domingo, agosto 05, 2007

O QUE LER SOBRE DEMOCRACIA

Comentário Moisés Basílio: Augusto de Franco é meu amigo pessoal, como diz o dito popular, de outros carnavais. A vida nos distanciou, mas os meios eletrônicos nos permite manter em sintonia e em rede. Como tenho focado minhas reflexões atuais na temática da democracia e educação, achei interessante incluir este texto, aqui nesse blog. Segue também abaixo o meu comentário, depois de ler o texto, ao site do Augusto, e a resposta dele. Sugiro também a leitura das cartas anteriores para entender o motivo dessa carta. Axé!

Caro Augusto,

Muito interessante esse roteiro de leitura pelo grau de sistematização e foco. Continuo morando e trabalhando aqui na Zona Leste de Sampa, no Sapopemba. Profissionalmente sou professor de ensino fundamental da prefeitura. Nesse ano voltei a estudar, estou fazendo pedagogia na USP. No semestre passado entrei em contato com os pensamentos de Hannah Arendt, John Dewey e Rousseau, que me abriram novas perspectivas de pensar a democracia e a educação, principalmente a educação escolar onde estou atuando profissionalmente e também buscando criar redes locais democráticas de ação que articulem os atores sociais, governamentais e econômicos da região.
Axé,
do "mulato isoneiro",
Moisés Basílio - Enviado por: Moisés Basílio Leal (03/08/2007 01:58)

Salve Moses!
Bom receber notícias suas. Sim, insista com a Johannah Arendt e com o John Dewey. E quando tiver um tempinho leia também alguma coisa do nosso amigo Humberto Maturana Romesin. Grande abraço.

Enviado por: Augusto de Franco (03/08/2007 09:34)

Fonte: Cartas rede Social (clique aqui para ler as outras cartas)
O que ler sobre democracia

Carta Rede Social 142 (19/07/07) - Autor: Augusto de Franco

[Tempo estimado de leitura: 23 minutos]

Para absorver a idéia de democracia no sentido “forte” (ou “a democracia como idéia”, como queria Dewey) – e esta é uma constatação para lamentar, conquanto a afirmação seja polêmica, sobretudo aos olhos dos que gostam de historicizar o conceito de democracia até que dele se esvaia todo o conteúdo substantivo – é necessário mais não-ler do que ler os clássicos.

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Continuo nesta carta com o assunto da alfabetização democrática, iniciado na ‘Carta Rede Social 140’.

Já disse que somos menos analfabetos democráticos em relação à compreensão do funcionamento formal dos nossos atuais sistemas representativos, do que em relação à democracia como modo de regulação de conflitos no quotidiano. Até conseguimos entender razoavelmente a democracia como sistema de governo, mas em geral não admitimos e não praticamos – como queria John Dewey – a democracia como modo-de-vida, no dia-a-dia, na base da sociedade e nas organizações governamentais ou não-governamentais de que participamos.

Ocorre que o conceito de democracia pode ser tomado em dois sentidos: em sentido “fraco” ou em sentido “forte”.

NO SENTIDO “FRACO” DO CONCEITO, democracia se refere atualmente a um tipo de regime – no sentido de sistema de governo ou forma política de administração do Estado – no qual os governantes são escolhidos pelos governados e que atende a certas regras que decorrem dos princípios da liberdade, da publicidade, da eletividade, da rotatividade, da legalidade e da institucionalidade e, como conseqüência de todos esses, da legitimidade.

Liberdade. As regras que decorrem do princípio da liberdade compreendem aquelas que visam assegurar o exercício da liberdade de ir e vir, da liberdade de organização social e política e da liberdade de crença e de expressão (coisas que, por incrível que pareça, ainda não existem em países como China, Coréia do Norte ou Cuba), incluindo a liberdade de imprensa, stricto sensu e latu sensu, o que deve contemplar a existência de diversas fontes alternativas de informação e não apenas uma liberdade formal obstruída na prática pela imposição de dificuldades legais ou burocráticas para a abertura e o funcionamento de meios de comunicação por parte de quem pensa diferente, seja por qual pretexto for. Via de regra as protoditaduras (como a Venezuela atual) e as ditaduras (como as citadas acima) tentam falsificar esse princípio alegando incitamento à desordem ou ameaça à segurança nacional.

Publicidade. As regras que decorrem do princípio da publicidade têm a ver com a transparência necessária (capaz de ensejar uma efetiva accountability) dos atos do governo e a dissolução do segredo dos negócios de Estado (que constitui uma exigência real em circunstâncias que possam ameaçar a segurança da sociedade democrática e o bem-estar dos cidadãos mas que, na maior parte dos casos, sob o pretexto de manter a segurança nacional e a ordem pública, constitui mero pretexto para ocultar procedimentos autocratizantes ou privatizantes).

Eletividade. As regras que decorrem do princípio da eletividade são aquelas que disciplinam, de modo a tornar o mais equânime que for possível (dentro das limitações impostas pelas diferenças de força, riqueza e conhecimento existentes na sociedade em questão), a escolha dos governantes pelos governados, o que compreende o direito de voto para eleger representantes parlamentares e executivos (governamentais) pelo sistema universal, direto e secreto, em eleições livres, periódicas e isentas (limpas), atribuindo-se a todos os cidadãos em condições de legais de votar o igual direito de ser votados (e a exigência adicional de que os cidadãos devam pertencer a partidos é, como se pode ver, um contrabando autocrático que atenta contra a transitividade do princípio da eletividade, mas que ainda vige em boa parte dos regimes democráticos).

Rotatividade. As regras que decorrem do princípio da rotatividade dizem respeito à efetiva possibilidade de alternância no poder entre situação e oposição. Essa questão é chave, como vimos, para distinguir as democracias das autocracias e, inclusive, dos arremedos de democracia (ou seja, das democracias parasitadas por forças autoritárias, aparentemente democráticas, mas que na verdade querem restringi-la ou restringem-na objetivamente, seja por meio de um processo claramente protoditatorial, seja por meio de obscura manipulação política, em geral de natureza populista). Assumir a rotatividade ou a alternância num sentido mais ampliado significa também, como assinalou Felipe González (2007), promover à categoria de princípio “a aceitabilidade da derrota como elemento essencial do funcionamento democrático”.

Legalidade e Institucionalidade. As regras que decorrem dos princípios da legalidade e da institucionalidade têm a ver com a estrutura e o funcionamento do chamado Estado de direito, contemplando a existência e o funcionamento de instituições estáveis, capazes de cumprir papéis democraticamente estabelecidos em lei e protegidas de influências políticas indevidas do governo. Se as leis são descumpridas ou dribladas ou se as instituições são derruídas ou apenas ocupadas, aparelhadas, pervertidas e degeneradas para servir aos propósitos políticos de um grupo privado (instalado dentro ou fora do governo), então o regime democrático corre perigo. Às vezes tal ameaça não é suficiente para colocar em risco o sistema representativo formal, mas – sem qualquer sombra de dúvida – quando isso acontece é sinal de que está havendo um refreamento do processo de democratização da sociedade. Se a lei (democraticamente aprovada) for descumprida e não houver a sanção respectiva, a democracia (tanto no sentido “fraco”, quanto no sentido “forte” do conceito) sempre sofrerá com tal violação, mesmo quando se argumente que a lei é injusta (e ainda que o seja de fato: neste caso, o papel dos democratas é propor a mudança da lei e não o de afrontá-la ou descumpri-la). Mas toda lei democraticamente aprovada é legítima (na medida da legitimidade do processo que a gerou).

Legitimidade. Só é legítimo na democracia (mesmo no sentido “fraco” do conceito) o ator político que respeita – sem tentar falsificar ou manipular – o conjunto das regras que emana dos princípios acima. Mas se, baseado nos votos que obteve ou nos altos índices de popularidade que alcançou, um representante considerar que pode desrespeitar, falsificar ou manipular as regras emanadas desses princípios porque conta para tanto com o apoio da maioria da população, então tal representante deverá ser considerado ilegítimo do ponto de vista da democracia.

NO SENTIDO “FORTE” DO CONCEITO, porém, democracia é mais do que isso. John Dewey (1939), no discurso “Creative Democracy: the task before us” (já traduzido e publicado na ‘Carta Rede Social 134’) no qual lançou sua derradeira contribuição às bases de uma nova teoria normativa da democracia que poderíamos chamar de democracia cooperativa, deixa claro que estava tomando o conceito no seu sentido “forte”. A democracia, para Dewey, não se refere, nem apenas, nem principalmente, ao funcionamento das instituições políticas, mas é “um modo de vida” baseado numa aposta “nas possibilidades da natureza humana”, no “homem comum”, como ele diz, “nas atitudes que os seres humanos revelam em suas mútuas relações, em todos os acontecimentos da vida quotidiana”. Segundo Dewey, a democracia é uma aposta generosa “na capacidade de todas as pessoas para dirigir sua própria vida, livre de toda coerção e imposição por parte dos demais, sempre que estejam dadas as devidas condições”. Esse é sentido “forte” do conceito.

Isso não significa que a democracia, no seu sentido “fraco”, seja menos importante do que no seu sentido “forte”, porquanto a condição para que a democracia no seu sentido “forte” possa se realizar é a existência da democracia no seu sentido “fraco”. Na atualidade, onde não existe um sistema representativo funcionando, em geral também não há práticas realmente participativas, na base da sociedade e no quotidiano do cidadão, que possam ser consideradas como democráticas. Ou, em outras palavras, a chamada “democracia liberal” é condição para o exercício de formas inovadoras de “democracia radical” (como, aliás, já havia reconhecido o próprio Dewey, há mais de setenta anos, quando afirmou que “o princípio fundamental da democracia consiste em que os fins da liberdade e da autonomia para todo indivíduo somente podem ser alcançados empregando-se meios condizentes com esses fins... [mas] não há contradição alguma entre a busca de meios liberais e democráticos combinada com a defesa de fins socialmente radicais”).

Não estamos condenados a conviver eternamente com as formas atuais da democracia formal (representativa), porém não podemos aboli-las em nome de novas formas (supostamente mais participativas) que não assegurem o essencial, o coração mesmo da idéia: a aceitação da legitimidade do outro, a liberdade e a valorização da opinião e o exercício da conversação no espaço público.

Não há nada que impeça os seres humanos de inventar uma nova política democrática, a não ser a sua consciência colonizada por idéias autocráticas. Não existem as tais condições estruturais objetivas para a adoção da democracia, como se supôs no entorno dos anos 70 do século passado. O prêmio Nobel de Economia, Amartya Sen (1999), matou a charada quando afirmou que a questão não é a de saber se um dado país está preparado para a democracia, mas, antes, de partir da idéia de que qualquer país se prepara através da democracia. A democracia é uma opção. Além disso, a idéia de democracia pode ser materializada de maneiras diferentes.

Se a democracia não pudesse ser reinventada, ela não poderia ter sido inventada. Ao dizer que a política é o que é, não havendo condições de mudar a sua natureza (a relação amigo-inimigo), o realismo político está, na verdade, inoculando uma vacina contra as mudanças políticas democratizantes: está dizendo que a política será sempre o que foi (e sempre como foi). Ora, na maior parte do tempo a política não foi democratizante: apesar da onda democrática mundial do último século, nos últimos seis milênios a democracia não passou de uma experiência localizada, frágil e fugaz. Depois da invenção dos gregos, a tendência que vigorou amplamente foi a da autocratização e não a da democratização. Por isso teve razão mais uma vez Amartya Sen (1999) quando, perguntado sobre qual teria sido o acontecimento mais importante do século 20, respondeu de pronto: a emergência da democracia.

Com efeito, a democracia está avançando, apesar de tudo (ainda que no sentido “fraco” do conceito, mas que é, como vimos, condição para que ela possa ser ensaiada no seu sentido “forte”). No final da Segunda Guerra Mundial, em 1945, apenas 22 países apresentavam formas de governo democráticas (sendo que todos os demais estavam ainda submetidos a governos totalitários ou autoritários – no sentido de não preencherem aqueles dez requisitos apresentados acima). Sessenta anos depois (em 2005), estimava-se que 117 países já eram democráticos, pelo menos formalmente (atendendo, se não a todos, pelo menos a maior parte daqueles referidos requisitos).

O QUE SE ESCREVEU SOBRE A DEMOCRACIA

Do ponto de vista do conceito “forte” de democracia, é surpreendente o fato de termos tão pouca reflexão acumulada. É claro que mais surpreendente ainda é o fato de, depois da experiência dos gregos, a democracia ter retrocedido, não avançado. E que isso tenha ocorrido tanto na prática quanto na teoria.

Sobre o tema há, por certo, muitas controvérsias. Alguns (como Robert Dahl: 1998) tentam interpretar a República romana como uma versão (latina) da democracia (grega). Mas, ao que tudo indica, não se trata exatamente da mesma coisa porquanto o sistema de governo com participação popular dos romanos não reunia aqueles três atributos – de isonomia, isologia e isegoria – que caracterizavam o funcionamento da comunidade (“koinomia”) política de Atenas e de outras cidades gregas do período democrático (509-322). Se encararmos a democracia, no seu sentido fraco, apenas como sistema de governo (popular) – e não, no seu sentido forte, como sistema de convivência ou modo de vida comunitária que, por meio da política praticada ex parte populis, regula a estrutura e a dinâmica de uma rede social – várias outras experiências surgiram concomitante e posteriormente à experiência dos gregos: Roma (do final do século 6 até meados do século 2), governos locais em cidades italianas (como Florença e Veneza, por exemplo, do início do século 12 até meados do século 14), bem como outras experiências endógenas de governo que admitiam alguma forma de assembléia com participação mais ou menos popular (na Inglaterra, na Escandinávia, nos Países Baixos, na Suiça e em outros pontos ao norte do Mediterrâneo). De qualquer modo, foram experiências insuficientes diante da tendência autocrática predominante. Na melhor das hipóteses, considerando a República romana como uma espécie de democracia, tivemos um interregno autocrático de mil anos (de 130 a. E. C. a 1.100). Na pior hipótese – que, não por acaso, é a mais precisa e a que faz mais sentido – esse intervalo foi de mais de dois mil anos (de 322 a. E. C. até o século 18).

Na teoria, ocorreu o mesmo. Além da falta de experiências suficientes de democracia, também tivemos falta de reflexão teórica sobre o tema. Boa parte da literatura política – inclusive a maior parte dos escritos sobre a democracia – foi fortemente influenciada por idéias autocráticas. Basta ver que, com raras exceções, os mais conhecidos pensadores da política que surgiram desde Platão (e Sócrates, tanto o platônico, quanto o xenofôntico), passando pelos medievais e até pelos contemporâneos de Thomas Hobbes e seus sucessores (nas sete ou oito gerações seguintes), eram contrários à democracia.

Numa lista inquestionável de 50 clássicos da política, do século 5 antes da Era Comum ao final do século 16 (de Platão a Althusius) não se encontra um só pensador democrático. Talvez com a exceção parcial de Aristóteles e do próprio Althusius – posto que não militavam especialmente contra democracia – a totalidade desses pensadores era autocrática.

Quando Spinoza afirmou (em 1670) – contrariando Hobbes – que o fim da política não era a ordem e sim a liberdade, não se fez a luz. Assim como os antecessores de Spinoza (nos dois milênios anteriores) foram contrários à democracia de alguma forma, seus sucessores (nos dois séculos seguintes) quando não se postaram abertamente contra a democracia, puseram-se a relê-la de uma forma que acabou esvaziando o seu conteúdo. Até a segunda metade do século 18 não houve nenhuma leitura decente da democracia grega que tivesse resgatado ou preservado seus pressupostos fundamentais (o seu “gene” ou meme) do ponto de vista do conceito exposto aqui. Na verdade, de Althusius (1603) a Stuart Mill (1861) não conhecemos muito mais do que meia dúzia de pensadores políticos que tivesse, desse ponto de vista, contribuído decisivamente para recuperar e reinterpretar, a luz das condições da modernidade, os elementos fundamentais da democracia dos antigos (a liberdade, a igualdade de proferimento e a valorização da opinião e o exercício da conversação no espaço público).

Dentre os clássicos da política, do século 6 antes da Era Comum até a metade do século 20, quer dizer, dos democratas atenienses até Hannah Arendt, não temos, por incrível que pareça, muita coisa sobre a democracia (no sentido forte do conceito). Embora se possa situar o surgimento da democracia no final do século 6, a partir da reforma de Clístenes (509), os escritos sobre a democracia só vão aparecer realmente no século 5. Ésquilo, em “Os Persas” (472), afirma a liberdade dos atenienses (oposta à servidão daqueles que têm um senhor). Mas é com Eurípedes, em “As Suplicantes” (422), que vai aparecer, pela primeira vez, um conceito mais acabado de democracia (tomando como modelo Atenas, com a descrição de alguns de seus mecanismos, como a assembléia democrática, por exemplo).

Do século 6, portanto, não temos nada, apenas notícias da legislação introduzida por Sólon: conquanto este seja um marco importante para o desenvolvimento ulterior da democracia, não há ainda propriamente uma teoria democrática, senão menções e delineamentos esparsos que surgem nos gêneros literários da história e da tragédia. Fora do mundo grego, há um livro importante que provavelmente surgiu nessa época (ou um pouco antes): o “Tao-te King” de Lao Tzu (c. 604 a. E. C.), mas somente com muito esforço interpretativo (e alguma inspiração) podemos encontrar nas suas páginas um pensamento compatível com a idéia de democracia (conquanto pareça haver de fato alguma coisa bem profunda em Lao Tzu, na medida em que, para ele, a paz é o caminho, tanto em termos individuais quanto coletivos).

Do século 5, temos dois textos que poderiam ser considerados como discursos políticos, ambos autocráticos: “A Arte da Guerra” (c. 500) de Sun Tzu; e “Os Analectos” de Confúcio (c. 490). E, é claro, o já mencionado “As Suplicantes” (422) de Eurípedes. E do século 4, temos Platão (427-347): “A República”, “O Político” e “As Leis” (que não são obras favoráveis à democracia; pelo contrário). E temos também Aristóteles (383-322): “A Política” e “A Constituição de Atenas”.

Dos séculos 3 e 2, para não dizer que não temos nada, registra-se, com alguma boa vontade, apenas um clássico, de Han Fei Zi (280-234 a. E. C.): “A Arte da Política (Os homens e a lei)”, mas nada há, como é óbvio, de democrático ou de compatível com a democracia nesse texto. E do século 1 antes da Era Comum, temos apenas Cícero (106-43 a. E. C.): “De Republica”, “De Legibus” e “De Officiis” (o que não é pouca coisa, mas igualmente não recupera o conceito original de democracia no seu sentido “forte”).

Dos séculos 2 a 12 da nossa era, não temos absolutamente nada. Do século 13, temos somente Tomás de Aquino (1225-1274): “De Regimine Principum” (longe, muito longe da idéia de democracia). E do século 14, temos Dante Alighieri: “De Monarchia” (1312); e Marcílio de Pádua: “Defensor Pacis” (1324).

Do século 15, não temos nada significativo. E do século 16, temos cinco pensadores clássicos, nenhum deles democrático; pelo contrário. São os casos de Maquiavel: “O Príncipe” (1513) e “Discursos sobre a primeira década de Tito Livio” (1519); Thomas Morus: “A Utopia” (1516); Francesco Guicciardini: “Recordações Políticas e Civis” (1576); Jean Bodin: “Os Seis Livros do Estado” (1576); e Giovanni Botero: “A Razão de Estado” (1589).

No século 17, afinal, surgem alguns pensadores que lançarão as bases para uma reinvenção da democracia pelos modernos, com Althusius: “Política” (1603);. e Spinoza: “Tratado Teológico-Político” (1670) e “Tratado Político” (1677). Mas a maior parte da literatura clássica sobre política conhecida desse século não é democrática nem compatível com a democracia no sentido “forte” do conceito, como se pode ver em Tommaso Campanella: “A Cidade do Sol” (1602); Grotius: “De iuri belli ac pacis” (1625); Baltazar Gracián :“A Arte da Prudência” (1647); Hobbes:“De cive” (1642) e “Leviatã” (1651); Cardeal Mazarin: “Breviário dos Políticos” (1683); Leibniz: “Elementa iuris naturalis” (1688); e Locke: “Dois Tratados sobre o Governo” (1690) – com exceção deste último (1).

No século 18 cabe destacar alguns pensadores (e o network da Filadélfia), começando com Rousseau: “Discurso sobre a origem da desigualdade dos homens” (1754) e “O contrato social” (1762); passando pela “Declaração de Independência dos Estados Unidos da América” (1776), por “Publios” (Alexander Hamilton, John Jay e James Madison): “O Federalista” (1787-1788), em especial Madison em um comentário sobre a Constituição dos Estados Unidos (1787); e chegando a Thomas Paine: “Direitos do Homem” (1791). Mas com a possível exceção de Montesquieu: “O Espírito das Leis” (1749) e de algum outro, constata-se ainda uma forte influência autocrática na maioria dos pensadores desse período, como François de Callières: “Como Negociar com Príncipes” (1716); Hume: “Investigação sobre o Entendimento Humano” (1748); Beccaria: “Dos Delitos e das Penas” (1764); Sieyès: “O que é o Terceiro Estado” (1789); Burke: “Reflexões sobre a Revolução Francesa” (1790); von Humbolt: “Ensaio sobre os limites da atividade do Estado” (1792); e Kant: “A paz perpétua” (1795) e “Metafísica dos Costumes” (1797).

Foi somente no século 19 que começaram a aparecer, em maior quantidade, as sementes de um pensamento realmente democrático no sentido forte do conceito (por exemplo, com Tocqueville, Stuart Mill e alguns outros), mesmo assim ainda é um pensamento cercado por todos os lados por idéias autocráticas. Registram-se como clássicos desse período, Ficht: “Discursos à Nação Alemã” (1808); Bentham: “Sofismas Políticos” (1816); Benjamin Constant: “Princípios da política” (1815) e “Discurso sobre a Liberdade dos Antigos Comparada com a dos Modernos” (1819); Hegel: “Princípios de Filosofia do Direito” (1821); Carl von Clausewitz: “Da Guerra” (1832); Tocqueville: “A Democracia na América” (1835) e “O Antigo Regime e a Revolução” (1856); Proudhon: “O que é a Propriedade” (1840); Marx: “Crítica da filosofia hegeliana do direito” (1843) e “A questão judaica” (1843); Stuart Mill: “Sobre a Liberdade” (1859) e “Sobre o Governo Representativo” (1861); e Mosca: “Elementos de Ciência Política” (1896).

Assim chegamos ao século 20. Mas se incluirmos na categoria de ‘clássicos’ apenas os escritos políticos surgidos até meados daquele século, também não tivemos uma grande profusão de idéias e teorias democráticas. Com exceção de John Dewey e Hannah Arendt, ainda há um ranço de concepções autocráticas nos principais pensadores políticos dessa época, mesmo naqueles que professam convicções democráticas e tratam precipuamente da democracia, como Sorel: “Reflexões sobre a Violência” (1908); Croce: “Filosofia da Prática” (1909); Gentile: “Fundamentos da Filosofia do Direito” (1916); Pareto: “As Transformações da Democracia” (1919); Weber: “Economia e Sociedade” (1922); Dewey: “O Público e seus Problemas” (1927), “Velho e novo individualismo” (1929), “Liberalismo e ação social” (1935), “A democracia é radical” (1937) e “Democracia criativa: a tarefa diante de nós” (1939); Carl Schmitt: “O Conceito do Político” (1932); Kelsen: “Teoria geral do Direito e do Estado” (1945) e “Os Fundamentos da Democracia” (1955); Gramsci: “Cadernos do Cárcere” (1947); e Hannah Arendt: “O que é a política?” (1950), “As Origens do Totalitarismo” (1951), “Que é liberdade” (1954), “A condição humana” (1958) e “Sobre a revolução” (1963). Nesse período, cabe destacar também, foram lançados os fundamentos do atual pensamento autocrático disfarçado de democrático próprio das chamadas esquerdas contemporâneas, em virtude de uma fusão pragmática da visão de Schmitt (realpolitik) com a de Gramsci (conquista de hegemonia).

Diante desse quadro pode-se afirmar que não perderá muita coisa do “gene” (ou do meme) da democracia (no sentido “forte” do conceito) quem refizer a trajetória dos clássicos costurando uma abreviadíssima seqüência como a seguinte: (1º) Os democratas de Atenas (Clístenes, Péricles, Temístocles, Protágoras, Polícrates et coetera, do que se pode inferir de seus pensamentos a partir da leitura da história, da oração fúnebre, da tragédia e da filosofia – em especial pela via dos seus críticos, como Platão e o Sócrates platônico) => (2º) Althusius => (3º) Spinoza => (4º) Rousseau => (5º) “Públius” (Alexander Hamilton, John Jay e James Madison) => (6º) Paine => (7º) Tocqueville => (8º) Mill => (9º) Dewey => (10º) Arendt. Ou seja, para absorver a idéia de democracia no sentido “forte” (ou “a democracia como idéia”, como queria Dewey) – e esta é uma constatação para lamentar, conquanto a afirmação seja polêmica, sobretudo aos olhos dos que gostam de historicizar o conceito de democracia até que dele se esvaia todo o conteúdo substantivo – é necessário mais não-ler do que ler os clássicos.

Do final do século 20, já dentre os contemporâneos (assim considerados os que publicaram nos últimos 25 anos ou no tempo da presente geração), temos aparentemente muita coisa. Mas apenas aparentemente. De fundamental mesmo, temos Bobbio: “Ética e Política” (1984), “O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo” (1984) e “Estado, governo, sociedade: para uma teoria geral da política” (1985); Ágnes Heller (com Ferenc Feher) com vários textos, como os consolidados nas coletâneas: "Anatomia da esquerda ocidental” (1985) e “A condição política pós-moderna” (1987); Jürgen Habermas: “Facticidade e validez” (1992) e “Between Facts and Norms: Contributions to a Discourse Theory of Law and Democracy” (1996); John Rawls: “O liberalismo político” (1993); e Robert Dahl: “Sobre a democracia” (1998). Temos ainda uma extensa literatura engajada no debate atual sobre a democracia deliberativa, da qual podem ser citados, como exemplos significativos, Andrew Arato & Jean Cohen: “Civil Society and Political Theory” (1994); Chantal Mouffe: “The return of the Political” (1993) e “The Democratic Paradox” (2000); e Joshua Cohen: “Procedure and Substance in Deliberative Democracy” (1996) e “Democracia e Liberdade” (1998).

E temos, por último, algumas coisas mais promissoras, como os trabalhos sobre os pressupostos cooperativos da democracia (no sentido forte do conceito) de Humberto Maturana: “Biología del fenómeno social” (1985), “Herencia y medio ambiente” (com Jorge Luzoro) (1985), “Ontología del Conversar” (1988), “Lenguaje y realidad: el origen de lo humano” (1988), “Una mirada a la educación actual desde la perspectiva de la biología del conocimiento” (1988), “Lenguaje, emociones y ética en el quehacer político” (1988), “El sentido de lo humano” (1991), “Amor y Juego: fundamentos olvidados de lo humano – desde el Patriarcado a la Democracia” (com Gerda Verden-Zöller) (1993) e “La democracia es una obra de arte” (s. /d). E algumas boas tentativas de recuperar o pensamento político de Dewey, como a de Axel Honneth: “Democracia como cooperação reflexiva. John Dewey e a teoria democrática hoje” (1998).

No século 21, temos muita gente que ainda continua ancorada no século 20 (ou no 19). Remanesce aquela curiosa corrente gramsciana (surgida na década passada) de defensores da democracia participativa ou deliberativa (supostamente a favor do povo) contra a democracia representativa liberal (das elites, supostamente contra o povo) – composta, por mais contraditório que isso possa parecer, por ‘pensadores da democracia não convertidos à democracia’ – que permanece trabalhando com o autocrático conceito de hegemonia. Mas há também uma antecipadora usinagem das sementes de um novo pensamento democrático que, conquanto tivesse começado nos últimos anos do século passado, já estava voltada para o futuro. Entram aqui as formulações sobre democracia digital ou democracia em tempo real (cyberdemocracy), as investigações sobre a inteligência coletiva e sobre a emergência (sobretudo nos estudos sobre as sociedades como sistemas complexos adaptativos), as reflexões sobre as inovações políticas ensaiadas em redes comunitárias de desenvolvimento e a chamada pluriarquia ou a democracia em redes sociais distribuídas (peer-to-peer). Incluem-se nessa categoria as teorias do capital social que brotaram nos anos 90 e o chamado netweaving (uma criação do final da primeira metade da década atual).

Quem quiser dar continuidade à sua formação do ponto de vista do conceito (“forte”) de democracia, deveria se concentrar, basicamente, em John Dewey, Hannah Arendt e Humberto Maturana. Dos clássicos, além dos já citados Dewey e Arendt, em especial Aristóteles (confrontado com Platão), Althusius (confrontado com Jean Bodin), Spinoza (confrontado com Hobbes), Rousseau, Madison, Paine (confrontado com Burke), Tocqueville e Stuart Mill. Mas as novas teorias democráticas capazes de recuperar o meme democrático original e reinterpretá-lo à luz das condições do século 21 ainda estão por ser elaboradas.

UMA ALFABETIZAÇÃO DEMOCRÁTICA

Não basta, porém, conhecer as reflexões teóricas sobre as diversas experiências de democracia e as teorias normativas inspiradas por tais reflexões. A democracia não é um regime determinado, não é um modelo aplicável a várias circunstâncias, mas um movimento ou uma atitude constante de desconstituição de autocracia. Assim, segundo o conceito (“forte”) de democracia apresentado aqui, aprender democracia é desaprender autocracia.

Um dos temas mais importantes na formação de lideranças para o exercício da política democrática é aprender a perceber os sinais da mentalidade e das práticas autoritárias e os sintomas dos processos de autocratização da política. Não se trata apenas de conhecer as teorias e o que disseram os clássicos da chamada ciência política sobre o assunto. Trata-se da capacidade de identificar padrões, o que faz parte daqueles conhecimentos tácitos da “arte” da política que devem ser adquiridos pela observação atenta da própria experiência e das experiências alheias.

Pequeno ou grande, o poder autoritário se comporta sempre de maneira semelhante. Não importa se o agente não convencido do valor da democracia está dirigindo uma pequena ONG de bairro, um partido ou um governo. Há um padrão de comportamento que se faz presente em todas as práticas antidemocráticas e que se revela como poder de obstruir, separar e excluir. Nos casos mais exacerbados, o poder exercido de tal maneira pode perseguir, prender, torturar e matar, só não o fazendo, em muitas situações, em virtude da falta de condições para tanto.

Um processo de formação política democrática deveria contemplar o estudo cuidadoso desse “padrão Darth Vader” (para usar a excelente metáfora da série “Star Wars”, de George Lucas). Neste sentido, pode-se aprender muito lendo, por exemplo, Ryszard Kapuscinski: “Cesarz” (1978), que foi publicado no Brasil com o título “O Imperador: a queda de um autocrata”. Numa narrativa impressionante, baseada em entrevistas feitas pelo autor – o jornalista polonês Kapuscinski – com antigos colaboradores de Hailé Selassié I, ele descreve os bastidores do palácio do tirano que governou a Etiópia por 44 anos. Ou com Simon Sebag Montefiore: “Stalin: a corte do czar vermelho” (2003), também baseado em entrevistas feitas pelo jornalista Montefiore com os sobreviventes e os descendentes da era stalinista e em pesquisas em cartas e outros documentos que só recentemente foram liberados, o livro descreve a intimidade do poder despótico que até há pouco era meio desconhecida, revelando a sua face brutal. Ou, ainda, com Jung Chang e Jon Halliday: “Mao: a história desconhecida” (2005), no qual Chang (já conhecida pelo seu excelente “Cisnes selvagens”) e seu marido Halliday, empreenderam uma pesquisa monumental para descrever a outra face da vida de Mao Tse-Tung, que – segundo a palavra dos autores – “durante décadas deteve o poder absoluto sobre a vida de um quarto da população mundial e foi responsável por bem mais de 70 milhões de mortes em tempos de paz, mais do que qualquer outro líder do século 20”. Este último é, de todos, o livro mais impressionante que talvez já tenha sido escrito sobre as conseqüências maléficas da direção do Estado nas mãos de um líder determinado a conquistar e a manter o poder a qualquer custo.

Pode-se dizer que as tragédias desses regimes comandados por Selassié, Stálin e Mao são coisas muito distantes da situação em que vivem os países democráticos atuais. Mas as coisas não são bem assim. O “padrão Darth Vader” que se manifestou em alto grau no comportamento desses três autocratas pode também estar presente em outros líderes, pequenos ou grandes, muitas vezes não conseguindo se desenvolver em virtude de circunstâncias ambientais ou institucionais adversas. Tais circunstâncias, que decorrem de configurações sociais coletivas, quando são favoráveis à ereção de sistemas de dominação tendem a reforçar e a retro-alimentar atitudes míticas diante da história, sacerdotais diante do saber, hierárquicas diante do poder e autocráticas diante da política. Toda vez que a rede social é obstruída, toda vez que se introduzem centralizações na teia de conexões ou de caminhos que ligam os nodos dessa rede distribuída, gera-se uma configuração mais favorável ao crescimento e a manifestação desse poder vertical que está no “DNA” da civilização patriarcal e guerreira. A democracia, como percebeu Humberto Maturana (1993), é uma brecha nesse paradigma civilizatório.

Compreendendo o que pode florescer em ambientes sociais fortemente centralizados e nos quais os modos de regulação de conflitos não são democráticos, podemos perceber os sinais e interpretar os sintomas do processo de autocratização da política onde quer que eles surjam, inclusive no interior de regimes formalmente democráticos. Para conhecer o poder vertical – a sua “anatomia” e a sua “fisiologia”, vamos dizer assim – devemos, portanto, estudá-lo em estado puro (ou quase), como ocorreu na Etiópia, de Selassié, na União Soviética, de Stalin e na China, de Mao. Depois será mais fácil perceber seus indícios no nosso quotidiano, inclusive quando surgem em uma pequena organização, quem sabe até na organização da qual participamos...