domingo, março 13, 2011

NEGROS E DISCRIMINAÇÕES NO EXÉRCITO BRASILEIRO

Comentários de Moisés Basílio: Muito boa a reportagem especial do Estadão deste domingo. É sempre agradável e útil quando um estudo historiográfico consegue transcender o universo da academia e ganhar a atenção dos comuns dos mortais. Temos uma vasta produção acadêmica que precisa desse trabalho de transposição feita pelo repórter Leonencio Nossa. Quanto ao mérito da reportagem, eis aí mais uma prova cabal da falácia que foi e - em minha opinião - ainda continua sendo, em nosso país a "democracia racial". Lembrar nosso passado construído a partir de fundamentos discriminatórios e preconceituosos é importante para que no presente possamos melhor diagnosticar as origens de nossas desigualdades no sentido de elaborar políticas públicas de superá-las. Se no passado o país produziu uma "política de cotas" para discriminar, hoje é preciso alavancar outro tipo de "política de cotas" para reduzir os danos produzidos por esse passado, para que no futuro possamos estabelecer as bases igualitárias para uma verdadeira democracia racial no país.

Fonte: Jornal O Estado de S. Paulo - 13 de março de 2011 - A8 Nacional
Reportagem Especial✽ OExército proibido

Os ''indesejáveis'' do exército na ditadura Vargas

Livro do pesquisador carioca Fernando Rodrigues revela a política discriminatória que rejeitava negros, judeus e filhos de estrangeiros nas escolas militares para evitar a ''contaminação'' da elite do País

Leonencio Nossa - O Estado de S.Paulo
BRASÍLIA
É uma história que, por ordem do Exército, deveria ter sido queimada. Um livro recém-lançado reconstitui os exames de seleção das Escolas de Formação de Oficiais, entre 1931 e 1946, que rejeitavam candidatos filhos de negros, judeus, islâmicos, italianos, de mulheres separadas ou de pais barbeiros e peixeiros. Nas 240 páginas de Indesejáveis (Editora Paco Editorial), o historiador Fernando Rodrigues mostra como os governos revolucionário, constitucionalista e ditatorial de Getúlio Vargas tentaram moldar uma elite militar sem homens considerados de "raça inferior".
"É de cor." Essa constatação foi suficiente para o Exército rejeitar o pedido de um estudante para ingressar na Escola Militar de Realengo em 1941, no auge do Estado Novo. A caneta vermelha do avaliador das fichas de inscrição dos candidatos, geralmente o próprio ministro da Guerra, foi implacável também com filhos de estrangeiros. Um dos candidatos considerados "inaptos" era filho de pais "italianos sem significação social", segundo registrou o avaliador.
Outro candidato foi rejeitado por ser filho de barbeiro. "A profissão de barbeiro, embora honesta, é servil e a gorjeta regulava sua situação econômica, sendo que em tal ambiente não é de se esperar uma formação moral sólida, como a que deve ter um oficial."
Nos últimos seis anos, Fernando Rodrigues, de 46 anos, doutor em história pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), analisou 16 mil fichas guardadas no Arquivo Histórico do Exército. Por norma baixada pelo então ministro - e depois presidente - Eurico Gaspar Dutra, os documentos deveriam ser incinerados após dois anos. Não se sabe o motivo de o material ter permanecido nas estantes do Exército. No período analisado pelo pesquisador, estiveram nos bancos das escolas militares homens que teriam influência na vida do Exército e do País na segunda metade do século 20, especialmente durante o regime militar - Emílio Médici e Ernesto Geisel passaram pela Escola de Realengo nos anos 1920. A pesquisa analisa também o período entre 1905 a 1929.
Rejeitados. Na função de ministro da Guerra, Dutra analisou pessoalmente parte das fichas de ingresso nas escolas militares. Para ele, candidatos "de cor" não podiam ser aceitos porque as escolas formariam os futuros oficiais que iriam dirigir o Exército e defender a Nação. A ficha dos rejeitados levava um "arquive-se".
Rodrigues destaca que, primeiro, o Exército excluiu candidatos que pudessem ser indisciplinados ou associados à política. Depois, discriminou negros, judeus e islâmicos. "Entre 1931 a 1946, observei o esforço institucional na formação de uma elite militar no Exército Brasileiro, no contexto das tensões estabelecidas pela construção histórica das relações políticas, sociais e culturais na Escola Militar", escreve o historiador.
Ao Estado, Rodrigues disse que as ideias racistas e discriminatórias não surgiram dentro do Exército. A instituição, como outras, foi atingida pelas ideias correntes da época. "O que mais me marcou na pesquisa foi perceber a intenção de criar uma elite militar que atendesse aos interesses nacionais, que na verdade eram interesses de uma política sistemática que privilegiava brancos e católicos, influenciada até pela intelectualidade e pelas revistas da época."
Ele ressalta que o tema racismo e antissemitismo no Exército não é novo. "O ineditismo encontra-se na articulação do pensamento político de formação de uma elite militar em um Instituto de Ensino Superior e nos tipos de discriminação que foram detectados ao se analisar o acesso dos candidatos, buscando compreender as relações com a sociedade brasileira e compreender melhor a cultura corporativa dentro do Exército."
Ao analisar as fichas de ingresso na Escola Militar em 1942, o pesquisador constatou que 417 candidatos foram considerados "indesejáveis". Destes, foram rejeitados 53 candidatos por serem "de cor", 19 por virem de famílias de baixa condição social, 84 filhos de pais estrangeiros, 12 de pais de origem islâmica e 3 de origem judia. Os demais tiveram problemas como falta de documentação, má conduta em escolas militares e problemas de saúde.
As medidas para impedir a entrada de negros nas escolas militares foram tomadas quando ainda se usava a expressão "raça inferior". "O negro era o grande culpado pela miscigenação e pelo enfraquecimento do povo brasileiro", destaca o pesquisador.
"Neste clima de elitização social, com o domínio da raça branca em detrimento do judeu, do muçulmano e do negro, crescia o interesse na construção da identidade nacional", explica Rodrigues. "O contexto internacional articulava-se às tradições brasileiras racistas e religiosas que, impregnadas pelo nacionalismo crescente, apoiaram as práticas discriminatórias. Os ideais liberais foram logo substituídos pelo culto à força, à ordem, à disciplina, à personificação do chefe político, à raça pura e aos heróis nacionais."

''Forças tendem a ficar mais alheias à política''

José Murilo Carvalho, historiador
BRASÍLIA

Um dos mais destacados historiadores brasileiros da atualidade, José Murilo de Carvalho, de 71 anos, observa que o Exército imaginado pelo general Góis Monteiro, um dos homens fortes do governo Vargas, era bem diferente da instituição concebida por Benjamin Constant no início da República. Doutor pela Universidade Stanford (EUA), Carvalho é autor do clássico Os Bestializados. De O Rio de Janeiro e a República Que não Foi e do recente best-seller Pedro II. Ser ou não Ser.
Quais foram os impactos da recriação do Exército durante a ditadura Vargas na vida da instituição e do País nas décadas seguintes?
O principal foi a transformação do Exército em poderoso ator político a serviço da construção do Estado. De 1889 até 1930, a instituição era mais foco de oposição e de revoltas do que de ordem. As reformas procuraram reduzir os conflitos internos, fortalecer a hierarquia, enfatizar o profissionalismo, definir um papel para a instituição. O espírito da reforma reflete-se na frase de Góis Monteiro, que, como tenente-coronel, comandou a ação militar de 1930: "É preciso fazer a política do Exército e não política no Exército". Afastar o Exército da política partidária era condição indispensável para que ele pudesse agir em bloco.
O Exército da ditadura militar absorveu mais os ideais do Estado Novo ou as doutrinas e concepções militares do século 19 e do começo do 20?
O Exército da ditadura era o mesmo que vinha sendo reformado desde 1930. Os condestáveis do Estado Novo, os generais Eurico Gaspar Dutra e Góis Monteiro, já estavam presentes na cúpula militar desde 1933. No Estado Novo, eles monopolizaram o ministério e a chefia do Estado-Maior. Foram eles também os principais agentes da deposição de Vargas. A nova visão do papel do Exército incutida após 1930 ajustava-se às preocupações que depois se consolidaram no Estado Novo: fortalecimento do Estado Nacional contra o que consideravam excessos do federalismo, ênfase na ordem, exacerbada pela luta ideológica trazida do cenário internacional, reformas de cima para baixo.
A tentativa de disciplinar o Exército e acabar com a fragmentação de poderes dos militares criou uma elite à parte das elites econômica, social e política?
Tudo começou antes do Estado Novo e eu diria que os esforços para unificar o Exército ajudaram a viabilizar o Estado Novo, isto é, dar apoio militar a Vargas. Se a unificação estivesse completa, provavelmente Góis Monteiro poderia ter assumido a ditadura, pois vontade não lhe faltava. A eliminação da política dentro do Exército exigiu um afastamento em relação à sociedade buscado por várias medidas: fortalecimento do corpo de oficiais, barreiras à promoção de praças ao oficialato, preparação ideológica, maior seletividade no recrutamento para os colégios militares, escolas preparatórias e Escola Militar. Hoje se diria que buscavam blindar o Exército contra influências externas. Mas já no Estado Novo outro tipo de contato se estabeleceu. A nova ênfase no desenvolvimento industrial aproximou militares de setores empresariais da época.
O estudo do historiador Fernando Rodrigues indica que o Exército adotou normas racistas e discriminatórias nos seus processos de seleção.
Ainda não li o trabalho citado. O Estado Novo, sem dúvida, exacerbou as medidas discriminatórias. O relatório secreto de 1940 indicava os critérios de exclusão de candidatos: nacionalidade, religião, orientação política, condições morais. Segundo depoimento de Nelson Werneck Sodré, que foi oficial de recrutamento, na prática eram discriminados judeus, filhos de estrangeiros, filhos de mulheres separadas dos maridos e "pretos". No Império e na Primeira República, o problema era oposto. De um lado, obrigar todos ao serviço militar, de outro, atrair a classe alta.
O que explica o distanciamento hoje das demais forças militares das elites econômica, cultural e política?
São restos dos ressentimentos gerados pela ditadura, que se aplicam sobretudo às áreas cultural e política. As coisas, no entanto, já estão mudando. Na área acadêmica já existem vários exemplos de aproximação e cooperação. O Brasil caminha para ter Forças Armadas voltadas para sua profissão, alheias à política partidária, em contato com os setores da sociedade em torno de problemas de interesse nacional. Só falta remover o último obstáculo, a questão dos desaparecidos durante a ditadura.

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