Acontece em São Paulo, nos meses de novembro e dezembro, uma
singela homenagem ao homem de teatro Augusto Boal intitulada “Pompeia conta
Boal”. É um projeto patrocinado pelo SESC Pompeia e com curadoria da Cecilia
Boal (sua esposa) e Sergio de Carvalho, que tem uma vasta programação que vai
desde a apresentação da peça Arena conta Zumbi, passando por leituras cênicas
de peças escritas por Boal, palestras e debates, mostras de filmes, oficinas e
até uma marcha Boal.
No feriado republicano de 15 de novembro fui brindado com um
encontro inusitado, ao menos para mim, de três grandes dramaturgos brasileiros que sob a
mediação do Sérgio de Carvalho, da Companhia do Latão, produziram um bom debate
de mais de duas horas em homenagem ao Augusto Boal.
O tema das palestras/debates foi: Teoria e prática do
seminário de dramaturgia do Arena: A utilidade da dialética. Cada um dos
palestrantes chegou ao palco do teatro do SESC Pompéia de um forma peculiar. O
Lauro César Muniz já estava no palco, todo elétrico, andando de um lado para o outro, enquanto o
público entrava. O Benedito Ruy Barbosa chegou caminhado com
dificuldades e literalmente apoiado nos ombros de sua mulher, com se ela fosse
uma bengala. Subiu ao palco e ela o colocou na cadeira. Todos já sentados, mas
faltava o terceiro convidado. Então entra ofegante ao auditório o Chico de Assis, apoiado em sua bengala, cumprimenta a plateia e
faz brincadeiras com o mediador e seus colegas de mesa.
O Sérgio de Carvalho abre o encontro lendo um trecho de um
depoimento do Lauro César Muniz sobre um episódio folclórico entre ele e o
Boal. Durante uma conversa o Boal pergunta para o Lauro se ele sabia o que era "alienação", ao que o Lauro responde: Não é coisa ligada aos loucos? E é o dramatrugo Lauro
Cesar Muniz que faz o primeiro depoimento em forma de palestra. Lauro começa
destacando a importância da dialética hegeliana com fonte de influência no
processo de criação dramática de Boal e de como isso também o ajudou na sua
formação como dramaturgo. Citou a importância do percurso formativo de Boal na
década dos anos 50, que conciliou seus estudos de pós-graduação em engenharia
química na Universidade de Columbia, em Nova Iorque, com os estudos de
dramaturgia na School of Dramtics Arts, na própria Columbia, onde teve como
grande mentor John Gassner. Também aproveitou sua estadia nos EUA para assistir
às montagens do Actors Studio. Quando retorna para o Brasil, Boal vai trabalhar
no Arena e inicia uma experiência teatral que influenciará a criação de uma dramaturgia
nacional que o transformará no grande mestre dramaturgo e influenciará toda uma
geração de autores. Lauro é engenheiro de formação. Sua aproximação com a dramaturgia se
deu a partir da experiência do Arena. Depois de formado em engenharia não se
sentiu à vontade para seguir a carreira. Vendo a experiência do Arena tomou
coragem e foi mostrar suas peças para o Boal. O Boal acabou cedendo um espaço
às segundas-feiras para ele apresentar suas peças e a partir daí o contato se
estreitou e o Lauro acabou virando um dos alunos do Boal na recém-formada Escola
de Arte Dramática (EDA).
A segunda palestra/depoimento foi do Benedito Ruy Barbosa. O
Benedito estava visivelmente muito emocionado, não sei se pelo reencontro com os amigos dramaturgos e as reminiscências de seu inicio na profissão, ou as
lembranças do grande mestre dramaturgo Augusto Boal, ou também as duas coisas.
Começou narrando sua vinda para São Paulo em 1947, trabalhando numa firma
ligada ao comércio de café e depois sua carreira na imprensa esportiva. O
impacto que mudou sua vida foi assistir à peça “Eles não usam black-tie” no
Arena. Começou a manter contato com o grupo do Arena e numa conversa com o
Vianinha foi instigado a escrever sua primeira peça, “Fogo Frio”, baseada na
experiência que viveu no norte do Paraná durante as grandes geadas de 1952 e
1953 que destruiu a economia cafeeira da região. Escreveu a peça em dois dias e
foi levar para o Boal. Confessa que não esperava a reação do Boal, que na mesma
tarde que recebeu os originais da peça, leu e releu e à noite o chamou para
acertar a produção da mesma pelo Arena. Foi essa peça o trabalho que
profissionalizou o grupo do teatro Oficina do querido Zé Celso. Ao final do
depoimento, muito emocionado, com os olhos marejando, confidenciou que foi o
Boal que o aconselhou a deixar a imprensa esportiva e a se dedicar à dramaturgia.
A terceira palestra/depoimento foi a do Chico de Assis.
Antes da fala do Chico, o Sérgio de Carvalho leu alguns fragmentos de uma
crítica de sua peça “O Testamento do Cangaceiro”. O Chico recorda que
trabalhava na TV Tupi como auxiliar do Antunes Filho. Começou a escrever algumas
peças e mostrar para o Antunes. Na terceira vez que foi mostrar um texto, o
Antunes de forma deselegante falou que não se interessava por aquilo e mandou
que ele procurasse o Boal no Arena. E ele foi e se engajou com o grupo do
Arena. O Chico fez questão de precisar alguns dados históricos sobre o Arena:
Disse que o “Black-tie” foi encenado antes a criação do Seminário de Dramaturgia
do Arena; Que a primeira peça fruto das discussões do Seminário foi “Chapetuba
Futebol Clube.” Que o Vianinha e o Guarnieri tinham um pé-atrás em relação à
obra do Brecht por conta das posições do Partido Comunista contra o dramaturgo
alemão nos anos 50; Que passou por uma situação difícil quando convenceu o
Jorge de Andrade, que não era um homem de esquerda, a levar sua peça “Veredas da
Salvação” para discussão no Seminário, pois o mesmo sofreu uma crítica muito
ácida do Vianinha e ficou muito magoado e se afastou do grupo. Que o gaúcho
Barbosa Lessa também frequentou o Seminário, mas sempre a procura de “algo com
substância”. Depois de mais ou menos três encontros, como não encontrou o que
procurava nunca mais retornou; Que o Boal foi importante, pois trouxe para o
pensamento da dramaturgia brasileira o método dialético baseado no materialismo
histórico de Marx. Já durante o debate o Chico de Assis precisou que o Seminário de Dramaturgia do Arena tinham um caráter canônico, pois baseava-se nos
seguintes cânones: 1. Visava as peças que tratavam da realidade do homem comum
brasileiro e da sua luta de libertação; 2. As peças deviam se realistas; 3. As
peças deviam ser ideológicas, baseadas no marxismo-lenismo. As peças que
seguiam esses cânones eram aprovadas pelo Seminário. O Chico levanta que houve um
problema de ordem ética na relação dos comunistas do grupo com os nãos
comunistas, pois nem sempre os comunistas respeitavam a diversidade. Disse que
algumas peças, que sabiam que não passariam pelos cânones do Seminário, foram
levadas diretas para encenação sem discussão com o grupo, pois se fossem
discutidas não seriam aprovadas.
No final houve o debate com a plateia. Uma questão de
destaque foi a constatação de que à época do Arena vivíamos um “momento inteligente” da
sociedade brasileira se comparado com o momento atual. Como produzir então uma
dramaturgia nacional superando os limites que o pensamento conservador nos coloca
no momento atual?
Entre as várias respostas ficou a sensação de que não há uma
resposta única e conclusiva, mas que o pensamento, os estudos e a metodologia
que o Boal nos legou são de extrema utilidade para continuarmos a produzir uma
dramaturgia que dê conta dos novos desafios da Arte nesse século XXI.