domingo, abril 15, 2007

Inventário da existência feminina

Comentário Moisés: Vale comprar e ler.













Fonte: O Estado de São Paulo - Caderno 2 - 8/4/2007
Intelectual francesa tenta organizar o pensamento da mulher nos diversos períodos da sociedade
Rosane Pavam especial para o Estado
Um intelectual se destaca pela originalidade de seu pensamento. A francesa Michelle Perrot tornou-se original ao declarar que a mulher tem uma história.
Pode parecer pouco,
parcial ou odiosamente feminista dizer apenas isto, que há um conjunto de fatos na linha do tempo ligado à condição do sexo. Michelle está certa? No livro Minha História das Mulheres, ela nos faz crer que sim.
Para a intelectual francesa, compor uma história dessa natureza no Ocidente equivale a organizar o pensamento feminino nos diversos períodos. As idas e vindas da evolução da mulher se deram à sombra dos homens: enquanto eles realizavam feitos, ela refletia sobre sua adesão a eles. A mulher usou o exercício da conversa e da escrita para se posicionar no mundo, já que a linguagem constituiu seu domínio secreto. Contudo, raramente expôs o que sabia e isto se mostrou prejudicial a sua condição.
A mulher francesa, inglesa ou americana de Michelle Perrot viveu paralelamente, existiu apesar das circunstâncias; para examiná-la, fez-se necessária então uma nova historiografia, que admitisse como fontes documentos normalmente dispersos por suas autoras, como cartas, diários, listas de organização cotidiana, agendas de bebês.
Em 1991, Michelle organizou, na companhia do historiador francês Georges Duby, o livro História das Mulheres no Ocidente. O sucesso da iniciativa deu então origem a este pequeno texto de sua autoria, Minha História das Mulheres, nascido, por sua vez, de uma tentativa de popularização do tema em programas da Rádio France Culture, há dois anos. Na França (e talvez só ali) as transmissões radiofônicas conduzidas por Michelle ganharam tanta audiência que a levaram ao livro sistematizador, editado naquele país no ano passado.
Não se trata, contudo, de um
tomo de difícil digestão, carregado em datas e argüições. Michelle vai escrevendo até desordenamente, solta, pelo prazer da delicada denúncia dessa quase nãoexistência feminina. Quando lemos em seu texto as coisas que Emile Zola ou S.A. Kierkegaard proferiram com sinceridade para colocar as mulheres em seu pequeno - contraditoriamente importante - lugar, coramos por eles e por muitos outros pensadores de igual desenvoltura. 'A mãe deveria ser nossa religião', afirmou Zola, ocupado em ligar o grande papel feminino à maternidade. 'A mulher inspira o homem enquanto ele não a possui', disse Kierkegaard, sobre o poço sem fundo sexual em que um homem se esgota. Como estas, algumas assombrosas afirmações recolhidas no livro nos fazem meditar sobre o tempo presente, sobre os escritórios, redações ou universidades por onde tais idéias ainda se renovam em piadas ou ditos populares, para a concordância de homens e mulheres.
As diferenças de Michelle Perrot com o etnólogo estruturalista Claude Lévi-Strauss oferecem um pote de delicioso antagonismo no decorrer do livro.
Foi Lévi-Strauss quem afirmou em
Tristes Trópicos, lembra Michelle, sobre a partida dos caçadores de uma aldeia: 'Não havia mais ninguém ali, exceto as mulheres e as crianças.' A afirmação nos remete à célebre crônica de Rubem Braga na qual um padeiro, ao tocar a campainha, já anunciava à dona da casa não ser ninguém.
Michelle Perrot é diferente do padeiro de Braga, já que deseja destruir essa invisibilidade, contrariando os estruturalistas. Ela nos faz um inventário das moças, por meio de suas imagens artísticas, fabricadas por homens; investiga seu corpo, ousadamente seus cabelos, signos de sua abundante e indócil natureza primitiva; demonstra como os véus, que também foram ocidentais, equivaleramse a hímens; realça o poder das feiticeiras, 'obstáculos à racio
nalidade triunfante', sendo a razão um privilégio masculino.
O interessante é observar,
aqui, uma conclusão incomum baseada nestes estudos. A rainha do lar se tornou visível quando reivindicou o pão que alimentaria os filhos. Então, no decorrer da história, 'a mãe protegeu a mulher'. Contudo, nos períodos em que a estabilidade econômica foi mantida, as senhoras sem posses invariavelmente voltaram a estrangular os patos do jantar.
Um exemplo está na Revolução Francesa. A mulher pobre foi aplaudida quando pediu brioches. Mas o que fizeram os jacobinos depois de extraída a cabeça de Antonieta e repartido o pão? Negaram às mulheres direitos políticos. Alguém que leia isto se pergunta que espécie de revolução aconteceu por lá, baseada em tal mentalidade excludente. Os avanços femininos não foram lineares, antes caminharam em ondas, como a dos recentes e ruidosos anos 20, logo suplantadas pelo nazismo, que imporia a idéia de uma nova-velha senhora dedicada ao silêncio.
Mulheres como pêndulos: foi o socialista Jules Lebreton quem, decidido a amenizar a condição de criadas das senhoras, inventou a primeira feira de utilidades domésticas, nos anos 50 franceses. Mas coube ao teórico Karl Marx apontar a preocupação dos operários diante do surgimento das trabalhadoras, que produziriam um perigoso 'exército de reserva' na indústria incipiente. 'Operária, palavra ímpia', decretou o historiador Jules Michelet.
Escreve como um homem, combate como um soldado. Assim muitos entenderam que deveriam destacar figuras femininas relevantes à história, como Joana d´Arc ou a criadora literária George Sand. Mas mesmo Sand, dona de um pseudônimo masculino, um dia perguntou-se, à moda do jogador de futebol Pelé (para quem o brasileiro não sabia votar), se o voto feminino deveria ser obrigatório, já que a história negara às mulheres preparação e saber...
O pilar dos integralismos, diz-nos Michelle Perrot, é a dependência feminina. Isto se comprova nos lugares onde os fascistas de algum modo prosperaram. Não se nas
ce uma mulher, torna-se uma, aquiesceu Simone de Beauvoir, para quem 'o feminismo nunca foi um movimento autônomo', já que sempre esteve submetido às realizações masculinas.
Mas a doutora Michelle Perrot, professora emérita da Universidade Paris 7, hábil em renovar as paixões do leitor pelos estudos de sociedades, quer mudar este quadro. Uma história feminina
composta apenas por homens é uma história de homens, como a dos troianos, uma versão grega para os acontecimentos de Tróia.
Por isso, essa intelectual advoga para a mulher uma escrita própria, mesmo quando feita com os filhos no colo e os cabelos bem cuidados.

Nenhum comentário: