Comentários Moisés Basílio: Um conto que lembra a linguagem teatral épica,
escrito em três atos. O tempo é a segunda década do século XXI. O território é
a periferia da cidade de São Paulo. O miserável filho da classe trabalhadora
vive imerso nas contradições da luta de classes onde a consciência de classe se
torna difusa pelos barulhos das dinâmicas do mundo globalizado. O miserento, que
poderíamos definir como uma união das palavras – miserável e lazarento – é o
filho das classes populares cooptado pelos valores das classes dominantes. Um
filho de operários e o outro filho de um agente do aparelho repressor do Estado
burguês.
Primeiro ato, a vida e as contradições do miserável
do século XXI nas periferias de SP. Brunão o filho de um operário vive no fio
da navalha entre o trabalho produtivo e o crime organizado, a fábrica e o
tráfico. O segundo ato, Tizinho filho de um agente da força da repressão da
ditadura militar brasileira segue sua sina na cena atual, continuando a tradição
paterna da violência e tortura. Ato final, um senhor aposentado faz uma síntese
poética das contradições.
Um conto que dialoga com uma vasta biografia
contemporânea, que em parte vem citada ao final em linguagens diversas: cinema,
literatura, música, teatro, produção acadêmica etc. E com rara sensibilidade o
autor encerra o seu conto com a verve lancinante da música e do poema de
Edvaldo Santana, filho dessa periferia e Glauco Matoso, olhos do nosso tempo.
O MISERÁVEL VERSUS MISERENTO
Por Pedro Carignato Basilio Leal
1 - Rap Chinelo
“Vão invadir o seu barraco: – É a polícia!/
Vieram pra arregaçar, cheio de ódio e malícia/ (filhos da puta comedores de
carniça)/ Já deram minha sentença e eu nem tava na treta/ Não são poucos e já
vieram muito loucos[1]…”
E assim que Bruno da Silva desperta pra ir à
escola. São meio dia e ele entra uma hora da tarde. Irá comer o resto da janta
do dia anterior e partir pra mais um dia na escola estadual Valdir Fernandes
Pinto localizada na favela da Juta, periferia de São Paulo. Hoje irá mais cedo,
pois quer mostrar um rap que escreveu pela noite para uns truta da área.
Brunão, como é conhecido, pouco lembra o menino pacato filho de Dona Elisabete.
Talvez porque Brunão descobriu ou foi obrigado a aprender que “ser um preto
tipo “A” custa caro” na quebrada e que a vida-de-todo-dia por lá trafega entre
as fronteiras incertas entre o ilegal, o informal e o ilícito.
“A favela é sinistra e na madrugada/ Filho da puta
assassino de farda/ Se ele te vê, tenta correr, se ele sacar o finado é você[2]…”.
Desde pequeno Brunão frequenta toda a quebrada. Apesar de viver em uma moradia de padrão bom tem muitos amigos na favela e tais diferenças nunca foi motivo para o distanciamento. Na verdade Bruno gosta mais de estar nos barracões do que em sua própria casa. Ele adora o feijão da Dona Nenê que vende marmita sem autorização da vigilância sanitária. Gosta também de consertar os rolamentos de seu skate na bicicletaria do Sr. Osvaldo.
“Cadê o meu presente, o meu abraço?/ A bicicleta
que eu sonhei não vem com o laço… Quem brinca com revólver não conhece a
alegria/ Não tem dia das crianças na periferia[3]…”.
Tal senhor chegou ao bairro na década de 1970 junto
com o pai do Bruno e começou a criar gado, mas com a grande urbanização da
periferia logo mudou para o ramo de concerto de bicicletas e tudo mais que
aparecer na frente. Já Ademir (pai de Bruno) ingressou em uma montadora de
veículos na região do ABC, fez curso do SENAI e alcançou o posto de chefe de
sessão. A cinco anos de se aposentar a empresa mudou-se para o interior e
Ademir se viu obrigado a vender produtos importados vindos do Paraguai para
complementar a renda da aposentadoria por velhice. Ainda assim conserva na garagem
a Brasília cor de abacate que comprou da empresa e que Bruno aprendeu a
dirigir. Sempre que toca no assunto da montadora Ademir diz: “- Deu tudo que eu
tenho!”.
“O nego não para no tempo não/ Suas origens vêm de
Angola a um bom tempo… E faço o que faço bom tempo chegado/ Tô com carro parado
uma preta do lado[4]…”.
Bruno iniciou um Curso de Elétrica no SENAI na
década de 1990, porém não o concluiu. O garoto ajuda a fazer alguns “gatos”
para a comunidade local. Como todos moradores, Bruno “tá ligado” nas fronteiras
entre o lícito e ilícito, inclusive o “lado certo da coisa errada”.
Sobrevive no inferno ou na adversidade e “sabe transitar entre fronteiras
diversas, se deter quando é preciso, avançar quando é possível, fazer o bom uso
da palavra no momento certo, se calar quando é o caso[5]” para não ser surpreendido de
repente.
“Demorou, curte aí/ De Pirituba ao Mangui/ Da Conde
ao Moraes/ Jardim Peri, Itapevi/ Jardim Repu, Jacqueli/ Baiana, diz assim/
Soube entrar e sair/ Respeitei, soube agir/ Não tirei, zé povim/ Quis por fim/
Ao estopim/ Perdoei/ Fiz a mim/ Que é de lei por aqui, mas só quem é foi ouvir/
Olha lá, o que fiz/ Promessa fiz pra Vivi/ Pra onde vou, fui e vim[6]…”
Os pais de Bruno não gostam muito dessas relações,
mas pouco podem falar, pois são pessoas próximas, amigos de infância,
vizinhos de rua, colegas de escola. É difícil para Ademir e Bete entender a
vida do filho no cotidiano da periferia no início do século XXI, pois em épocas
remotas haviam mutirões nos bairros, movimentos populares por moradia, saúde e
educação em qual todos moradores participavam em plena comunhão. Tal
comunidade de opiniões parece não mais existir.
“Como velhos tempos tempos velhos velhos quais/ Tempos
velhos meus amigos pretos velhos/ Que não voltam mais/ Ancestrais seguidos de
bravos guerreiros/ Fazem o brasil inteiro se curvar/ Diante de tal bravura/ Que
loucura/ Só pra todo custo defender aquele lugar/ Que alias se chamava palmares[7]…”
“São apenas dez e meia, tem a noite inteira. Dormir
é embaçado, numa sexta-feira. TV é uma merda, prefiro ver a lua…” É nesse ritmo
que Brunão vai visitar um amigo nessa sexta à noite pelas quebradas do
Sapopemba. Vai de Brasília abacate e, como não pretende voltar tarde calçou
chinelos.
2 - Bota Copom[8]
“- Vamos lá, gente, vamos pra cima dos bandidos, a
sociedade precisa do nosso trabalho. Conosco é o seguinte: para o cidadão tudo,
para o marginal nada. Cidadão deve ser tratado como cidadão e marginal como
marginal.”
E assim inicia-se mais um dia na vida de Sebastião
Pereira Rocha Farias. Tião Pistola Rocha como é mais conhecido atualmente está
na Tropa de Elite da Polícia Militar e prestes a se tornar comandante de
destaque (promoção por bravura) por seus préstimos exemplares dentro da
instituição. Pistola Rocha nem de perto lembra aquele menino dócil e alegre
filho de Dona Justina.
“Atenção, todas as viaturas, é a Comando, Viaduto
Vila Esperança, perseguindo um Volks marrom.”
Tizinho, como era conhecido quando criança, sempre
gostou de assistir e jogar bola no Batalhão da Polícia Militar onde seu Pai
trabalhava. O menino, apesar da educação rígida em casa, se divertia muito em
dias de festa da corporação e na escola onde estudava. Tinha um sonho fixo na
cabeça: “Ser Capitão da Polícia Miltar!”
“Aqui na Vila Guilherme perseguimos um auto Corcel
com quatro indivíduos. Eles tentaram se evadir. Eu fiz um disparo no pneu do
veículo e ele parou.”
Seu Pai, Capitão Farias, era grande incentivador e
motivador para o sonho do filho se tornar realidade. Tizinho sempre escutava histórias
de heroísmos nas rodas de conversa dos amigos de trabalho do seu Pai. Nas
brincadeiras com os amigos sempre estava atrás de justiça. Em seu time sempre
jogava o café-com-leite e sempre defendia os mais fracos de apanharem dos
fortões. Por vezes, seu time perdia e algumas outras apanhava, porém para ele
não restava dúvida, é a luta do bem contra o mal.
“… Civis que roubam, estupram e matam. E quem,
afinal, deve ir em busca de tais elementos senão a polícia? Tendo meu salário
pago pelo povo, eu tinha por obrigação dar-lhe segurança.”
Não era só da segurança que Capitão Farias se
orgulhava. Na década de 1960 e 1970 os militares guiavam o Brasil rumo ao
milagre econômico. Eram os militares na política junto às suas reputações
ilibadas, eram 90 milhões em ação, eram revoluções… Tião sempre escutava de seu
Pai: “- Brasil, ame ou deixe-o”.
“- Atenção a rede, prioridade para Rota 66. Rota
Comando, é Rota 66/ – Prossiga/ – Tiroteio aqui em Jandira. O PM Croda foi
baleado./ – Informe o estado dele/ – É grave, Comando. Estamos a caminho do
pronto-socorro de Osasco.”
Sebastião cresceu e com muito orgulho de seu Pai
virou Tenente Sebastião Rocha. Ainda na Academia Militar estudava muito as leis
e persistia em sua mente a lembrança de infância de lutar por justiça. Foi
incorporado ao esquadrão de elite da Polícia Militar já quando saiu da
Academia.
“- Rota Comando, é rota 66/ – Em QAP, prossiga (na
escuta)/ – É, Comando, infelizmente o Croda acaba de falecer/ – Atenção, todas
as viaturas, destino a Jandira, ninguém sai de serviço enquanto o matador do
Croda não for capturado. Anotado?”
O agora Capitão Tião Pistola Rocha comanda todos os
dias dezenas de viaturas policiais que fazem policiamento de rua. Ao longo dos
seus quinze anos de comando dentro da corporação, continua com a mesma certeza:
é a luta do bem contra o mau, é matar ou morrer!
“Homens de preto o que é que você faz/ Eu faço
coisas que assusta o Satanás/ Homens de preto qual é sua lição/ Entrar pela
favela e deixar corpo no chão[9]…”.
O Capitão Tião está de serviço nessa sexta-feira e
por isso calça suas botas. Antes de sair para o patrulhamento alerta seus
comandados: “gente, vamos ficar atentos ao serviço, pois vocês sabem bem que,
no policiamento, saímos e não sabemos se voltamos. Boa Sorte para todos!”.
3 - Sonetos Bélicos
Um senhor lê seu jornal enquanto escuta a rádio
evangélica do bairro, porque hoje é sábado. Sentado tranquilamente e com os
óculos na ponta do nariz, porque hoje é sábado. Benedito ou Sr. Dito é um
aposentado que depois de se desligar do trabalho com carteira assinada resolveu
montar uma bomboniere no Bairro do Jardim Planalto em São Paulo. Foi um jeito
de se ocupar e não ficar vinte e quatro horas por dia dentro de casa com sua
esposa Dona Irene e seus vinte filhos. A manchete do dia é:
AÇÃO POLICIAL TERMINA EM MORTE DE BANDIDO NA
PERIFERIA!
Na noite dessa sexta-feira o menor B. da S. foi
morto por policiais da tropa de elite da polícia militar. Não se sabe ainda o
motivo que levou tal garoto a ser baleado. Suspeita-se em influência no tráfico
de drogas ou acerto de contas. O Comandante da operação Capitão Sebastião Rocha
comentou …
Sr. Zé é velho amigo do Sr. Dito e está passando na
rua com seu neto, porque hoje é sábado, e diz:
- Lendo jornal Sr. Dito? Perguntou Sr. Zé pra puxar
assunto.
- Oh Sr. Zé… Bom dia! Como anda a vida? E o
meninão? – Respondeu Sr. Dito com a vista ainda embaralhada por conta da
notícia.
- A vida é vivida a cada dia – deu uma risada
amarela e completou:
- E o menino tá com preguiça de estudar…
- E o menino tá com preguiça de estudar…
Sr. Dito fechou o jornal, se dirigiu ao baleiro
rotatório de vidro bem antigo, pegou umas quantas balas, deu ao garoto e
concluiu com o amigo:
- O mundo seria mais doce se nossos jovens
recebessem mais balas…
Ao fundo uma interferência na rádio da bomboniere,
faz tocar a seguinte canção:
“As
armas, munições, armazenadas
são muitas vezes mais suficientes
para extinguir da Terra seus viventes,
e continuam sendo fabricadas.
são muitas vezes mais suficientes
para extinguir da Terra seus viventes,
e continuam sendo fabricadas.
Revólveres,
canhões, fuzis, granadas,
torpedos, mísseis mis, bombas potentes,
festim, balas Dum Dum, cartuchos, pentes,
martelos, foices, paus, facões, enxadas.
torpedos, mísseis mis, bombas potentes,
festim, balas Dum Dum, cartuchos, pentes,
martelos, foices, paus, facões, enxadas.
Romanos,
que eram bons de guerra e paz,
disseram: “Si vis pacem, para bellum.”:
Parece que os modernos vão atrás.
disseram: “Si vis pacem, para bellum.”:
Parece que os modernos vão atrás.
Não quero
exagerar no paralelo,
mas quanto menos ronda a bota faz,
mais folga ostentará o pé de chinelo[10]”.
mas quanto menos ronda a bota faz,
mais folga ostentará o pé de chinelo[10]”.
[1] Rap: Homem na Estrada.
Racionais Mc’s.
[2] Rap: Favela Sinistra. Facção
Central.
[3] Rap: 12 de Outubro. Facção
Central.
[4] Rap: Rap: Cabeça de Nego.
Sabotage.
[5] (KOWARICK, L. e MARQUES, E.
São Paulo: novos percursos e atores (sociedade, cultura e política). In:
TELLES & HIRATA, Cidade e práticas urbanas: nas fronteiras incertas
entre o ilegal, o informal e o ilícito 2011, p.391)
[6] Rap: Dona Tereza. Sabotage.
[7] Rap: Afrobrasileiro. Thaíde
& DJ Hum.
[8] Os fragmentos de textos
sublinhados são trechos retirados do livro Matar ou Morrer de Conte Lopes.
[9] Retirado do filme Tropa de
Elite.
[10] Música Soneto Bélico de
Edvaldo Santana e Glauco Mattoso.