FONTE: Sítio Geledés Instituto da Mulher Negra - http://www.geledes.org.br/areas-de-atuacao/educacao/cotas-para-negros/13968-cotas-raciais-na-integra-o-voto-do-relator-ministro-lewandowski
Cotas: relator vota pela constitucionalidade das
políticas afirmativas da UnB
Único dos ministros do Supremo
Tribunal Federal (STF) a votar na sessão desta quarta-feira (25), o relator da
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 186), ministro Ricardo
Lewandowski, julgou totalmente improcedente o pedido feito pelo Partido
Democratas (DEM) contra a política de cotas étnico-raciais para seleção de
estudantes da Universidade de Brasília (UnB). A sessão continuará amanhã (26),
a partir das 14h, quando os demais ministros do STF deverão proferir seus
votos.
Em um extenso e minucioso voto (leia a íntegra), o ministro Lewandowski afirmou que as políticas de ação
afirmativa adotadas pela UnB estabelecem um ambiente acadêmico plural e
diversificado e têm o objetivo de superar distorções sociais historicamente
consolidadas. Além disso, segundo o relator, os meios empregados e os fins
perseguidos pela UnB são marcados pela proporcionalidade e razoabilidade e as
políticas são transitórias e preveem a revisão periódica de seus resultados.
Quanto aos métodos de seleção, o relator os considerou "eficazes e
compatíveis" com o princípio da dignidade humana.
"No caso da Universidade de Brasília, a
reserva de 20% de suas vagas para estudante negros e 'de um pequeno número
delas' para índios de todos os Estados brasileiros pelo prazo de 10 anos
constitui, a meu ver, providência adequada e proporcional ao atingimento dos
mencionados desideratos. A política de ação afirmativa adotada pela
Universidade de Brasília não se mostra desproporcional ou irrazoável,
afigurando-se também sob esse ângulo compatível com os valores e princípios da
Constituição", afirmou o relator.
Preliminares
O ministro Lewandowski iniciou seu voto afastando
as preliminares de não conhecimento da ação levantadas e afirmou o cabimento da
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental por considerá-la o meio mais
adequado e hábil para sanar a lesividade apontada pelo Partido Democratas
(DEM). Segundo o relator, para efetivar o princípio constitucional da
igualdade, o Estado pode lançar mão de políticas universalistas (de grande
alcance) e também de ações afirmativas, que levam em conta a situação concreta
de determinados grupos sociais.
Lewandowski salientou que, ao contrário do que
muitos pensam, a política de ações afirmativas não tem origem norte-americana.
Ela surgiu na Índia, país composto por uma sociedade de castas, sob a condução
do líder pacifista Mahatma Gandhi. Lembrando que o Brasil é uma sociedade
marcada por desigualdades interpessoais profundas, o ministro afirmou que a
adoção de critérios objetivos de seleção para ingresso dos cotistas nas
universidades deve levar em conta o ganho social que esse processo acarretará
na formação de uma sociedade mais fraterna.
Discriminação
Citando números do Ministério da Educação, o
ministro Lewandowski lembrou que apenas 2% dos negros conquistam diploma
universitário no Brasil e afirmou que aqueles que hoje são discriminados têm um
potencial enorme para contribuir para uma sociedade mais avançada. O ministro
iniciou a análise da constitucionalidade da seleção de candidatos por meio da
adoção de critério étnico-racial afastando o conceito biológico de raça, por
considerá-lo um conceito "artificialmente construído ao longo dos tempos
para justificar a discriminação".
Quanto ao argumento do DEM de que a inexistência
cientificamente comprovada do conceito biológico de raça impediria a utilização
do critério étnico-racial para seleção dos cotistas, o ministro Lewandowski
lembrou que o Supremo já enfrentou essa questão ao julgar o Habeas Corpus (HC
82424), impetrado em favor de Siegfried Ellwanger, acusado do crime de racismo
por ser o responsável pela edição e venda de livros fazendo apologia de ideias
preconceituosas e discriminatórias em relação à comunidade judaica.
Celeiros de recrutamento
"A histórica discriminação de negros e pardos,
revela um componente multiplicador, mas às avessas, pois a sua convivência
multissecular com a exclusão social gera a perpetuação de uma consciência de
inferioridade e de conformidade com a falta de perspectiva, lançando milhares
deles, sobretudo as gerações mais jovens, no trajeto sem volta da marginalidade
social", afirmou o relator. Ele ressaltou o papel integrador da
universidade como principal centro de formação das elites brasileiras e sua
transformação em celeiros privilegiados para o recrutamento de futuros líderes.
"Tais espaços não são apenas ambientes de
formação profissional, mas constituem também locais privilegiados de criação de
futuros líderes e dirigentes sociais. Todos sabem que as universidades, e em
especial as universidades públicas, são os principais centros de formação das
elites brasileiras. Não constituem apenas núcleos de excelência para a formação
de profissionais destinados ao mercado de trabalho, mas representam também um
celeiro privilegiado para o recrutamento de futuros ocupantes dos altos cargos
públicos e privados no país", asseverou.
Para o relator, as políticas de ações afirmativas
da UnB resultam num ambiente acadêmico plural e diversificado e servem para
superar distorções sociais historicamente consolidadas. "O reduzido número
de negros e pardos que exercem cargos ou funções de relevo em nossa sociedade,
seja na esfera pública, seja na privada, resulta da discriminação histórica que
as sucessivas gerações de pessoas pertencentes a esses grupos têm sofrido,
ainda que na maior parte das vezes de forma camuflada ou implícita. Os
programas de ação afirmativa em sociedades em que isso ocorre, entre as quais a
nossa, são uma forma de compensar essa discriminação, culturalmente arraigada,
não raro praticada de forma inconsciente e à sombra de um Estado
complacente", ressaltou o relator.
Ministro Luiz Fux vota pela constitucionalidade das
cotas raciais da UnB
Segundo ministro a se pronunciar
no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 186,
em julgamento iniciado ontem no Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), na
qual o partido Democratas (DEM) questiona a instituição de cotas raciais pela
Universidade de Brasília (UnB), o ministro Luiz Fux acompanhou o voto do
relator, ministro Ricardo Lewandowski, votando pela total improcedência da ação
e pela constitucionalidade das cotas.
Fundamentado no artigo 3º, inciso I, da
Constituição Federal (CF), que preconiza, entre os objetivos fundamentais da
República Federativa do Brasil, a construção de uma sociedade livre, justa e
solidária, o ministro sustentou que a CF impõe, com esse artigo, uma reparação
de danos pretéritos do país em relação aos negros.
Além disso, para ele, a instituição de cotas
raciais dá cumprimento ao artigo 208, inciso V, da CF, que atribui ao Estado o
dever com a educação, assegurando "acesso aos níveis mais elevados do
ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada
um".
Ações afirmativas
Citando diversos pronunciamentos feitos ao longo da
tarde de ontem, quando teve início o julgamento da ADPF, o ministro Luiz Fux
endossou o argumento de que não bastava meramente abolir a escravatura e deixar
o negro sujeito a sua própria sorte. Era preciso que se realizassem ações
afirmativas, dando ao negro também igualdade material em relação à população
branca, dentro do princípio jurídico de que é preciso tratar desigualmente os
desiguais. E neste princípio se encaixa, segundo ele, a instituição das cotas
raciais.
O ministro disse, nesse contexto, que a pioneira na
instituição de tais cotas raciais no país foi a Universidade Estadual do Rio de
Janeiro (UERJ), da qual foi professor e com a qual até hoje mantém vínculos.
Mencionou, a propósito, carta que recebeu do diretório dos estudantes daquela
instituição, manifestando sua confiança no sentido de que o STF julgará
constitucional a criação de tais cotas.
Ele se baseou, também, em diversos julgamentos da
Suprema Corte dos Estados Unidos, que considerou constitucionais ações
afirmativas em favor dos afrodescedentes, tais como cotas nos estabelecimentos
de ensino. Segundo a corte americana, uma discriminação benigna, que favoreça o
negro, é constitucional e merece o crivo de constitucionalidade.
Legislação
Ele disse também que, se até passado recente, um
vácuo na institucionalização de tal "discriminação benigna", o Brasil
vem, sucessivamente, criando legislação também nesse sentido. Citou, entre
outros diplomas legais, a Lei 9.394/1996 (Lei das Diretrizes e Base da Educação
Nacional), que preconiza o dever do Estado com a educação, inspirada nos
princípios da liberdade e nos ideais de solidariedade humana"; e a Lei
10.172/2001 (Plano Nacional de Educação); a Lei 10.558/2002, que criou o
Programa Diversidade na Universidade, no âmbito do Ministério da Educação, com
a finalidade de implementar e avaliar estratégias para a promoção do acesso ao
ensino superior de pessoas pertencentes a grupos socialmente desfavorecidos,
especialmente dos afrodescendentes e dos indígenas brasileiros.
Mencionou, ainda, a Lei 10.678/2003, que criou a
Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, e o
Decreto-Lei 65.810/69, que promulgou a Convenção Internacional sobre Eliminação
de todas as Formas de Discriminação Racial.
Negros e judeus
O ministro Luiz Fux, que é de ascendência judaica,
disse entender o que os negros sofreram no passado e a discriminação de que
foram objeto. Lembrou que o mesmo Adolf Hitler, que se retirou do Estádio
Olímpico de Berlim para não assistir ao negro americano Jesse Owens vencer as
provas de 100, 200 e 400 metros rasos, derrotando atletas "arianos",
é o mesmo que jogou em campos de concentração milhões de judeus e os submeteu
aos horrores do holocausto. Entretanto, segundo ele, ambos os povos vêm
superando as dificuldades a que vêm sendo expostos. Lembrando de um caso que
lhe foi relatado pelo psiquiatra Luiz Alberto Py, que conseguiu melhorar a
postura de vida de um cliente ao sugerir-lhe que, ao invés de ficar olhando
para baixo, ficasse olhando "acima do horizonte", o ministro disse
que essa é a postura correta que o negro está adotando para superar
dificuldades, como a discriminação dos negros no Brasil.
Justiça
"Justiça não é algo que se aprende, é algo que
se sente", disse o ministro Luiz Fux, citando uma afirmação que disse ter
ouvido do presidente da Corte, ministro Carlos Ayres Britto. O próprio
presidente interveio para observar que o substantivo "sentença",
deriva do verbo "sentir". O ministro Luiz Fux disse, ainda, que
julgar implica, para ele, ouvir também a voz das ruas, o que a população está
sentindo sobre um determinado tema. "Prefiro a leitura pela alma
humana", disse o ministro Luiz Fux.
Ele lembrou, por fim, que a Suprema Corte tem
adotado, em relação à definição de raça, a postura de não defender esta ou
aquela, mas sim a de defender "a raça humana".
Terceiro voto a favor das cotas raciais é da
ministra Rosa Weber
A ministra do Supremo Tribunal
Federal (STF) Rosa Weber foi a terceira a votar pela constitucionalidade das
cotas raciais instituídas pela Universidade de Brasília (UnB). "A
desigualdade material que justifica a presença do Estado nas relações sociais
só se legitima quando identificada concretamente, impedindo que determinado grupo
ou parcela da sociedade tenha as mesmas chances de acesso a oportunidades
sociais", disse.
A ministra rejeitou todos os argumentos
apresentados pelo DEM na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental
(ADPF 186) ajuizada contra o sistema de cotas da universidade. Na ação, o
partido alega que diversos preceitos fundamentais da Constituição Federal
estariam sendo violados com a instituição das cotas raciais para a seleção de
estudantes da UnB, como o princípio da igualdade.
Ao final de seu voto, a ministra fez questão frisar
seu respeito a opiniões divergentes, mas afirmou que o pedido do DEM é
totalmente improcedente. "Com todo o respeito, do fundo minha alma, pelas
compreensões em contrário, entendo que os princípios constitucionais apontados
como violados (no pedido do DEM) são justamente os postulados que levam à total
improcedência da ação", concluiu.
Segundo a ministra Rosa Weber, a pobreza no Brasil
tem cor. "Se a quantidade de brancos e negros pobres fosse aproximada,
seria plausível dizer que o fator cor é desimportante", afirmou.
"Enquanto as chances dos mais diversos grupos sociais brasileiros,
evidenciadas pelas estatísticas, não forem minimamente equilibradas, a mim não
parece razoável reduzir a desigualdade social brasileira ao critério econômico",
disse.
Diante desse quadro, ela defendeu que cabe ao
Estado "adentrar no mundo das relações sociais e corrigir a desigualdade
concreta para que a igualdade formal volte a ter o seu papel benéfico".
Para a ministra, ao longo dos anos, com o sistema de cotas raciais, as
universidades têm conseguido ampliar o contingente de negros em seus quadros,
ampliando a representatividade social no ambiente universitário, que acaba se
tornando mais plural e democrático.
A ministra Rosa Weber ressaltou que "quando
houver o equilíbrio da representação social nas diversas camadas sociais, o
sistema (de cotas) não mais se justificará, não mais será necessário".
Segundo ela, por isso mesmo os programas das universidades têm tido o cuidado
de estimar prazos de duração. "Quando o negro se tornar visível nas
esferas mais almejadas das sociedades, política compensatória alguma será
necessária."
Igualdade formal e material
No início de seu voto, a ministra destacou que
"liberdade e igualdade andam de mãos dadas". Ela explicou que a ação
do DEM coloca em evidência a questão da igualdade racial, mas não da raça como
elemento genético, o que já foi rechaçado pelas ciências biológicas e sociais,
mas da raça como construção social. Ela afirmou que essa construção social ainda
torna uma parcela importante da população brasileira invisível e segregada,
mesmo que isso não ocorra por meio de uma política oficial.
"A igualdade se apresenta na construção do
constitucionalismo moderno de duas formas: viés formal e material. A igualdade
formal é a igualdade perante a lei, que permite que todos sejam tratados em
abstrato da mesma forma. Se todos têm os mesmo direitos e obrigações, todos são
igualmente livres para realizar suas próprias perspectivas de vida",
explicou. Mas, segundo ministra, a igualdade formal é também presumida, já que
desconsidera processos sociais concretos de formação de desigualdades.
"Identificadas essas desigualdades concretas,
a presunção de igualdade deixa de ser benéfica e passa a ser um fardo, porque
impede que se percebam as necessidades concretas de grupos que, por não terem
as mesmas oportunidades, ficam impossibilitados de galgar os mesmos espaços
daqueles que estão em condições sociais mais favoráveis", defendeu.
"Sem igualdade mínima de oportunidade, não há
igualdade de liberdade. As possibilidades de ação, de escolhas de vida, de
visões de mundo, de chances econômicas, de manifestações individuais ou
coletivas específicas são muito mais restritas para aqueles que, sob a
presunção da igualdade, não têm consideradas as suas condições
particulares", disse.
É exatamente nesses casos que, para a ministra Rosa
Weber, a intervenção do Estado se justifica por meio das chamadas ações
afirmativas, incluindo o sistema de cotas raciais."Às vezes se impõe
tratamentos desiguais em determinadas questões sociais ou econômicas para que o
resto do sistema possa presumir que todos somos iguais nas demais esferas da
sociedade", concluiu.
Ministra Cármen Lúcia afirma em seu voto que cota é
uma etapa para a igualdade
A ministra Cármen Lúcia Antunes
Rocha, do Supremo Tribunal Federal (STF), votou pela improcedência da Arguição
de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 186, ajuizada pelo DEM contra
a política de cotas raciais na Universidade de Brasília (UnB). Na avaliação da
ministra, a situação dos negros no Brasil não pode ser ignorada. "Tantas
vezes decantada, a igualdade é o princípio mais citado na Constituição Federal.
Quem sofre preconceito percebe que os princípios constitucionais viram
retórica", afirmou.
Segundo a ministra Cármen Lúcia, a Constituição de
1988 inovou a reforçar o princípio da igualdade, que é estático, com o processo
dinâmico da igualação. "As ações afirmativas não são a melhor opção, mas
são uma etapa. O melhor seria que todos fossem iguais e livres", apontou,
salientando que as políticas compensatórias devem ser acompanhadas de outras
medidas para não reforçar o preconceito. Ela frisou ainda que as ações
afirmativas fazem parte da responsabilidade social e estatal para que se cumpra
o princípio da igualdade.
A ministra citou uma história vivenciada por ela
para mostrar como a situação dos negros no país ainda não é bem resolvida.
"Na década de 90, presenteei duas sobrinhas com duas bonecas negras
lindas. Uma das sobrinhas, que é negra, rejeitou a boneca. Quando perguntei o
motivo, ela falou que a boneca era feia porque parecia com ela. Ela não estava
se reconhecendo como o padrão da sociedade", relatou.
A ministra destacou que o sistema de cotas da UnB é
perfeitamente compatível com a Constituição, pois a proporcionalidade e a função
social da universidade estão observadas.
Cotas raciais: O voto do Ministro Joaquim Barbosa
Ministro Joaquim Barbosa afirma que ações
afirmativas concretizam princípio constitucional da igualdade
O
ministro Joaquim Barbosa acompanhou o voto do relator da Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 186, ministro Ricardo
Lewandowski, e afirmou que sua manifestação foi tão convincente e abrangente
que praticamente esgotou o tema. "O voto de Vossa Excelência está em sintonia
com o que há de mais moderno na literatura sobre o tema", afirmou.
Autor de vários artigos doutrinários sobre a
questão, o ministro Joaquim Barbosa reproduziu parte de um texto que escreveu
há mais de 10 anos intitulado "O debate constitucional sobre as ações
afirmativas" e fez declarações pontuais para demonstrar o que pensa ser
essencial em matéria de discriminação.
"Acho que a discriminação, como componente
indissociável do relacionamento entre os seres humanos, reveste-se de uma
roupagem competitiva. O que está em jogo aqui é, em certa medida, competição: é
o espectro competitivo que germina em todas as sociedades. Quanto mais intensa
a discriminação e mais poderosos os mecanismos inerciais que impedem o seu
combate, mais ampla se mostra a clivagem entre o discriminador e o
discriminado", afirmou.
Para o ministro, daí resulta, inevitavelmente,
que aos esforços de uns em prol da concretização da igualdade se contraponham
os interesses de outros na manutenção do status quo. "É natural, portanto,
que as ações afirmativas – mecanismo jurídico concebido com vistas a quebrar
essa dinâmica perversa –, sofram o influxo dessas forças contrapostas e atraiam
considerável resistência, sobretudo, é claro, da parte daqueles que
historicamente se beneficiam ou se beneficiaram da discriminação de que são
vítimas os grupos minoritários", enfatizou.
O ministro Joaquim Barbosa definiu as ações
afirmativas como políticas públicas voltadas à concretização do princípio
constitucional da igualdade material e à neutralização dos efeitos perversos da
discriminação racial, de gênero, de idade, de origem nacional e de compleição
física. "A igualdade deixa de ser simplesmente um princípio jurídico a ser
respeitado por todos, e passa a ser um objetivo constitucional a ser alcançado
pelo Estado e pela sociedade", ressaltou.
O ministro lembrou que as ações afirmativas não
são ações típicas de governos, podendo ser adotadas pela iniciativa privada e
até pelo Poder Judiciário, em casos extremos. "Há, no Direito Comparado,
vários casos de medidas de ações afirmativas desenhadas pelo Poder Judiciário
em casos em que a discriminação é tão flagrante e a exclusão é tão absoluta,
que o Judiciário não teve outra alternativa senão, ele próprio, determinar e
desenhar medidas de ação afirmativa, como ocorreu, por exemplo, nos Estados
Unidos, especialmente em alguns estados do sul", afirmou o ministro.
Ele ressaltou também que nenhuma nação obtém o
respeito no plano internacional enquanto mantém, no plano interno, grupos
populacionais discriminados. "Não se deve perder de vista o fato de que a
história universal não registra, na era contemporânea, nenhum exemplo de Nação
que tenha se erguido de uma condição periférica à condição de potência
econômica e política, digna de respeito na cena política internacional,
mantendo, no plano doméstico, uma política de exclusão, aberta ou dissimulada –
pouco importa! Legal ou meramente estrutural ou histórica, pouco importa! –, em
relação a uma parcela expressiva da sua população", asseverou.
Ministro Peluso é sexto a votar a favor das cotas
raciais na UnB
O ministro Cezar Peluso foi o
sexto a se pronunciar pela improcedência da Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental (ADPF) 186, ajuizada pelo partido Democratas (DEM) contra
a instituição de cotas raciais pela Universidade de Brasília (UnB).
Ele disse que o ponto central do questionamento é
que ações afirmativas em relação às minorias, como as cotas raciais, ofenderiam
o princípio constitucional da igualdade. Entretanto, segundo ele, nesta
análise, o princípio invocado, tratado tanto pelo aspecto formal quanto
material, assume feição própria, de acordo com a realidade sobre a qual incida.
Daí porque, segundo o ministro, é importante
"aceitar que o princípio implica a necessidade jurídica não apenas da
interpretação, mas também de produção normativa da equiparação de situações que
não podem ser desequiparadas sem uma razão lógico-jurídica suficiente".
Para o ministro Peluso, "é fato histórico incontroverso
o déficit educacional e cultural dos negros, desde os primórdios da vida
brasileira, em virtude das graves e conhecidas barreiras institucionais do
acesso dos negros às fontes da educação e da cultura".
Portanto, segundo ele, cabe aí "o raciocínio
de que o acesso à educação tem que ser visto como meio indispensável de acesso
ou, pelo menos, da possibilidade de acesso mais efetivo aos frutos de
desenvolvimento socioeconômico e, portanto, de uma condição sociocultural que
corresponda ao grande ideal da dignidade da pessoa humana e do projeto de vida
de cada um".
Dever
Diante dessa situação, segundo o ministro Cezar
Peluso, existe "um dever, que não é apenas ético, mas também jurídico, da
sociedade e do Estado perante tamanha desigualdade, à luz dos objetivos
fundamentais da Constituição e da República, por conta do artigo 3º da
Constituição Federal". Esse dispositivo preconiza uma sociedade solidária,
a erradicação da situação de marginalidade e de desigualdade, além da promoção
do bem de todos, sem preconceito de cor.
Por isso, segundo ele, "há a responsabilidade
ético-jurídica da sociedade e do Estado em adotar políticas públicas que
respondam a esse déficit histórico, na tentativa de superar, ao longo do tempo,
essa desigualdade material e desfazer essa injustiça histórica de que os negros
são vítimas ao longo dos anos".
Ele lembrou que a Constituição tutela classes ou
grupos em situação de desigualdade socioeconômica, como as mulheres, os menores
e os hipossuficientes. Portanto, é a própria CF que dá um tratamento
excepcional, de acordo com o princípio da igualdade, e, com base nela, também a
legislação infraconstitucional. Ele citou a Lei Maria da Penha para mostrar
"como é legitimado, do ponto de vista constitucional, esse olhar de proteção
constitucional a certas situações de vulnerabilidade".
Exemplificando o alcance da constitucionalidade das
respostas que assume a ação afirmativa, ele disse entender que, em sua opinião,
"mesmo que as universidades públicas fossem pagas, não ofenderia a Constituição
se a lei tivesse reservado uma cota de 20 por cento a alunos
hipossuficientes".
Alegações
Antes de concluir seu voto, o ministro Cezar Peluso
contestou algumas objeções que têm sido feitas contra as cotas raciais. Entre
elas, referiu-se à de que elas seriam discriminatórias. Segundo o ministro,
esta alegação ignora as discriminações positivas que a própria Constituição
formula, na tutela desses grupos, classes e comunidades vulneráveis do ponto de
vista sociopolítico.
Quanto ao argumento de que é o mérito pessoal que
deve ser levado em conta, o ministro disse que ele ignora os obstáculos
historicamente opostos aos esforços dos grupos marginalizados, pois sua
superação não depende das vítimas da marginalização, mas depende de terceiros.
Ele discordou, também, do argumento de que as cotas
raciais seriam compensatórias pelo passado e ofenderiam o princípio da
igualdade. "A meu ver, a política pública afirmativa volta-se para o
futuro, independe de intuitos compensatórios, reparatórios, de cunho indenizatório,
simplesmente pela impossibilidade, não apenas jurídica, de responsabilizar os
atuais por atos dos antepassados", afirmou.
No entender do ministro, "essas políticas
públicas são voltadas para o futuro. Não compensam. Estão atuando sobre a
realidade de uma injustiça hic et nunc (aqui e agora)".
Quanto a serem as cotas raciais um incentivo ao
racismo, ele disse que "não há elemento empírico para sustentar essa tese.
A experiência é que não tem ocorrido, e se tem, foi em escala irrelevante que
não merece consideração".
Ao argumento de que as pessoas devem ser avaliadas
pelo que são e pelo que fazem, ele opôs o argumento de que quem afirma isso
"esquece que o que são e fazem depende das oportunidades e das
experiências que tiveram para se constituir como pessoas".
Sétimo a votar, ministro Gilmar Mendes julga
improcedente a ADPF 186
O ministro Gilmar Mendes votou
pela improcedência da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF)
186, que questiona o sistema de cotas raciais na Universidade de Brasília
(UnB). Defendendo as ações afirmativas, o ministro fez ressalvas ao modelo
adotado pela UnB, mas lembrou que se trata de um programa pioneiro nas
universidades federais e, por isso, suscetível a questionamentos e
aperfeiçoamentos.
O voto do ministro Gilmar Mendes reconhece as ações
afirmativas como forma de aplicação do princípio da igualdade, que, em muitos
casos, exige uma ação do Poder Público no sentido de realizar a equiparação a
partir da constatação de que determinado grupo se encontra em situação
vulnerável. "A própria Constituição preconiza medidas de assistência
social como política de compensação", assinalou o ministro.
O principal ponto questionado foi a adoção pela UnB
do critério exclusivamente racial em sua política de cotas. Para o ministro,
esse aspecto – diferente do adotado em outros programas, que contemplam também
critérios socioeconômicos – "resvalou para uma situação que é objeto de
crítica e até de caricatura", onde a seleção fica a critério de uma
espécie de "tribunal racial". As distorções são conhecidas, lembrou o
ministro, como o caso de irmãos gêmeos univitelinos em que um deles foi
considerado negro, e o outro não.
Para o ministro Gilmar Mendes, o reduzido número de
negros nas universidades é resultado de um processo histórico, decorrente do
modelo escravocrata de desenvolvimento, e da baixa qualidade da escola pública,
somados à "dificuldade quase lotérica" de acesso à universidade por
meio do vestibular. Por isso, o critério exclusivamente racial pode, a seu ver,
resultar em situações indesejáveis, como permitir que negros de boa condição
socioeconômica e de estudo se beneficiem das cotas.
Esse fundamento, assinalou o ministro, poderia
levá-lo a concluir pela procedência da ADPF 186. "Mas reconheço que esse é
um modelo que está sendo experimentado, cujas distorções vão se revelando no
seu fazimento", ressalvou, defendendo a adoção de um critério objetivo de
índole socioeconômica.
"O modelo da UnB, nas universidades públicas
federais, tem a virtude e, obviamente, os eventuais defeitos de um modelo
pioneiro, feito sem paradigmas anteriores", afirmou. "E não se pode
negar a importância de ações que levem a combater essa crônica
desigualdade", considerou o ministro.
Meritocracia sem igualdade é forma velada de
aristocracia, afirma ministro Marco Aurélio
O ministro Marco Aurélio, do
Supremo Tribunal Federal (STF), proferiu voto (leia a íntegra) nesta
quinta-feira (25) a favor do sistema de cotas raciais nas universidades
públicas. "A meritocracia sem igualdade de pontos de partida é apenas uma
forma velada de aristocracia", disse.
Ele foi o oitavo ministro a se posicionar pela
total improcedência da ação (ADPF 186) ajuizada pelo DEM contra o sistema de
cotas para negros, instituído pela Universidade de Brasília (UnB). Segundo o
ministro Marco Aurélio, as ações afirmativas devem sim ser utilizadas na
correção de desigualdades. Ele acrescentou ainda que o sistema de cotas deve
ser extinto tão logo essas diferenças sejam eliminadas. "Mas estamos longe
disso", advertiu.
Para ele, "a prática das ações afirmativas
pelas universidades públicas brasileiras é uma possibilidade latente nos
princípios e regras constitucionais aplicáveis à matéria" e sua
implementação por deliberação administrativa das universidades, como ocorre na
UnB, decorre do princípio da supremacia da Carta Federal e da previsão da
autonomia universitária.
Ele registrou ainda que, ao contrário do que afirma
o DEM na ação, a adoção de políticas de ação afirmativa em favor dos negros e
outras minorias no Brasil, iniciada na Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(Uerj), não produziu um Estado racializado. "Ao menos até agora essa não
foi uma consequência advinda da mencionada política. São mais de 10 anos de
práticas sem registro de qualquer episódio sério de tensão ou conflito racial
no Brasil que possa ser associado a tais medidas."
Ao comparar a Constituição de 1988 com as demais
constituições brasileiras, o ministro afirmou que Carta atual ultrapassa a
igualização estática, meramente negativa (ao proibir a discriminação), para
alcançar uma igualização eficaz, dinâmica. "Não basta não discriminar. É
preciso viabilizar, e a Carta da República oferece base para fazê-lo, as mesmas
oportunidades", concluiu.
"Só existe a supremacia da Carta quando, à luz
desse diploma, vingar a igualdade. A ação afirmativa evidencia o conteúdo
democrático do princípio da igualdade jurídica", acrescentou o ministro.
Ele finalizou seu voto defendendo a "correção das desigualdades".
"Façamos o que está a nosso alcance, o que está previsto na Constituição
Federal."
Ministro Celso de Mello diz que cotas são um
instrumento poderoso contra desigualdade
Decano do Supremo Tribunal
Federal (STF), o ministro Celso de Mello foi o nono voto contrário à Arguição
de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 186, ajuizada pelo DEM contra
a política de cotas raciais na Universidade de Brasília (UnB). Ele sustentou
que o sistema adotado pela universidade obedece a Constituição Federal e os
tratados internacionais que tratam da defesa dos direitos humanos.
Na avaliação do ministro, o modelo de cotas raciais
da UnB é um mecanismo compensatório destinado a concretizar o direito da pessoa
ter sua igualdade protegida contra práticas discriminatórias. "As
políticas públicas têm na prática das ações afirmativas um poderoso e legítimo
instrumento impregnado de eficácia necessariamente temporária, já que elas não
deverão ter a finalidade de manter direitos desiguais depois de alcançados os
objetivos", salientou, lembrando que os resultados do sistema serão
reavaliados dez anos depois da sua implantação.
O ministro Celso de Mello reforçou que as ações
afirmativas não devem se limitar à reserva de vagas nas universidades públicas.
"As políticas públicas podem se valer de outros meios, mas temos que
considerar a autonomia universitária, garantida pela Constituição
Federal", ponderou.
Para ele, o julgamento não deveria considerar
apenas o aspecto jurídico-institucional, mas também a dimensão moral da
questão. "O racismo representa grave questão de índole moral que se
defronta qualquer sociedade, refletindo uma distorcida visão do mundo de quem
busca construir hierarquias artificialmente fundadas em suposta hegemonia de um
certo grupo étnico-racial sobre os demais", acentuou.
O ministro Celso de Mello pontuou que uma sociedade
que tolera práticas discriminatórias não pode se qualificar como uma formação
social e democrática, "porque, ao frustrar e aniquilar a condição de
cidadão da pessoa que sofre exclusão estigmatizante propiciada pela
discriminação e ao ofender valores essenciais da pessoa humana e da igualdade,
representa a própria antítese dos objetivos fundamentais da República, dentre
os quais figuram aqueles que visam a constituição de uma sociedade livre, justa
e solidária, inteiramente comprometida com a redução das desigualdades
sociais".
Segundo ele, a Conferência Mundial contra o
Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e a Intolerância Correlata,
organizada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 2001, na cidade de
Durban (África do Sul), reconheceu que o racismo representa uma grave violação
de todos os direitos humanos e um injusto obstáculo ao gozo pleno dos direitos
e prerrogativas das pessoas, além de significar uma injusta negação do dogma de
que todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos.
O ministro Celso de Mello destacou que o Brasil
tornou explícita na Constituição de 1988 a repulsa ao racismo e subscreveu
vários tratados internacionais que tratam do assunto. "O desafio não é
apenas a mera proclamação formal de reconhecer o compromisso em matéria dos direitos
básicos da pessoa humana, mas a efetivação concreta no plano das realizações
materiais dos encargos assumidos", sublinhou.
Voto do ministro Ayres Britto distingue cotas
sociais e raciais
Seguindo integralmente o voto do
relator – ministro Ricardo Lewandowski – o presidente do Supremo Tribunal
Federal, ministro Ayres Britto, votou pela improcedência da Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 186 e reafirmou a validade das
chamadas ações afirmativas. "As políticas públicas de justiça
compensatória, restaurativas, afirmativas ou reparadoras de desvantagens
históricas são um instituto jurídico constitucional", afirmou o
presidente.
O voto enfatizou a distinção entre cotas sociais e
cotas raciais, a partir do preâmbulo da Constituição da República – que fala em
assegurar o bem estar e na promoção de uma sociedade "fraterna, pluralista
e sem preconceitos". Para o presidente do STF, o "bem estar" tem
caráter material e se refere à distribuição de riquezas, enquanto a
fraternidade, a pluralidade e a ausência de preconceitos vão além da questão
material. A inclusão de tais expressões no texto constitucional partiu, segundo
o ministro, da verificação empírica de "um estado genérico e persistente
de desigualdades sociais e raciais".
O preconceito racial, assinalou o ministro Ayres
Britto, é histórico, e existe desde pelo menos o segundo século da colonização.
O ministro rechaçou, porém, a ideia de que a nação está pagando pelos erros de
seus ancestrais. "A nação é uma só, multigeracional", afirmou.
"O que fez uma geração pode ser revisto pelas gerações seguintes".
O ministro sustentou que quem não sofre preconceito
já se posiciona de forma vantajosa na escala social, e quem sofre internaliza a
desigualdade, que se perpetua. O preconceito, assim, passa a definir o caráter
e o perfil da sociedade. "Nossas relações sociais de base não são
horizontais. São hegemônicas, e, portanto, verticais", assinalou. "E
o preâmbulo da Constituição é um sonoro 'não' ao preconceito, que desestabiliza
temerariamente a sociedade e impede que vivamos em comunhão, em
comunidade."
Ele ressaltou, porém, que a Constituição não se
contentou em proibir o preconceito. "Não basta proteger, é preciso
promover as vítimas de perseguições e humilhações ignominiosas", destacou.
Por isso o artigo 3º, inciso III, afirma que são objetivos fundamentais da
República erradicar a pobreza e a marginalização, e o inciso IV fala na
promoção do bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, etc. O artigo
23, inciso X, por outro lado, impõe a todos os entes da Federação
"combater as causas da pobreza e os fatores de marginalização, promovendo
a integração social dos setores desfavorecidos".
A diferença entre as políticas afirmativas sociais
e raciais se explicita, segundo Ayres Britto, quando se constatam
"desigualdades dentro das desigualdades", ou seja, quando uma
desigualdade – a econômica, por exemplo – potencializa outra – como a de cor.
Daí a necessidade de políticas públicas diferenciadas que reforcem outras
políticas públicas e permitam às pessoas transitar em todos os espaços sociais
– "escola, família, empresa, igreja, repartição pública e, por
desdobramento, condomínio, clube, sindicato, partido, shopping centers" –
em igualdade de condições, com o mesmo respeito e desembaraço.
Com esses fundamentos, o presidente do STF encerrou
afirmando que a Constituição legitimou todas as políticas públicas para
promover os setores sociais histórica e culturalmente desfavorecidos. "São
políticas afirmativas do direito de todos os seres humanos a um tratamento
igualitário e respeitoso. Assim é que se constrói uma nação", concluiu.