesma tradição que será, afinal, dominante em seu trabalho. As pistas vêm do próprio título: a infância será um ponto essencial na configuração do imaginário trabalhado por Luandino, e a cidade de Luanda seria o espaço primordial, espécie de metonímia do país em ebulição, fundida ao itinerário do autor, até mesmo no nome escolhido para si. Tudo isso ganhará destaque, por exemplo, em Luuanda, livro decisivo em seu percurso, reeditado pela Companhia das Letras em 2006.

Como ocorre em Nós, os do Makulusu, um de seus mais fortes romances, em vários contos o universo infantil surge como a projeção de um tempo propício, em que as contradições, agudizadas no presente da enunciação, pareciam muito mais amenas. Ao regressar ao passado, ao “antigamente na vida” (título do livro de 1974), Luandino parece querer recuperar um tempo mítico, gesto que o tema da infância comumente favorece, mas aqui tem lastro em sua experiência histórica. No fim dos anos 50, na então colônia portuguesa, o crescimento da população branca que viera em busca das condições de vida que julgava merecer, provocou um recrudescimento das tensões raciais. A oposição que sob o código colonial marca violentamente as relações humanas ganhou contornos muito fortes, fato que suavizava a imagem do passado. Essa amenização de períodos anteriores associada ao momento da infância, constitui um dos elementos de ligação da obra de Luandino com outros escritores angolanos. Sente-se muito especialmente nesses contos os ecos do poema O Grande Desafio, de António Jacinto, um dos ícones da Geração dos Novos Intelectuais de Angola, cuja atuação foi crucial em sua formação intelectual e literária. O enfoque da infância vai aproximá-lo também de escritores que vieram depois, como é o caso de Manuel Rui, em Quem me Dera Ser Onda, e Ondjaki, em Bom Dia Camaradas e Os da Minha Rua.

O laço tão forte entre texto e contexto, articulado, inclusive, aos dados biográficos que não foram nunca escamoteados, não significou um descompromisso com a dimensão estética. Nas obras que mais fortemente espelham a maturidade do escritor, a preocupação com a fatura literária se desdobra num conjunto de procedimentos que ancoram o seu trabalho no diálogo entre a tradição e a modernidade, um dos pares dilemáticos que estão ainda hoje na base do debate cultural nos países africanos. Na obra de Luandino, essa questão se projeta na evocação da oralidade explicitada, inclusive em seus romances como o já citado Nós, os do Makulusu, em João Vêncio - Os Seus Amores e em O Livro dos Rios, sua mais recente narrativa, parte primeira de uma trilogia prometida pelo autor, que cultivava o silêncio desde os anos 70. Significativamente, ele retorna a um outro passado - os anos da guerrilha, o “antigamente” que os anos duros da atualidade do país vão convertendo numa espécie de idade mítica, o tempo de fecundação da utopia esfacelada que a realidade angolana ostenta. Também significativo é o deslocamento de Luanda para a mata, que funda uma outra geografia em sua obra.

De um modo geral, em Luandino a matriz narrativa emerge da memória de uma experiência que o aproximou do universo popular, do mundo dos excluídos que circulavam pelos musseques luandenses, os bairros populares, áreas povoadas pelas referências das tradições orais, de que as suas narrativas se nutrem. Contrariamente ao que se espera de uma obra claramente identificada com um projeto político, nelas não predominam personagens exemplares, dispostos a qualquer sacrifício pela causa. Os habitantes da periferia estão sob o seu foco, e, na convivência com militantes, afloram trabalhadores injustiçados e pequenos malandros, aqueles marginais que fazem da trapaça a sua hipótese de sobrevivência numa ordem governada pela injustiça. Entre quitandeiras, sapateiros, pescadores, surgem pequenos ladrões, prostitutas, pobres diabos que dão corpo a um tema essencial: a contraposição da resistência popular ao poder sem legitimidade.

A comunhão entre narrador e personagens incide na elaboração da linguagem, uma das marcas de peso da sua literatura. Assim, a noção de resistência supera a esfera do conteúdo e atinge a estrutura da narrativa. A própria utilização da língua portuguesa é determinada pelo ponto de vista do narrador, fenômeno patente tanto em seu discurso quanto na montagem dos diálogos. Em A Cidade e a Infância, o traço fundamental está na presença de palavras das línguas nacionais angolanas, muito especialmente o quimbundo, língua falada na região da capital. Mas, sobretudo a partir de Luuanda, refina-se o processo de nacionalização da língua portuguesa (que nos faz pensar nos ecos do nosso Modernismo na Literatura Angolana) que alcança o terreno da sintaxe, instituindo a ruptura mais funda. As alterações no plano das regências, as elipses e repetições redimensionam a língua portuguesa, favorecendo ainda a evocação da oralidade de que a escrita angolana é tributária.

Ao leitor brasileiro, certamente, os textos do escritor vão lembrar Guimarães Rosa, a despeito de diferenças significativas que outras leituras revelam na concepção de literatura e, sobretudo, na maneira de estar no mundo. Mas não há dúvida de que a aproximação pode ser produtiva. E Luandino não descarta a importância do autor mineiro em seu trabalho:

“Mas, para mim, e no processo já avançado de escrita em que eu estava - as estórias estavam terminadas - a grande lição de Guimarães Rosa foi a da linguagem. Ele vinha confirmar minha intuição. Era claro, com o exemplo dos seus livros, que se a linguagem utilizada não fosse aquela, não alcançaria o que eu queria dizer com aquelas personagens e o que aquelas personagens queriam dizer da sua relação com o mundo. As personagens são definidas com algumas características físicas, mas é sobretudo o nível da linguagem que as define, o modo como articulam o discurso, como manuseiam a língua portuguesa.”

A leitura de Sagarana, que lhe foi permitida na cadeia, onde era proibida a entrada de livros, mostrou-se, portanto, essencial: legitimou a escrita de Luuanda, e selou a formação de escritor que o volume de estréia anuncia. A impressionante produção, que viria na seqüência, evidencia as especiais qualidades do trabalho de um autor muito particular.

Rita Chaves é professora de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa na Universidade de São Paulo e pesquisadora associada do Centro de Estudos Afro-Asiáticos, na Universidade Cândido Mendes (RJ). Entre outros títulos, publicou Angola e Moçambique: Experiência
Colonial e Territórios Literários (2005)e A Formação do Romance Angolano (2000). É co-organizadora de Brasil/ África: Como se o Mar Fosse Mentira; Marcas da Diferença - Literaturas Africanas de Língua Portuguesa (2006) e Boaventura Cardoso: A Escrita em Processo

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