quarta-feira, janeiro 11, 2012

TUDO É RACISMO OU NADA É RACISMO?

COMENTÁRIOS MOISÉS BASÍLIO:
Mais um caso de racismo na cidade de S. Paulo que se torna público e abre um leque de posicionamentos e reflexões. E isso é bom, pois outra infinidade de acontecimentos racistas passa em branco cotidianamente.

Parafraseando Belchior,  a minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo o que fizemos a sensação é que ainda somos os mesmos e vivemos como os nossos pais...

E por que essa sensação? Porque algo semelhante aconteceu comigo em meados dos anos 80. Num sábado à noite depois de um dia de trabalho duro, eu mais um amigo negro, o Fábio, e um casal de amigos brancos, Luiza e Aldo,  fomos jantar no restaurante O Bacalhau do Porto ( http://www.obacalhaudoporto.com.br/ ) que ainda funciona até hoje na rua Vergueiro, no bairro Ipiranga, em S. Paulo, próximo à Via Anchieta.

Logo na entrada algo esquisito ocorreu. O casal Luiza e Aldo entrou primeiro e quando eu e o Fábio íamos entrar o porteiro abruptamente foi fechando a porta. O casal que já havia entrado protestou ao ver o gesto do porteiro, que só retrocedeu pois foi informado de que acompanhávamos o casal. Um mal estar se instalou imediatamente, mas relevamos e fomos para a mesa.

Fizemos os pedidos e quando já estávamos apreciando a entrada um garçom se dirigiu a mim e em voz baixa disse que havia um amigo me chamando no lado de fora do restaurante. Estranhei o recado, pois decidimos ir àquele restaurante de supetão e não informei a ninguém que estaria ali.

Mas, de forma educada respondi ao meu interlocutor que se fosse meu amigo que entrasse e se dirigisse à mesa. Foi nesse instante, com cara constrangida, disse que na verdade quem estava do lado de fora era a polícia militar, que queria falar comigo e com meu amigo negro.

Duas cabeças, duas sentenças. Eu na hora, se a memória não falha, minha reação foi pedir para o garçom mandar os policiais entrarem, pois se quisessem fazer uma abordagem, que se fizesse com todos os clientes que estavam presentes no restaurante. A reação do amigo Fábio foi de completa indignação. Levantou-se da mesa e em brados, invocou a lei Afonso Arinos (de 1951) e a recente lei Caó (de 1985), denunciou o ato racista, se recusou a continuar a refeição naquele local e saiu do restaurante.

Sem alternativa de ação, também saímos junto com o Fábio. Do lado de fora dois soldados da PM nos aguardava, um inclusive era negro. Tomamos a iniciativa do diálogo com os policiais. Nos identificamos e prontamente solicitamos dos policiais o motivo da abordagem. Diante da nossa postura, linguajar, profissão, grau de escolaridade, etc.  os policiais logo perceberam o equívoco.

Os policiais nos informaram que foram chamados por dois motivos: Nossa aparência e que estávamos fazendo piadas agressivas.

Anotamos o nome dos policiais e fomos direto ao distrito policial lavrar um boletim de ocorrência. O delegado relutou um pouco em fazer o B.O., mas acabou aceitando. Denunciamos o caso para a Comissão do Negro da OAB-SP e entramos em contato com o advogado Idibal Pivetta para acompanhar o caso.

O grupo Folha, acionado pela OAB-SP fez a cobertura do caso, entrevistando o dono do restaurante e a nós, eu e o Fábio. Saiu uma reportagem, com nossas fotos, no jornal Notícias Populares e uma nota de menor destaque na Folha de S. Paulo. Várias entidades do Movimento Negro organizado tomaram posição diante do ocorrido e divulgaram o caso.

O delegado alegando que depois de ouvir o proprietário do estabelecimento e nos ouvir, avaliara que tudo não passara de um mal-entendido e que não havia indícios de crime e que por isso não levaria o B.O. adiante.

Em conversação com nosso advogado Idibal Pivetta, avaliámos que dada à má vontade do delegado em instrumentalizar o processo e às dificuldades da legislação brasileira em tipificar o crime de racismo, a via legal do processo teria pouca possibilidade de êxito. Avaliámos também que as nossas vitórias foram: Ter denunciado o caso; A repercussão do caso na mídia; O envolvimento e o posicionamento do Movimento Negro; O constrangimento que fizemos o dono do estabelecimento passar ao ter que ir depor numa delegacia sobre crime de racismo e ter que se justificar, perante órgãos de imprensa e seus clientes sobre sua atitude; O exemplo para que novos casos de racismo fossem denunciados; E também o exemplo para intimidar novos atos racistas.

O caso da "Nonno Paolo", abaixo analisado pelo artigo da Sueli Carneiro, hoje em 2012, século XXI, guarda grandes semelhanças com que vivi lá pelos idos dos anos 80, século XX. E guardaria semelhanças estruturais com outros casos racistas do Brasil dos séculos XVI, XVII, XVIII e XIX.

O racismo e os racistas se moveram nos diferentes contextos conjunturais da história do Brasil. O racismo chegou aqui com Cabral, justificado pela leitura bíblica enviesada, que justificava a escravidão pela alegoria da maldição de Cam. Depois o racialismo que foi a teoria pseudocientífica que justificou ações racistas nos séculos XIX e XX. Ainda no século XX, a ideologia da democracia racial encobriu as sutilezas de nosso racismo. Agora, nesse início do século XXI, com o esgotamento dos mecanismos que sustentaram a ideologia da democracia racial, novas formas de racismos se instalam, e a principal é a ideologia de que o racismo não existe mais no Brasil.

Nego! Olho aberto, coração vibrante e muita reflexão, estudo e ação para enfrentarmos as novas paradas racistas. Axé!



Fonte: Portal Geledés, 7 de janeiro de 2012, http://www.geledes.org.br/em-debate/sueli-carneiro/12495-sueli-carneiro-nonno-paolo-um-caso-emblematico
Autora: Sueli Carneiro

Nonno Paolo – um caso emblemático


Há coisas essenciais sobre o racismo no episódio ocorrido no restaurante Nonno Paolo com um menino negro.
Eu não estava lá, mas pela reação de indignação da mãe da criança e seus amigos é lícito supor que a criança em questão, seja amada e bem cuidada, portanto, não estava suja e maltrapilha como costumam estar as crianças de rua que encontramos cotidianamente na cidade de São Paulo.
Então, a "confusão" de quem a tomou, em princípio, por mais uma criança pedinte se deveu ao único traço com o qual a define a mentalidade racista: a sua negritude. Presumivelmente, o menino negro era o único "ponto escuro" entre os clientes do restaurante e para esse "ponto escuro" há lugares socialmente predeterminados dos quais restaurantes de áreas consideradas "nobres" da cidade de São Paulo estão excluídos.
Para o racista a negritude chega sempre na frente dos signos de prestígio social. Por isso Januário Alves de Santana foi brutalmente espancado por não ser admissível para os seguranças do supermercado Carrefour que ele fosse proprietário de um Ecosport dentro do qual se encontrava no estacionamento a espera de sua mulher que realizava compras. Por isso a cantora Thalma de Freitas foi arbitrariamente revistada e levada em camburão para uma delegacia por ser considerada suspeita enquanto, como ela disse na ocasião, "porque a loura que estava sendo revistada antes de mim não veio para cá?". Por isso Seu Jorge além de múltiplas humilhações, sofridas na Itália foi impedido, em dia de frio europeu, de entrar em uma loja com o carrinho no qual estava a sua filha, "confundido" como um monte de lixo. São apenas alguns exemplos de uma lista interminável de situações em que são endereçadas para pessoas negras mensagens que tem um duplo sentido: reiterar o lugar social subalterno da negritude bem como desencorajar os negros a ousarem sair dos lugares que desde a abolição lhes foi destinado: as sarjetas do país.
O episódio indica portanto, que uma criança, em sendo negra e, por consequência "natural" , pobre e pedinte, pode, "legitimamente", ser atirada à rua, sem cerimônia. É, devolvê-la ao seu devido lugar. Indica, ademais, que essa criança não desperta o sentimento de proteção (que devemos a qualquer criança) em relação aos perigos das ruas, pois ela é, para eles, uma das representações do que torna as ruas um perigo!
Essa criança, por ser negra, também não é abrigada pela compaixão, pois, há quem vê nelas a "semente do mal", como o fez certa vez, o governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, defendendo a descriminalização do aborto para mulheres faveladas, pois seus úteros seriam "fábricas de marginais."
Há os que defendem a atitude do funcionário que expulsou a criança do restaurante sob o argumento de a que região em que ele está localizado costuma ser assediada por crianças pedintes que aborrecem a clientela dos estabelecimentos comerciais. Na ausência do poder público para dar destino digno a essas crianças, cada um age de acordo com sua consciência, via de regra, expulsando-as. Outros dizem que a culpa pelo ocorrido é dos pais que deixaram a criança sozinha na mesa. O subtexto desse discurso é revelador e "pedagógico": pais de crianças negras deveriam saber que elas podem ser expulsas de restaurantes enquanto eles se servem porque elas são consideradas pedintes, ou menor infrator! O erro não estaria no rótulo ou estigma e sim nos desavisados que não compreendem esse código social perverso!
Os que assim pensam pertencem à mesma tribo de indignados que consideram que espaços até então privativos de classes sociais mais abastadas começam a serem tomados de "assalto" por uma gente "diferenciada", fazendo aeroportos parecerem rodoviárias ou praças de alimentação. Aqueles que não se sentem incomodados com a desigualdade e a injustiça social. Aqueles que reclamam que agora "tudo é racismo" porque, para eles, o politicamente correto é dizer que nada é racismo.
Esses são, enfim, aqueles que condenam o Estatuto da Criança e do Adolescente, que advogam pela redução da maioridade penal, que revogariam, se pudessem, o inciso constitucional que define o racismo como crime inafiançável e imprescritível ou a lei Caó que tipifica e estabelece as penalidades por atos de discriminação; conquistas da cidadania brasileira engendradas por aqueles que recusam as falácias de igualdade de direitos e oportunidades em nosso país.
O aumento da inclusão social ocorrida nos últimos anos está produzindo deslocamentos numa ordem social naturalizada na qual cada um "sabia o seu lugar" , o fundamento de nossa "democracia racial'. O desconforto que esse deslocamento provoca faz com que os atos de racismo estejam se tornando cada vez mais frequentes e virulentos.
Atenção gente negra! Eles mudaram! O mito da democracia racial está revelando, sem pejo, a sua verdadeira face. Então, é hora de se conceber e empreender novas estratégias de luta!

Um comentário:

aldesco disse...

Oi!, Moisés, você só tem um defeito: torce prum time de endereço incerto.
Mas foi muito bem lembrado aquele fato revoltante do Bacalhau do Porto, da década de 1980. Você colocou detalhes do pós-B.O. que eu não lembrava mais. Mas tem outros dois detalhes que você não colocou: primeiro, quando a gente se indignou e começou a falar alto pra todos os clientes ouvirem, um dos clientes, próximo à nossa mesa, branco igual à Luíza (eu não sou branco, sou guaranidescendente), disse que nós não estávamos falando besteiras mas "conversando em alto nível". E, realmente, não estávamos falando besteiras, nem de futebol, mas fazendo alguns comentários sobre aqueles deliciosos bolinhos de bacalhau e a culinária grega, algo assim. Outro detalhe, lembro que a Conceição, que é negra de olhos verdes, casada com um chileno, foi ao restaurante depois do episódio. Para testar. Disse ela que foi muito bem tratada. Mas a luta, como o racismo e contra ele, continua. Techaga'u!, cara, um abraço!