sábado, outubro 02, 2010

Negros no Estúdio do Fotógrafo

Comentários Moisés Basílio: Mal acabei de ler a bela resenha da Lilia Schwarcz, usando das facilidades tecnológicas, entrei no sítio da Editora da Unicamp e encomendei o livro. É muito bom viver num tempo em que se escreve a história dos negros brasileiros a partir do olhar dos negros. Vamos conferir a obra e depois deixo por aqui minha opinião. Axé!


Livro: Negros no estúdio do fotógrafo - Brasil, segunda metade do século XI, de Sandra Sofia Machado Koutsoukos, Editora Unicamp, 360 págs., R$ 48,00.

Sinopse

Nos estúdios fotográficos do Brasil no século XIX, compareciam pessoas de todas as camadas sociais, desde a alta sociedade até os mais humildes. Este livro apresenta fotos de negros no Brasil daquele período. Vemos negros livres, libertos, escravos domésticos, até mesmo fotos de presos da primeira penitenciária construída no Brasil. Por meio de vasta pesquisa acadêmica, a autora traça o caminho da produção daqueles retratos, sua significação, sua circulação e seu armazenamento em álbuns. Ao explorar as histórias por trás das imagens, o livro dá vida àquelas personagens, torna-nos íntimos delas, faz-nos pensar em nossos próprios retratos, em nossos próprios álbuns, reaviva nossa memória.
  
Sobre a autora: Sandra Sofia Machado Koutsoukos é graduada em belas-artes pela UFRJ, mestre em artes e doutora em multimeios, mídia e comunicação pelo Instituto de Artes da Unicamp. Em seu pós-doutorado no Instituto de Artes da Unicamp, apoiado pela Fapesp, a autora pesquisa a exibição de pessoas nas exposições do século XIX e início do XX.

Resenha: Fonte: Jornal O Estado de S. Paulo, 02/10/2010, caderno Sabático, S8.      Sujeitos de sua própria imagem

Por Lilia Moritz Schwarcz 
A fotografia chegou cedo ao Brasil. Foi em maio de 1839, em plena Paris modernista, que Louis Jacques Daguerre anunciou seu novo invento, que logo se transformaria em símbolo e projeção dessa época ligeira e dada a verdade voláteis. No outro lado do hemisfério, no reino tropical brasileiro, o abade Compte, logo em janeiro de 1840, publicava no Jornal do Commercio artigo sobre a introdução da técnica no Império de d. Pedro. O primeiro daguerreótipo, tirado no Rio de Janeiro - no Brasil e na América Latina registrava - o Paço Imperial com uma tropa bem a frente. Já o monarca, dado às modas científicas, achou por bem transformar-se no primeiro soberano fotógrafo, assim como incentivar o invento que prometia maravilhas num tempo breve. Em segundos seria possível captar de tudo: paisagens, animais e pessoas.
Acervo Museu Paulista/Reprodução
Acervo Museu Paulista/Reprodução -Postura. Retrato de um senhor com seus cativos: a figura de braços cruzados parece querer expressar um ar desafiador
A técnica se desenvolveria, rapidamente daria conta das fragilidades iniciais e ganharia em popularidade. Além do mais, com o apuro do invento, os preços despencam e alcançam bolsos de clientela mais alargada. No Brasil, os estúdios e ateliês de fotografia inundariam a elegante rua do Ouvidor, na Corte, assim como entrariam nas províncias afastadas, prometendo a reprodução condigna da imagem de seus orgulhosos fregueses. Começava, então, a era "dos cartões de visita", o famoso formato que permitia a distribuição de fotos em maior quantidade e qualidade. Com eles surgiam os estúdios cada vez mais equipados, e assegurando a realização de desejos recônditos: alguns queriam ser clicados tendo ao fundo os trópicos americanos; outros os longínquos Alpes suíços. Certos fregueses optavam por apresentar-se portando casacas, joias e bengalas; outros cercavam-se de livros, esculturas, pianos e globos; quase todos falsos, feitos para não durar. Balaustradas, degraus, construções feitas de papelão ... tudo servia para dar vida às representações dessas novas elites, que viam na fotografia uma via para imortalizar seu status e posição. Foi Susan Sontag, em seu On Photography, quem mostrou como desde seus primórdios a fotografia serviu à mentira: anula a ação do tempo, contorna imperfeições, embeleza o óbvio.
Mas, se são conhecidos os usos que as elites fizeram da técnica, pouco se estudou a presença de negros, mulatos e mestiços - livres ou cativos - nas fotografias do 19 brasileiro. E eles estão por toda parte: ora como detalhes desfocados, ora como personagens principais. Em alguns momentos parecem envergonhados; em outros, surgem orgulhosos e dignos. Certas vezes são retratados trajando vestes grandes demais e que revelam o empréstimo das roupas por ocasião da foto; em outras ocasiões ostentam instrumentos de trabalho: enxadas, caixas de engraxate e toda sorte de aparatos. E é sob esse vasto material que Sandra Sofia Machado Koutsoukos se debruça com grande sensibilidade. Não poucas vezes a analista interrompe a descrição para emitir juízo pessoal, ou interroga seus leitores num estilo pouco usual. Também não poucas vezes oferece painel amplo, maior até do que se propõe analisar, mas tudo com serventia, já que ficamos conhecendo meandros da foto, da técnica, do ensino e do contexto.
Negros no Estúdio do Fotógrafo é livro que não se abre mão. O material é imenso e disperso, mas a historiadora o doma com maestria. Uma coisa é observar a presença de negros nos cantos das imagens, secundando seus senhores, andando anonimamente pelas ruas ou mesmo posando em cartões-postais; já dar organicidade ao material, jogá-lo para a frente da análise, é outra história. A autora organiza as fontes em três categorias: na primeira estariam as fotos de escravos domésticos levados aos estúdios por seus senhores que, por alguma razão, guardaram as imagens em seus álbuns de família. Aí estão as amas de leite, cativos domésticos; todos descalços, uma vez que a ausência de sapatos é símbolo maior do cativeiro. Na segunda leva estão as fotos vendidas como "exóticas"; tal qual souvenir para estrangeiros. Nelas escravos aparecem nas mais diferentes situações: no trabalho, dançando ritualmente, cozinhando, mas sempre caracterizados como "tipos". Paradoxal por definição, esse tipo de fotografia era vendida sob a rubrica de "coisas bem brasileiras", conforme descrição do fotógrafo Cristiano Junior, mas causavam certa vergonha, sobretudo no Império de Pedro II, que se pretendia tão civilizado. Na terceira categoria figuram as fotos etnográficas, com objetivos científicos e feitas para servir como suporte para as teorias raciais em voga no contexto. Aqui está o lado ainda mais perverso dessa cartografia de imagens: negros fixados de perfil ou de frente, a comprovar medidas da frenologia; mulatos criminosos fichados a partir de seus estigmas. Exemplo dos mais significativo são as fotografias da famosa Galeria dos Condenados. Ao todo são 320 fotos de presos, sendo 318 homens e 2 mulheres. Tiradas na Casa de Correção da Corte durante 20 anos, a contar de 1834, teriam figurado na Exposição Nacional de1875 e depois na Feira Internacional de Londres de 1876, quando técnica e ciência pareciam estar a serviço do controle e da classificação.
Indolência. Costurando todos esses enredos, está o argumento central de Sandra, que parte do princípio de que, em qualquer situação, o escravo não era apenas, e exclusivamente, um suporte: um objeto. "Dava-se a ver" mas também "se fazia ver", agenciando e municiando como sujeito sua própria imagem. Se o fotógrafo ou o senhor controlavam a escravidão, não tinham passaporte sobre a personalidade do "cliente", que irrompia inesperadamente nas fotos: ora mais curioso, ora mais amedrontado, ora francamente desafiador. Não poucas vezes escapavam panos da costa (os famosos xales que com seus desenhos definiam origens variadas das escravas), marcas de nação, escarificações ou penteados que indicavam a singularidade do fotografado. Mais produtivo, ainda, é tomar diferentes reações em uma mesma foto. Há uma imagem, dentre as várias presentes nessa bela edição, chamada vagamente Retrato do Senhor com Cinco Escravos. O documento é conhecido, a análise de Sandra é que traz novidades. Ao centro vê-se um senhor orgulhoso, com expressão cerrada. Aos seus dois lados, escravos (todos sem sapatos) mostram todo tipo de expressão: um observa a máquina com atenção, outro desvia o olhar, outro ainda parece vexado diante do espetáculo em que é instado a atuar. Um quarto homem surge borrado, pois deve ter se mexido diante de situação tão tediosa. Mas um personagem parece desafiar o fotógrafo com ar indolente: ao lado do senhor, cruza os braços numa atitude de contestação.
Foi o filósofo Walter Benjamin quem mencionou o sofrimento dos modelos diante desses aparelhos endiabrados. Verdadeiras câmaras de tortura, as fotografias fixavam um tempo e um tipo de artificialidade. Se tudo isso é fato, a situação ficava pior quando os atores eram escravos ou negros livres. O que faz nossa autora é ler nos detalhes verdadeiros ritos de insubordinação. Por vezes basta um olhar, um ombro levantado, uma sobrancelha irada para revelar emoção e contrariedade. Vale a pena disciplinar o olhar e seguir, junto com a Sandra Koutsoukos, as grandes peças que pequenos sinais revelam.

LILIA MORITZ SCHWARCZ É PROFESSORA TITULAR DO DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA DA USP E AUTORA, ENTRE OUTROS, DE O SOL DO BRASIL: NICOLAS-ANTOINE TAUNAY E AS DESVENTURAS DOS ARTISTAS FRANCESES NA CORTE DE D. JOÃO (COMPANHIA DAS LETRAS)

 

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