terça-feira, janeiro 30, 2007

São Paulo, poema-construção

Conheci Tom Zé, pessoalmente, num comício da Campanha do Suplicy para prefeito em 1992. Conheci Tom Zé, pela música lá pelos idos do final dos anos 60, cantando São São Paulo meu amor. Aprendi a me deliciar com sua obra pela vida. Infelizmente não pude ir ao Parque da Independência no dia 25 de janeiro, ver o baiano de Irará se apresentar. Mas, este texto-poema é muito bom como alegoria da nossa São São Paulo da primeira década do séc. XXI. Moisés Basílio.

Fonte: Jornal O Estado de São Paulo - 28/01/2007 - caderno Aliás
A relação do compositor que mais fez músicas sobre a cidade com sua periferia e sua pizza

Tom Zé*

Paroxismo, linga e ejaculação,Útero hermafrodita da Serra do Mar.

Este ano eu queria escrever um poema sobre São Paulo. Mas fui interrompido por um jornalista amigo, que me pedia comentário sobre o aniversário da própria. Durante a entrevista, quase fiz mais um pedaço do poema:

Sangue de Urano mutilado por Saturno,

Um espirro vermelho erigiu a Avenida Paulista.

Uma gota desviada fez o Páteo do Colégio...

Outro jornalista me ligou e... nova interrupção da interrupção. Nessa altura, os jornalistas já estavam interferindo tanto que eu os coloquei no poema.

Coito estrangeiro de orientais, ítalo-baianos,

Que com pedreiros, cantores e jornalistas

Constroem uma civilização única.

Pedreiros como Paulo Mendes da Rocha,

Benedito Lima de Toledo,

E, no seu prolongamento, Nicolau Sevcenko.

Bem, vocês já adivinham. Outra redação ao telefone. Eu respondi:

Com sua rotação invertida,

Quando Vênus, o segundo planeta,

Que veio do cosmo (ainda) insondável,

Passou, num rasante,

Sobre a Serra do Mar e fez o Rio Tietê

Inverter também seu curso

E caminhar do litoral para o sertão,

... 18 bilhões de anos depois

Esse rio seria um destino.

E a primeira revolta dessa terra de revoltas.

Fui interrompido por um site de outro Estado, interessadíssimo no aniversário desta cidade. As coisas são assim na vida: de repente, as visitas começam a bater na mesma porta. Talvez porque este ano foi divulgado o cômputo do pesquisador Assis Ângelo, que me acusa de ser o compositor que mais fez músicas sobre São Paulo. O site me perguntou que diabo era isso de “terra de revoltas”.

Lembrei a ele a Avenida 9 de Julho, e quis lembrar nomes de praças e ruas que se referem à revolução de 30, à revolução de 30 e pouco mais, ao levante de 30 e pouco menos. Enfim, São Paulo fez tanta revolução que Getúlio Vargas, ressabiado, nem permitia que as emissoras de rádio daqui tivessem alcance considerável. Durante o Estado Novo, as emissoras do Rio de Janeiro eram ouvidas lá em Irará (Bahia), em todo o Nordeste, e ultrapassavam os limites do Sul, sendo captadas no Uruguai e na Argentina. A Rádio Nacional do Rio e a Mayrink Veiga, depois também a Tupi, eram verdadeiras emissoras continentais. Até Pernambuco tinha um prefixo que ficou famoso pela vontade de abrangência e jactância: “Rádio Jornal do Comércio de Recife, Pernambuco, falando para o Mundo!”.

Já aqui em São Paulo, não: o máximo que Getúlio Vargas permitia a nossas emissoras é que elas se mantivessem, na melhor das hipóteses “falando para a capital e cochichando para o interior”.

Foi uma pena, uma grande perda para o imaginário brasileiro, porque o rádio em São Paulo, uma expressão eminentemente caipira, com programas de auditório nos quais se mostrava uma cultura interiorana cheia de sabedoria em sua interpretação do mundo, dotada de humor próprio, com uma cambada de artistas maravilhosos, ficou submerso e sepultado pela censura do governo central.

Até em futebol, se não morássemos nesta cidade, só conhecíamos os clubes cariocas; éramos vascaínos ou botafoguenses, e “torcedor pó-de-arroz” se referia ao Fluminense e não ao São Paulo Futebol Clube.

Apenas em 1967 meu tio Vicente, que trabalhara na fábrica de chapéus Prada, ao voltar para Salvador levou um rádio tão potente que eu ouvi falar pela primeira vez em Palmeiras, Corinthians de Presidente Prudente, Veloclube de Rio Claro, Corinthians de Vicente Matheus, Santos. Imagine que na Copa do Mundo de 58, quando, no terceiro jogo, apareceu um ponta-de-lança na seleção brasileira chamado Pelé eu me admirei, lá em Salvador: De onde saiu ele? Nunca ouvi falar!

DISTÂNCIA GERANDO MEDO

Gilberto Gil, no momento em que o pré-tropicalismo se estabelecia em São Paulo, veio para cá trabalhar na Gessy Lever e foi morar em Cidade Ademar. Isso fez com que logo de início tomássemos contato com uma parte do nosso corpo urbano que é chamada quase com desprezo de “periferia”. Nome que é uma generalização para o que não sabemos e que lembra o Gênese: Caim foi morar no outro lado do Éden. Na periferia. Distância e desconhecimento, uma página de nossa cidade que é escrita pelas colunas policiais dos periódicos.

Essa periferia tem a ver com meu sangue: até intitulei um show realizado no Teatro Adoniran Barbosa - ficava na Praça da República, no ex-Colégio Caetano de Campos -, denominei-o de “Nordeste, Capital São Paulo”.

CINTURÃO PROTEINADO

É que na periferia moravam 4 milhões de “baianos”, logo, tornara-se “a maior cidade do Nordeste”. Dei a essa “cidade” o nome de Cinturão Proteinado.

Essa perna da periferia é formada por nordestinos ainda se paulistanizando, ou - espanto - por nordestinos se re-paulistanizando.

Anote uma revelação inesperada: Pedro Taques, historiador aqui nascido, afirma em Nobiliarquia Paulista que os nordestinos descendentes das primeiras Bandeiras que se dirigiram para aquela região não conseguiram voltar por questões mesológicas. Permaneceram isolados naquele sertão de clima cruel, porém se livraram de um contato, usual nas cidades portuárias, com populações de todo o tipo e de todo o mundo; é um contato que enfraquece moralmente e degenera as populações litorâneas - em caso de discordância, encrenquem com Pedro Taques, não comigo.

Aliás, já encrencaram com Pedro Taques: quando ele se referiu à população nordestina como os paulistas realmente puros e de maior fibra, tudo indica ter recebido aqui alguns castigos; seu nome batizou aquela estrada xexelenta que liga Santos ao litoral sul e também, quase como um desaforo, uma exígua rua de 100 metros situada entre a Frei Caneca e a Consolação.

Como estamos andando no terreno da humilhação, lembro outro aspecto: quando os bandeirantes ficaram isolados no nordeste foram protagonistas de uma experiência genética sem precedentes. Habitantes de uma região de meios de vida muito precários e de clima implacável, passaram 400 anos, cerca de 25 gerações, se alimentando principalmente de farinha de mandioca e algum feijão. Comendo muito pouca proteína mais substancial, naturalmente os neurônios foram diminuindo a capacidade de fazer ligações; as pessoas tornaram-se miseráveis e analfabetas.

Quando, a partir da emigração para São Paulo, essa população voltou ao lugar de origem para constituir o Cinturão proteinado, passou a consumir cerca de 800 gramas de carne por semana, o que, em termos de sertão, era um festim pantagruélico, uma fartura babilônica. Resultado: aqueles neurônios adormecidos começaram a despertar, numa fome de conhecimento e ação tão excitada que eu temi, olhando para o precário e ineficiente ensino público oferecido às classes mais pobres no Brasil, as conseqüências do não-atendimento a essa aspiração de aprendizagem e desenvolvimento.

FAVELA BALEADA POR DESEJO E PROPAGANDA

Voltemos ao refrão do poema:

São Paulo, paroxismo, linga e ejaculação,

Edificar obsessivo,

Ojeriza ao descanso,

“Chacina” de Arnaldo Antunes e Edvaldo,

“Esboço” de Luiz Tatit,

Trem-maloca de Adoniran,

Campos e espaços de concretos,

Terreiro invadido por Jesus,

Favela baleada por desejo e propaganda.

Mas deixe o poema pra lá, porque refiro agora uma coisa realmente inaudita: certo dia, em Roma, o empresário da excursão quis nos oferecer uma refeição marcante. Levou-nos, a mim e à banda, a uma pizzaria finíssima, que tinha até brasão. Escolhemos, fomos servidos e aí, a surpresa: olhávamos significativamente um para o outro, dizendo em silêncio:

Mas a pizza de São Paulo é muito melhor!

(Verso final)

*Tom Zé é compositor e cantor, autor do livro Tropicalista Lenta Luta, lançou o disco Estudando o Pagode em 2006 nos Estados Unidos, escolhido como o 3º
melhor disco estrangeiro. Em 2007 lançou Danç-Êh-Sá - Dança dos Herdeiros do Sacrifício

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