domingo, outubro 28, 2007

GERALDO FILME: SAUDADES!

Comentários Moisés Basílio: Tive o prazer de ter a presença do Geraldo em três momentos da minha vida. A primeira, pelas lembranças de minha mãe Teresinha, assídua freqüentadora do Paulistano da Glória. A segunda, quando no inicio dos anos 80 trabalhamos juntos no ECAD. A terceira, durante o governo da prefeita Luiza Erundina, quando meu grande amigo Eduardo Victor trabalhava no Anhembi. O Geraldo era a história viva do samba paulista. Nos encontramos pela última vez na praça de São Mateus. Depois da roda de samba que ocorreu na praça, fomos beber e conversar numa padaria sobre a vida, a política e o samba. Ao final, o Geraldo pediu um bonito pão doce e seguiu sua vida. Também segui a minha, já com muita saudades daquele encontro e com a plena consciência da importância desse homem para a história da cultura da nossa cidade. Geraldão, Axé!

Fonte: Jornal "O Estado de São Paulo" - domingo 28/10/2007 - Caderno 2
O cronista negro das terras paulistas

O sambista Geraldo Filme, que faria 80 anos, registrou em composições a história do samba e da cultura africana em São Paulo

Francisco Quinteiro Pires

“Se cair deitado é padre,/ Caiu de pé é sambista”. Geraldo Filme de Souza cantou esses versos em Eu Vou Pra Lá, uma homenagem à escola de samba Paulistano da Glória, fundada por sua mãe, Dona Augusta. Ele falava de sua missão: sabia ter caído de pé. Cronista do samba e da história de São Paulo, devotou a existência ao carnaval e à música, embora tenha gravado um elepê autoral somente quando completou 52 anos. Faria 80 no dia 17 de outubro, se não tivesse morrido em decorrência de uma broncopneumonia, em 5 de janeiro de 1995.

“Eu não troco um bom samba/ Pelo amor de uma mulher”, anuncia na mesma letra. Geraldo Filme contorna a habitual temática sambística, que rima amor e dor, para exercitar forte consciência político-social em suas composições, nas quais preserva a cultura negra paulista e a história dos seus, os mais necessitados. Ele carrega a influência do samba rural, entoado nos cafezais do interior do Estado e cadenciado pelo som grave do bumbo. As culturas caipira e negra se amalgamaram às rodas urbanas de tiririca (uma capoeira sambada) dos “três territórios negros” na São Paulo da primeira metade do século 20 - Barra Funda, Bexiga e Baixada do Glicério, na classificação da professora da Unicamp Olga von Simson e autora de Carnaval em Branco e Negro (Imprensa Oficial, 396 págs., R$ 90).

Nascido em São João da Boa Vista, com cinco anos Geraldo Filme se muda para a Barra Funda. Sua mãe tinha uma pensão que fornece marmitas à vizinhança. Quem as entrega é o filho, que, em vez de se tornar doutor, recebe o “diploma de bamba” por ter estudado na “escola de samba da vida”, como canta em Garoto de Pobre. Nessas andanças, ele observa as rodas formadas por negros ensacadores e carregadores nos armazéns abastecidos pelos trens da São Paulo Railway, no extinto Largo da Banana, região onde hoje se localiza o Memorial da América Latinha. Aos 10 anos, Geraldo Filme compõe Eu Vou Mostrar, uma crítica à afirmação do pai, Seu Sebastião - que tocava violino -, segundo a qual samba de verdade era feito no Rio. “Eu vou mostrar/ Que o povo paulista também sabe sambar (...) Na Barra Funda também tem gente bamba/ Somos paulistas/ E sambamos pra cachorro/ Pra ser sambista não precisa ser do morro.”

O Largo da Banana dá lugar ao progresso, o Viaduto Pacaembu, que elimina em meados dos anos 50 a “alegria” e a “simplicidade”, como está dito na composição Último Sambista. Mas antes as marchas cantadas pelo carnaval da elite - nos corsos -, copiado de Veneza, foram sucedidas pelas músicas dos cordões, que representavam o carnaval feito pelo povo e nos quais Geraldo Filme teve as primeiras experiências carnavalescas. “Os desfiles dos préstitos, posteriores aos entrudos, eram luxuosos, com carros alegóricos, e, neles, a burguesia exibia-se como detentora do poder político”, diz a professora von Simson. E a população se portava como público passivo.

A participação popular teria início com o advento do primeiro cordão paulistano, Grupo Carnavalesco Barra Funda, em 1914. Seu fundador, Dionísio Barboza, acrescenta aos instrumentos percussivos o conjunto choro - cordas e sopro -, à diferença do carnaval no Rio, assentado na percussão dos ranchos. Segundo Osvaldinho da Cuíca, amigo de Geraldo Filme por quase quatro décadas, Dionísio Barboza é o “papa do samba paulista”, pois a partir dele se realiza solidamente o elo entre os sambas rural e urbano na cidade de São Paulo. Barboza freqüentava os festejos de São Bom Jesus, realizados todos os anos em Pirapora, a 54 quilômetros de São Paulo, na primeira quinzena de agosto. Os sambistas se abrigavam sob barracões montados para receber os romeiros vindos de várias localidades do Estado e ali faziam a batucada.

Batuque de Pirapora é um dos registros da influência do samba de bumbo na obra de Geraldo Filme. “Menino preto não sai/ Aqui nesta procissão/ Mamãe mulher decidida/ Ao santo pediu perdão/ Jogou minha asa fora/ Me levou pro barracão”. “Geraldo Filme fala nessa música de preconceito racial, ele usava a munição que tinha, o samba”, diz Osvaldinho da Cuíca. Em Tradições e Festas de Pirapora, ele elabora um retrato sociológico dos festejos.

Os participantes dos cordões da capital, que se consolidam entre os anos 30 e 50, iam a Pirapora participar dos desafios: nas rodas onde cantavam e dançavam, os sambistas intercalam versos improvisados com um estribilho, que dá o mote do duelo.Segundo a professora Olga von Simson, os cordões tiveram a permissão policial para desfilar nas primeiras décadas do século passado, porque se organizaram à maneira de procissões, prática consagrada em festas religiosas desde o século 19, que, a exemplo de Pirapora, permitiam o elemento profano. O mundano e o sagrado convivem lado a lado na história do samba paulista. Olga lembra que nas festas das Igrejas dos Enforcados (Liberdade), da Santa Cruz (Glicério) e da Achiropita (Bexiga) o samba corria solto.

Nos anos 40, a Igreja Católica demole os barracões, preocupada com a magnitude das manifestações profanas. Mas as influências do samba rural permanecem fortalecidas na obra musical do Geraldão da Barra Funda, que nos anos 60 fez fama como compositor na Unidos do Peruche, dentro da qual viu chegar a oficialização do carnaval paulista a mando do prefeito Faria Lima, em 1968.

Os cordões se transformam, então, em escolas de samba. O regulamento copia as práticas carnavalescas do Rio. “A mudança foi abrupta, em quatro anos os cordões desapareceram”, diz a professora von Simson. Em 1975, Geraldo Filme entra na escola de samba Vai-Vai, para a qual compõe o samba-enredo Solano Trindade, Menino do Recife, uma homenagem ao poeta, folclorista e teatrólogo pernambucano, fundador do Teatro Popular Brasileiro, freqüentado pelo sambista paulista ao lado do amigo Osvaldinho da Cuíca, presidente na época da ala de compositores da Vai-Vai.

Na escola de samba, Geraldo Filme cria Silêncio no Bexiga, um dos seus hinos ao lado de Tradição. A música é uma homenagem a Walter Gomes de Oliveira, vulgo Pato N’Água, um dos maiores apitadores - função hoje conhecida como mestre de bateria - do carnaval paulista; um malandro briguento que apitava, de cima do Viaduto do Chá, a escola desfilando no Vale do Anhangabaú.

Silêncio no Bexiga foi composta no dia seguinte à polêmica morte de Pato N’Água: versões falam de crime passional e de execução pelo Esquadrão da Morte, como a defendida por pelo dramaturgo santista Plínio Marcos que registrou no disco Plínio Marcos em Prosa e Samba - Nas Quebradas do Mundaréu (1974, Continental) a história do samba paulista, cantada por Geraldo Filme, ao lado de Zeca da Casa Verde e Toniquinho Batuqueiro. A letra de Silêncio no Bexiga, gravada em Nas Quebradas..., refere-se a um sambista de rua, artista do povo, que não ganha placa de bronze nem fica na história. Geraldo Filme parecia também se referir a si mesmo - o reconhecimento póstumo não está à altura da sua importância cultural para a cidade de São Paulo.

Tanto é que o média-metragem Geraldo Filme, de Carlos Cortez, ganhador do É Tudo Verdade - 3º Festival Internacional de Documentários, em 1998, ambienta as primeiras cenas dentro de uma redação de jornal. Um jornalista em começo de carreira recebe do editor a ordem de entregar um texto sobre o Geraldo Filme para o dia seguinte. Nem ele nem os colegas de trabalho, formadores de opinião, sabem quem é a personalidade, que cantou no disco Canto dos Escravos, ao lado de Clementina de Jesus e Doca (pastora da Portela).

Idealizado por Aluízio Falcão, diretor artístico do selo Eldorado entre 1977 e 1987, depois de uma conversa com Laura de Mello e Souza, Canto dos Escravos (1982) reúne 14 vissungos, cantos responsoriais com palavra em português e em dialeto bantô entoados por escravos no século 18. Eles foram escolhidos por Falcão entre os cerca de 70 cantos registrados em O Negro e o Garimpo de Minas Gerais, livro de Aires da Mata Machado Filho. Na gravação, o acompanhamento é feito apenas por instrumentos percussivos. Dois anos antes, Aluízio Falcão lançara o elepê Geraldo Filme, o primeiro trabalho gravado do sambista da Barra Funda: das 12 músicas, a única que não é de sua autoria é Tristeza de Sambista, de Osvaldo Arouche e Walter Pinto. “Ele foi um sambista autêntico, que se fez sem a influência do rádio e cujas composições são vinculadas à terra, elas têm um caráter telúrico”, diz Aluízio Falcão.

Tão ligado à cultura de seu povo e à sua terra, Geraldo Filme faz um balanço da existência em Reencarnação: “Quero ser sambista/ Ao renascer de novo/ Pra cantar a alegria e desventura do meu povo/ (...) Cantar samba na avenida/ E nascer negro novamente.” Ao dirigir seus versos ao “Criador”, o cronista negro de São Paulo admite nas entrelinhas que viveria tudo mais uma vez, pois tinha a consciência de que, contra a dura realidade, causadora de sofrimentos, podia contrapor um sonho, o da arte em versos de samba.

Nenhum comentário: